agua

Há quanto tempo ouvimos que vai faltar água, que precisamos economizar, que se continuar assim ainda guerrearemos por água? Ouço isso desde sempre, mas parece que agora a coisa realmente se agravou. Talvez tenha chegado o momento de o ser humano pensar mais profundo do que o fundo do poço e restabelecer o verdadeiro valor das coisas.

Já faz tempo que me privei do prazer dos banhos demorados e até penso duas vezes antes de encher o segundo copo d’água. Vendo mais amplamente, apesar da situação pré-calamitosa, há lugares do mundo, inclusive no Brasil, que convivem com uma carência hídrica muito mais complicada do que a nossa, quer dizer, somos capazes de viver com menos.

O que mais me aflige, entretanto, é que o preço da água vem subindo vertiginosamente. É enxergar um futuro onde cada vez mais os pobres sofrerão de forma desumana por não possuírem aquele maldito papelzinho da ilusão. Sem água morremos e sem dinheiro somos capazes de sobreviver… mas não. Sem o papelzinho, seres humanos como eu, o papa e o Bill Gates irão morrer de sede. O fato de eu ter algum dinheiro para comprar água não me faz mais merecedor da vida do que qualquer outra pessoa. O mesmo se estende ao acesso a assistência médica, educação, cultura, alimentação e segurança. Pessoas morrem todo dia só porque são menos ricas de dinheiro do que outras pessoas e isso não faz sentido. Já temos o câncer, a velhice, os acidentes, os infartos fulminantes que são muito bem pagos para controlar nosso inchaço populacional. Não precisamos nivelar o direito à vida pela quantidade de dinheiro, talvez até pela quantidade de querer viver, mas não pelo papelzinho.

Bem, mudemos o enfoque. A água é um recurso limitado que tende a se concentrar nas mãos dos ricos até que se esgote, mas tudo bem, vamos parar de tomar banho, reaproveitar os pratos sujos, beber menos água, antecipar a insuficiência renal e morrer de sede para:

Para poupar a vida dos que guardam mais papelzinho.

Para que continuem gastando 70% da água do planeta com uma agricultura não sustentável e suja de agrotóxico que contempla o consumismo. Que se reverterá em alimentos sujos de agrotóxico, que sustentarão de forma subumana os que plantam a terra. Se reverterá no desperdício desumano de alimentos (metade do alimento produzido no mundo é jogada fora nas diversas etapas do processo) promovido pelos ricos, porque quem passa fome e sede não desperdiça (em um ano, a comida jogada fora por USA e Europa poderia alimentar três vezes a população mundial pelo mesmo período). Desperdício que vai se acumular em lixões perto das casas dos pobres e contaminar de chorume a água do mundo.

Para que continuem gastando 20% dá água do planeta com a indústria. A indústria do consumismo que escraviza os pobres e contempla os donos do papelzinho, que vão continuar tomando seus banhos de ofurô. Aliás, o banho de ofurô, dizem, é uma delícia e todo mundo merecia ter o direito, mas somos cooperativos e abrimos mão do banho para que a indústria do papel (o papelzinho) e celulose possa gastar mais água do que qualquer outra indústria na face da Terra.

Apenas 10% da água consumida no planeta decorrem do uso doméstico, do seu banho, da sua descarga, da sua louça limpa, do seu feijão cozido, do seu copo d’água.

Pode ser mesmo que entremos numa guerra sangrenta pela água e nos matemos porque os poderosos assim nos ordenaram. Não sei como lutar contra esses gigantes filhos do capital, mas sei que a vida é curta demais pra que eu a desperdice me curvando a eles e carregando suas culpas. A nossa vida, não a dos outros, é a única coisa que possuímos. Temos o livre arbítrio sobre ela, mas iremos perdê-la cedo ou tarde e outras pessoas viverão no mundo que deixarmos. Estamos vivendo num mundo que tem priorizado, geração após geração, o conflito, a competição, e o consumo desenfreado. Se o sistema fosse outro, teríamos água à vontade, mas vemos as coisas do jeito que o sistema nos mostra e é não interesse dele nos mostrar seu rabo sujo.

Não precisamos ter marcas de valores astronômicos, não precisamos tirar fotos de mesas fartas e depois jogar a comida fora, não precisamos nos odiar. Precisamos de água! Precisamos de comida, de ar, de natureza, de amar e de aprender. De modo que quando essa guerra chegar, não contem comigo. Estarei sentindo, sem culpa, o prazer de um banho demorado, nem que seja de cachoeira e lutando, pacificamente e de mãos dadas com quem acredita na vida, contra este sistema.