vá, dia

Vá, dia!

Maria acordou cedo e correu para o trabalho. O dia era lindo, o céu era azul e o ar fresco e perfumado. Mal colocou os pés fora de casa e avistou o velho mendigo surdo, que disse “bom dia”, com a mão estendida para a esmola. Maria como sempre ignorou. Logo depois passou por Elias na calçada e ouviu seu sussurro maldoso.

_ Vadia!

Maria não acreditou no que ouviu, apesar de não esperar outra atitude de Elias.

_O que você disse?

_Eu disse “VADIA, PIRANHA, PERDIDA, VAGABUNDA!”, namora quatro caras na mesma semana e quer ser chamada de santa? Vá pra igreja enquanto é tempo, se é que ainda dá tempo!

Maria enrubesceu de ira e indignação.

_O que eu faço da minha vida não é da sua conta, imbecil. Cuide de seus problemas, seu fanático, você deve ter aos montes, além da ignorância e do machismo, louco, recalcado, retardado!

Elias apanhou uma pedra e mirou na testa e antes que Maria tivesse tempo de se proteger armou o lançamento, mas o velho mendigo segurou sua mão antes que a pedra fosse arremessada.

Maria aproveitou-se da momentânea imobilização do adversário e acertou-lhe um tapa na cara.

O velho se interpôs entre ambos e Maria o empurrou.

_Sai da frente, velho idiota!

Elias viu a viatura de polícia chegando e simulou serenidade até que ela passasse, então sussurrou novamente.

_A vadia perdeu a paciência, é? Isso é falta de rola e de Deus no coração, vadia!

Maria estava atrasada e tomou seu caminho, espumando ódio e alimentando a vingança.

Elias voltou-se para o velho, que já se retirava e gritou.

_Mendigo filha da puta! Preto podre! Viado! Eu te mato da próxima vez que passar na minha frente, velho vagabundo! Vai procurar outro canto pra dormir, que seus dias estão contados nesse bairro, gentalha! Além de tudo é surdo! Morre logo, doente!

Mas o velho ignorou, porque era surdo, e seguiu até a pracinha.

Maria postou o episódio nas redes sociais, dizendo que Elias a ofendera e atirara uma pedra. Os amigos de Maria, mesmo os que não conheciam Elias, formaram um grupo para por fim àquela intolerância ou no mínimo ridicularizar o vilão.

Elias chegou à igreja com a marca do tapa e disse ao seu grupo, sua versão do acontecido. Eles, por sua vez, formaram um grupo na rede social para evitar que mais mulheres se tornassem mulheres como a Maria, denegrindo, ofendendo e dissuadindo as mulheres de exercitarem sua liberdade de fazer as coisas que os homens podem fazer, mas as mulheres não.

Maria e Elias eram muito diferentes e isso não impedia que ambos tivessem muitos amigos, inclusive alguns amigos em comum.

Tanto Maria quanto Elias exigiam que os amigos em comum tomassem o seu partido, e não admitiam o fato de que pudessem ter motivos para ver algo de bom no rival. Mas cada pessoa vê a vida de uma forma e alguns amigos em comum juravam que, apesar de alguns defeitos, e até alguns defeitos gravíssimos, Elias e Maria tinham sim as suas qualidades.

Amizades foram desfeitas em favor do ódio.

A verdade foi deturpada por ambas as facções, a fim de criar factoides contrários a um dos lados e atrair adeptos para o outro.

Era difícil se manter neutro e os amigos em comum tiveram que optar se abririam mão de uma ou de duas amizades. Muitos se retiraram das redes sociais, se isolaram e deixaram de emitir opiniões.

O clima nas ruas também ficou tenso. Pichações ofensivas, ameaças, brigas, emboscadas e ambos os grupos só cresciam em número de adeptos, em ódio, em visão limitada dos fatos e em vontade de eliminar o outro grupo.

A imagem do velho mendigo surdo nas primeiras páginas dos jornais, degolado, com o corpo na calçada e a cabeça jogada no jardim de sua casa, levou Maria ao auge da cólera e a fez colocar em prática o plano explodir o templo que Elias frequentava durante o culto do próximo domingo, mas o despertador tocou e Maria acordou do pesadelo, apavorada.

Era cedo e ela precisava correr para o trabalho. Mal colocou os pés fora de casa e avistou o velho mendigo surdo que disse “bom dia”, com a mão estendida para a esmola. Maria como sempre ignorou. Logo depois… lembrou-se do pesadelo. Voltou-se para o velho, disse bom dia e deu-lhe uma moeda.

O velho então se ergueu, segurou a mão de Maria, calorosamente, com suas duas mãos e falou.

_Guarde isso, boba! Bom dia! Você viu como o dia está lindo hoje? Que céu azul e que ar perfumado e refrescante?

_N… não, não havia reparado.

_Então de uma olhada! Olha que dia maravilhoso, moça! Percebe que esse dia é maior do que todas as convenções que a sociedade inventou? Percebe que apesar de tudo o que possam dizer, esse dia diz que você merece tanto respeito quanto qualquer outro ser humano e que você é livre e só precisa saber lidar com as consequências da sua liberdade, não com culpas inventadas pelos outros?

_É… é lindo sim! Não tinha reparado em nada disso. Muito obrigada. Mas, o senhor não é surdo?

_Não, apenas tento não dar ouvidos às coisas que não me acrescentam. Bom trabalho e até amanhã.

Maria chorou e abraçou muito apertado o velho mendigo. Estava atrasada. Despediu-se e tomou seu caminho, leve como nunca. Logo depois passou por Elias na calçada e ouviu seu sussurro maldoso.

_ Vadia!

Maria sabia o que ouviria e respondeu, na lata.

_Bom dia!

Deixando Elias sem ação ou combustível para o ódio, e pior, o fez pensar.

E para não ter mais pesadelos, Maria passou a fazer da vigília, a busca pela utopia.