Por Luís Fernando Praga

os filhos de Uhuru

Quando os filhos de Uhuru nasceram, não foi de repente, precisou acontecer muita coisa antes.

Nasceram num meio de mundo árido e sem nenhum tostão, mas não nasceram pobres, porque a pobreza ainda não havia sido inventada.

Brincaram, correram e pularam. Não havia escolas, nem médicos, nem policiais, nem políticos e nem bancos, mas aprenderam o suficiente para sobreviver num mundo hostil, sem confortos, com recursos escassos e dificuldades extremas.

Todos eles queriam muito! Desejavam comida, sexo, água, prazer, repouso, segurança, coisas. Ansiavam por aprender e desejavam expandir seus horizontes. Entretanto, nem todos desejavam da mesma forma.

Uhuru sabia que seus filhos não eram todos iguais. Um era mais ousado, outro mais prudente. Um aprendia a correr antes do outro. Um se contentava com uma refeição, outro queria duas. Um era mais competitivo, outro mais cooperativo. Um temia o trovão, outro não temia, e percebia que o medo de trovão limitava seu irmão.

O berço onde nasceram, logo ficou pequeno para os sonhos dos filhos de Uhuru. Tornaram-se nômades e movidos pela aventura, pela necessidade de sobreviver e de realizar seus desejos, foram deixando terra para trás, descobrindo novas paisagens, se distanciando das origens.

Inventaram embarcações para superar os grandes rios e mares, e desejaram voar.

Uhuru via que quanto mais se afastavam e quanto mais o tempo passava, mais seus filhos assumiam diversidades. Uns ficaram brancos, porque foram morar onde batia pouco Sol. Uns chegaram a lugares que lhes proviam de tudo, deixaram de ser nômades e aprenderam a desejar apenas não perder o que já haviam conquistado. Uns ficaram com os olhos apertados por caminharem muito tempo para onde o Sol nascia.

Alguns ficaram mais acomodados, oportunistas e perceberam que podiam explorar o medo, a submissão e a vontade de ter coisas de seus irmãos, para que estes os servissem em troca de algum benefício ou uma suposta proteção.

Assim os mais acomodados e oportunistas dominaram seus irmãos. Inventaram monstros para limitar as ações dos que sentiam mais medo. Inventaram heróis que salvariam de monstros e garantiriam uma imortalidade cheia de prazeres, que viria após a morte, desde que se comportassem da forma que os heróis exigissem.

Os que sentiam mais medo, para não sofrerem punições, em algum momento passaram a desejar apenas realizar os desejos dos heróis e a obedecer sem questionar.

O tempo passou e Uhuru viu seus filhos mais gananciosos se confrontando pelo domínio dos filhos mais temerosos e submissos.

Viu quando inventaram teorias que faziam esquecer de quem eles eram filhos e quem eram seus irmãos. Viu quando o poder dos homens derrubou cruelmente o equilíbrio natural da liderança feminina.

Viu seus filhos inventarem o dinheiro e a pobreza. Viu alguns desejarem ser ricos e outros desejarem que muitos fossem pobres. Viu filhos que matavam e desperdiçavam suas vidas pelo dinheiro, mas não deixavam de morrer, e ainda assim, viam essa coisa como um bem.

Viu quando a vida no mundo passou a ser controlada pelas invenções de seus filhos e não por seus filhos. Viu quando eles abriram mão de seus desejos e da condução das próprias vidas, para que poucos outros filhos, semi heróis, os mais oportunistas e frios, desejassem por eles e conduzissem suas vidas por eles.

Uhuru viu seus filhos aprenderem a culpar outros filhos pelos desejos não realizados, pelas dificuldades da vida, por tudo que dava errado. Viu seus filhos se matarem, aprenderam a odiar, inventarem armas e desejarem a morte de irmãos.

Mas Uhuru sabia que havia filhos diferentes, que não temiam nem monstros, nem heróis, e que desejavam continuar descobrindo o mundo, realizando seus sonhos e evoluindo lado a lado como irmãos, porque se amavam forte e inevitavelmente. A reação desses filhos aos possíveis erros de seus irmãos era a de buscar aprendizado, porque culpar e odiar era improdutivo e gastava um tempo de vida muito nobre. Esses filhos se lembravam que todas aquelas pessoas, apesar de tamanhas diferenças, eram como eles, filhos de Uhuru, e odiá-los era como odiar a si próprio.

Uhuru viu seus filhos realizarem o desejo de voar e chorou ao ver como o mundo é lindo lá do alto. Chorou também ao ver seus filhos que matavam outros filhos desejando voar para matar mais, com armas mais poderosas atiradas lá do alto.

Uhuru sabia da morte. Catástrofes naturais, doenças e guerras mataram seus filhos. A morte vinha para os mais medrosos e para os destemidos, para os mais acomodados e para os intrépidos, para os exploradores e para os explorados, para os mais ricos e para os pobres, para os que adoravam os heróis, para os não acreditavam neles, para os mais negros, os mais brancos, os mais nus e os mais vestidos, os mais cruéis e os mais amáveis.

Todos sucumbiam a morte, mas os que morriam mais infelizes eram os que ocupavam suas vidas odiando, temendo, julgando ou oprimindo.

Os que odiavam, na verdade desejavam e respeitavam mais as suas invenções do que amavam si próprios e a seus irmãos. Como a vida deixara de ser o bem mais valioso, eles eram capazes de vender suas vidas por qualquer coisa, de matar por qualquer coisa, de se corromper por qualquer coisa.

Mas os filhos que não praticavam o ódio aprenderam a dar o valor maior à vida e ao fato de estarem vivos. Eles sabiam que a morte era uma certeza, poderiam morrer para salvar uma outra vida, mas não deixariam de viver… por coisa nenhuma.

Dizem que o universo de Uhuru começou a existir há mais de 13.000.000.000 (13 bilhões) de anos, é imenso e continua a se expandir. O planeta de Uhuru, infinitamente menor que um grão de areia se comparado às dimensões do universo, passou a existir há pouco mais de 4.000.000.000 (4 bilhões) de anos. A vida nesse planeta surgiu há cerca de 3.000.000.000 (3 bilhões) de anos e desde então, muita vida existiu e deixou de existir antes que os filhos de Uhuru nascessem, há no máximo 200.000 anos.

Uhuru viu seus filhos se alastrarem pelo mundo num piscar de olhos e já conta mais de 7 bilhões de filhos vivos. Eles já tiveram um vasto mundo à disposição. Espalharam-se, distanciaram-se e sofreram influências muito distintas, por isso se diferenciaram tanto. Eles poderiam se considerar vitoriosos, mas queiram ou não, são apenas aprendizes, nômades da vida.

Mais de 107.000.000.000 de filhos já viveram nesse planeta. Muitas dessas 107 bilhões de mortes, foram vidas infelizes, de filhos opressores, de filhos oprimidos, odiosos e odiados, culposos e culpados. Vidas limitadas pela ignorância de nossos irmãos e de nós mesmos. Pela nossa prepotência de culpar o outro e de criar verdades inquestionáveis para uma espécie tão jovens e que já acreditou em tantas verdades que deixaram de ser críveis. Vidas limitadas por subestimarmos nossa autonomia em deixar a vida mais justa e agradável sem prejudicar a vida dos outros.

Hoje Uhuru vê aflição, angustia e um desejo de mudança em todos os cantos do mundo. Vê seus filhos nas ruas, batendo em panelas, com esperança em odiar e culpar seus irmãos. Vê outros filhos odiando e culpando os que vão às ruas com as panelas. Vê também os filhos que acreditam num mundo alternativo a essas esquerda e direita inventadas. Não um mundo encima do muro, um mundo sem muros.

Ela vê que o mundo encontrou um jeito de reaproximar todos os seus filhos. As distâncias foram encurtadas e os diferentes ocupam o mesmo espaço. Uhuru tem saudades do tempo em que a reconhecíamos como mãe e vivíamos mais perto dela. Mais uma vez ela nos dará o ingrediente principal para seguirmos nossa jornada. Uhuru, nossa mãe Liberdade, sempre espera o melhor de nós, e nos dará, a cada um, a Liberdade de decidir se mudamos, construindo um mundo sustentável, de tolerância e respeito ou se seguimos na prepotência, no medo, na desunião e no ódio.