A verdade de cada um

João, Cícero, Eloá e Raimundo são cidadãos fictícios de um país fictício e se dizem pessoas boas. Independente do que eu pense a respeito, particularmente não penso que todos sejam tão bons, não questiono o direito que eles têm de se acharem bons.

Os quatro personagens e eu também, dizemos que somos contrários à corrupção.

João é um adolescente pobre de 14 anos que, por falta de opção, não se alimenta muito bem. Não por opção, João estuda numa escola pública e desfruta de uma educação questionável. Não por opção, João, que vive numa favela, foi atingido por uma bala perdida, recebe do estado uma assistência médica muito precária e carrega como sequela, um caminhar coxo e dolorido.

Por opção, João preferiu viver pensando que seu destino poderia ter sido pior e ainda consegue se alegrar com as coisas da vida, como a paisagem da janela, o futebol e o vento no rosto.

Não por opção, João foi criado por mãe e pai trabalhadores que o ensinaram “honestidade e caráter acima de tudo”, mas viu seu pai se transformar num desempregado dependente da bebida e vê sua mãe, faxineira terceirizada, sempre exausta e definhando a cada dia, sem um sorriso, sem um prazer, assim como a mãe de sua mãe e assim como seus antepassados, se entregando ao trabalho, geração após geração, sofrendo para garantir à prole (cerca de 60% da população daquele país fictício) uma comida fétida e escassa, uma educação de bosta, uma saúde cancerosa, uma segurança perigosa e o conforto do patrão.

Por ver seus direitos roubados desde que seus ancestrais chegaram escravizados àquele país, por ver como as coisas estão agora e por uma transformação social profunda, João grita do fundo de sua alma: CHEGA DE CORRUPÇÃO!!!

Cicero é um próspero empresário que, não por opção, nasceu numa área nobre da cidade e teve, como amiguinhos, crianças todas branquinhas e bem alimentadas. Por opção de seus pais, quando criança, o pequeno Cícero pouco interagiu com crianças ou adultos pobres e sua realidade representava a realidade de apenas 10% da população daquele país fictício.

Não por opção, Cicero era filho de um pai fazendeiro e de uma mãe médica e recebeu deles, rígidos ensinamentos a respeito de caráter e honestidade.

O pai de Cícero empregava em sua fazenda, pessoas como o pai de João, que trabalhavam de Sol a Sol até se exaurirem e então eram trocados por outros iguais que reclamassem menos e trabalhassem mais. A mãe de Cícero empregava em seu consultório, pessoas como a mãe de João. Os pais de Cícero costumavam demonstrar insatisfação com o desempenho de seus colaboradores (aqueles que, não por opção, vinham de favelas, comiam mal, recebiam uma péssima educação formal, não tinham acesso à assistência médica e eram tratados sem dignidade pelo Estado) e tratá-los em tom humilhante e pejorativo na frente do filho.

Não por opção, Cícero recebeu uma educação “de primeiro mundo” e fala inglês, francês, espanhol, alemão e mal de pobres, pretos e gays.

Não por opção, Cícero, teve acesso aos melhores hospitais, o que lhe garantiu uma excelente saúde e por opção, cuida muito bem dela, frequentando academias de ginástica, se alimentando bem e tomando suplementos.

Contando com o auxílio e influência de seus pais, a empreiteira de Cícero conseguiu se estabelecer num mercado altamente competitivo e se destaca com inúmeras e importantes obras em andamento.

Cícero enxerga que o governo deu muitas esmolas aos pobres ao invés de investir em comércio exterior, incentivar a indústria e a construção civil e de priorizar a segurança e a educação. Além de tudo, um grande esquema de corrupção foi revelado e Cícero acha um absurdo que esse governo, do qual ele jamais gostou, além de roubar, tenha priorizado acabar com a fome dos pobres (aqueles 60% com os quais ele quase não teve contato na infância, não tem agora, mas é capaz de formar um conceito com base nos ensinamentos de papai e mamãe) preguiçosos e acomodados. Então Cícero grita muito irado e inflamado em sua face rubra: CHEGA DE CORRUPÇÃO!!!

Eloá é professora por opção. Ela nasceu num lar humilde, mas não passou por privações importantes. Conseguiu estudar em escola particular e teve, com seus pais, noções de ética, tolerância e liberdade. Eloá acredita que a teoria de que todos os cidadãos têm direitos básicos à saúde, educação, segurança e cultura não passa de teoria e jamais foi uma prioridade do Estado em seu fictício país. Ela vê que o Estado não age em benefício do povo, ou se age, o faz muito menos do que poderia e deveria. Ela vê que os representantes do povo, eleitos pelo voto direto, agem para que o Estado os represente a eles próprios e não ao povo.

Eloá sabe, por opção de estudar história, por estar aberta a ouvir fontes conflitantes e por raciocinar livremente, que a corrupção e a injustiça são males antigos que castigam desde muito tempo, em muitos setores da sociedade e que só se mantém porque, em seu país fictício e no seu mundo fictício, as pessoas aprendem, não por opção, a dar mais valor a coisas do que à vida. Eloá acredita que agora as pessoas já têm a opção de repensar isso…

Eloá entende que nenhum regime de governo será capaz de acabar com a corrupção enquanto pessoas tenham hierarquia e poder sobre outras pessoas e enquanto os valores estiverem invertidos. Ela entende que quando viermos a  valorizar a vida e a experiência de viver de cada ser humano como o bem maior que temos, não haverá dinheiro, troca de favores ou ameaça ou coisa alguma que possa corromper alguém. Por enxergar a vida dessa forma e por acreditar em evolução, Eloá grita cheia de esperanças: CHEGA DE CORRUPÇÃO!!!

Cícero vê, por falta de opção na infância, já que foi criado para enxergar dessa forma, que nunca houve tanta corrupção e desmando em seu país quanto há agora. Cícero vê que só precisa remover do poder aquelas pessoas das quais ele jamais gostou para que tudo se resolva e ele possa continuar enriquecendo à custa do seu trabalho honesto, que depende de explorar a mão de obra de pessoas como o pai e a mãe de João e de pagar propinas em licitações. Cícero já cresceu e tem a opção de pensar por conta própria, porém prefere continuar pensando como já pensava, porque é mais conveniente e macio.

João vê a violência crescendo dia a dia e se alegra de ser apenas manco e não morto. João vê de perto a guerra contra as drogas crescer ao invés de encolher. João vê todo mundo armado ao seu redor, traficantes maltrapilhos vendendo drogas e atirando em rivais maltrapilhos ou em policiais, que usam uniformes cinzas. João vê policiais atirando em traficantes que usam uniformes de maltrapilhos, como todos em sua comunidade e vê policiais e traficantes errando o alvo sem medo de errar. Vê armas mais modernas a cada ano. Vê, a cada ano, que mais policiais se drogam para trabalhar. Vê que nem todos os traficantes são inimigos de todos os policiais e vice versa.

Cícero vê a violência crescendo a cada dia. Teve que blindar seu carro e não anda com o vidro aberto nem sente vento no rosto, a não ser em alto mar, em seu iate, longe do povão. Cícero tem ódio dos pobres, vagabundos, preguiçosos e peçonhentos que limpam o vidro blindado do seu carro no farol. Além disso, Cícero viu um menor de idade assaltar uma senhora indefesa e isso o deixou muito indignado e com ódio de como esse atual governo permite que isso aconteça em seu país.  Cícero vê seus lucros reduzirem e brada, indignado, pelo impeachment, pela redução da maioridade penal e pela liberação do porte de armas, porque se ele pudesse, teria atirado naquele pivete e evitado o assalto.

Eloá vê a violência crescendo a cada dia. Já levou tapas e socos de alunos e pensou em abandonar a docência, mas por opção e por esperança, não o fez. Eloá vê a violência crescendo na hipocrisia de políticos que prometem acabar com as drogas, mas são viciados que protegem e financiam traficantes. Vê a violência crescendo no fortalecimento da indústria armamentista, que só prospera, financia políticos e mente dizendo que a paz na sociedade depende da liberação do porte de armas. Eloá vê a violência e a corrupção crescendo no seio de um sistema que passa por cima dos seres humanos e deixa um rasto de sangue nas ruas da fictícia Curitiba, onde educadores como ela foram massacrados por policiais paus mandados que tiveram infâncias parecidas com a de João e foram educados com uma educação bosta que ensina a obedecer.

Raimundo foi uma criança infeliz que cresceu gananciosa e virou um político renomado. Ele não vê João, porque não é período eleitoral.

Raimundo incentiva a indignação e o ódio contra seu opositor politico, que no momento é da “situação”. O opositor político de Raimundo também faz o possível para que seu povo odeie Raimundo e ambos manipulam informações a fim de enganar, a seu favor, o maior número possível de eleitores, pois assim é jogado o jogo político naquele país. Raimundo e a oposição conseguiram comprar os afetos da grande mídia (que se vende por coisas, como é habitual nesse sistema) e deturpa qualquer verdade para convencer as massas de que tudo é culpa do atual governo.

Raimundo recebe, junto de seus correligionários da bancada da bala, vultosas contribuições da indústria armamentista, por isso é favorável à liberação do porte de armas. Sua condição de político o torna quase que literalmente imune à violência das ruas. Raimundo apoia também a redução da maioridade penal, a fim de distrair a sociedade, por mais algum tempo, de quem realmente são os ladrões e os perigosos em seu país fictício. Raimundo sabe que Adan, seu filho adolescente pode ficar tranquilo e cometer a barbaridade que for, porque na hora de ir pra cadeia, quem vai é o João. Raimundo não vê com bons olhos pessoas como Eloá, que colocam ideias subversivas na cabeça dos alunos, por isso não move uma palha por uma educação que valorize os educadores e crie uma juventude pensante. Uma juventude obediente, que não questione é bem mais útil e segura. Raimundo, de infeliz e ganancioso que era, tornou-se calculista e inescrupuloso e depois de aplaudir a mais um massacre, já mobilizou seus assessores para que fiquem de olho em Eloá e em mim.

Raimundo se inflama marchando ao lado de Cícero! Raimundo ergue a mão de Cícero e grita exaltado, indignado, do alto da sua hipocrisia: CHEGA DE CORRUPÇÃO!!!!!!!

Nem todos os Joãos são coxos, nem todas as Eloás são professoras, nem todos os Cíceros são cegos e nem todos os Raimundos são imundos, mas todos podemos melhorar um pouco,  questionar, desobedecer e enxergar vidas onde vemos coisas e não mais, coisas onde só há vidas.