paixão

Discutiam política e ele via um dos amigos listar os defeitos do presidente, enquanto outro listava os de seu adversário, quando recebeu a notícia da morte de Eunice. O telefonema, atendido ao som de risadas e bater de copos, fez pesar o clima e marejarem os olhos de Elpídio.

Mais que uma amiga querida, Eunice era uma paixão antiga e Elpídio afastou o copo enquanto ouvia os detalhes da ligação. As conversas tornaram-se ruídos e a cor das coisas ficou escura e sem brilho. Elpídio deixou algum dinheiro, despediu-se constrangido dos amigos e voltou pra casa a fim de assimilar o golpe sozinho.

A dor e a tristeza o acompanharam por todo o trajeto. Não era sua primeira perda importante e ele era ciente de que a vida guardava o inesperado a cada piscar de olhos, mas naquele momento seu coração pedia para bater em outro lugar e o estômago carregava o peso de um panapaná de borboletas mortas.

Tentou pensar, teve vontade de chorar e deixou o choro chegar, mas não desmoronou. A dor era tão presente e concreta que não deixava os pensamentos se aproximarem, então deitou-se e deixou a tristeza trabalhar em sua alma sem estorvos. Situações como aquelas eram capazes de deixar, na pessoa menos resiliente, as sequelas permanentes do rancor e da desesperança e ele não queria ficar assim. A madrugada já ia alta e o sono ainda longe, quando a tristeza, já meio entediada de castigar, começou a dar brechas para que boas lembranças de Eunice fossem ocupando alguns espaços.

Lembrou-se de que estava no seminário, crente até os ossos na sua vocação para o clero e buscando uma forma de fazer o bem, combater injustiças e repartir o peso dos fardos mais pesados, quando viu Eunice pela primeira vez. A colega das aulas de filosofia era inteligente de um jeito diferente, que agradava a Elpídio. Era engraçada e quando se olhavam nos olhos, sua crença até os ossos ficava miúda perante a forte atração que se exerciam. Os amigos achavam-na chata e com uma cara esquisita, mas era linda e perfeita. A imagem, a voz e os trejeitos de Eunice empurravam para fora qualquer pensamento negativo. Sentia saudades a cada dez minutos e aquela sensação no estômago, que Eunice dizia ser uma borboletinha aprendendo a voar lá dentro, era constante. Pareciam complementares e ela sempre sabia tornar claro algum raciocínio que Elpídio desenvolvia, mas não conseguia explicar direito.

Bastaram três semanas de aulas para que Elpídio absorvesse de Eunice que não era necessário ser um homem de Deus para fazer o bem e estar comprometido com a justiça. Que muitos dos ditos “homens de Deus” eram na verdade mantenedores de injustiças seculares, muitos deles plantavam na humanidade, as sementes do medo, da intolerância e da guerra e muitos agiam de forma totalmente contraditória ao que pregavam, protegidos por uma estrutura milionária, supostamente criada para salvar a humanidade, mas que na prática, vinha salvando e protegendo mais os ladinos e hipócritas.

Não foi apenas por isso que Elpídio abandonou o seminário. Ele via o mundo gravemente acometido por um mal cujo principal sintoma era a intolerância e o principal agente, a ignorância. Apontar defeitos passou a ser um hábito cultivado, como se a bela e natural imperfeição humana fosse uma aberração. A opção da sociedade por julgar e condenar, antes de tentar entender os motivos e conviver com as diferenças, criava uma humanidade triste, belicosa e cheia de ambições equivocadas. Com Eunice, Elpídio entendeu a paixão como um magnetismo entre almas, uma vontade da natureza de completar lacunas, uma rara e maravilhosa condição em que as qualidades saltavam aos olhos e uma cura para um mundo que fazia vistas grossas para a beleza e supervalorizava o enfoque negativo de tudo. Pensando assim, Elpído não viu razão em obedecer seus superiores no curso de teologia, que rotularam Eunice de “uma tentação do demônio que deve ser evitada!”.

Fora do seminário, viveram felizes, se amando e respeitando em todos os momentos. Eram jovens e juntos se aventuraram por lugares novos, sabores inéditos, odores desconhecidos e pessoas diferentes. Foram para Machu Picchu de carona, dormiram em bons hotéis e também sob a luz da lua e correram na chuva e deram gargalhadas. Juntos amavam ainda mais a vida, o que já era uma característica de ambos. Sentiam que as borboletas em seus estômagos se multiplicavam e que também eram apaixonadas, pois voavam umas para as outras e só pareciam se acalmar quando chegavam bem pertinho. Ah, isso fora há vinte anos…

Um dia Eunice disse que precisava se completar de uma outra forma, que precisava estar mais tempo “em si mesma”, que precisava ouvir opiniões diferentes das de Elpídio e que precisava dar seus próprios passos.

No meio dessa lembrança, a tristeza de Elpídio acordou e chutou as boas recordações. Ele chorou novamente, mas aquelas doses de Eunice e de coisas boas que Elpídio recebera tornaram-no mais forte e no controle da situação. Depois de prantear alguns minutos, pediu licença pra tristeza e encheu a mente de pensamentos producentes.

Eunice o abandonara dizendo amá-lo, mas que suas borboletas não voavam mais. Elpídio sofreu muito, pois suas borboletas ainda voavam para as de Eunice, seus planos eram com Eunice e ele largara tudo por Eunice. Ele pensou que tudo não passara de uma mentira, se desiludiu com tudo e quis cobrar de Eunice a sua falta de felicidade. Mas ele a amava e acabou não cobrando nada dela.

Com o tempo, viu que fizera bem em não ter cobrado. Não podia mudar seus conceitos e passar a apontar defeitos em alguém que tivesse feito tão bem a ele, que tivesse acrescentado tantas experiências, tantos sentimentos e tanta vida à sua vida. Com o tempo ele só guardou amor e gratidão por Eunice e entendeu que a natureza já estava satisfeita com as lacunas que o casal havia preenchido, que havia muitas outras a preencher e que dependiam apenas dele e do daqui pra frente. Com o tempo, Elpídio voltou a achar a vida maravilhosa e entendeu que o amor é muito mais “o querer bem” do que “o querer ter”.

Eunice se mudou de país por muitas vezes. Sua nobre vontade de conhecer o novo, aprender e ensinar, de trocar experiências, de ser solidária aos que sofriam e de ser livre não permitiu que ela se estabilizasse num só lugar.

Passaram-se vinte anos, nos quais Elpídio se apaixonou outras vezes, por lugares, por livros, por ideias e por pessoas. Entendeu que as paixões têm também o condão de tornar as experiências únicas e inesquecíveis e que não se escolhe quando elas chegam ou quando vão embora.

Eunice e Elpídio continuaram se encontrando, mas muito raramente e sempre que se viam, viam o lado bom um do outro, se riam e conversavam sobre assuntos variados e uma borboletinha de Elpídio sempre batia as asas meio inibida.

Após vinte anos, numa noite comum em que Elpídio não depositara nenhum tipo de expectativa, o telefone tocou e disse que Eunice morrera baleada, numa área de conflito em que prestava assistência humanitária.

Vinte anos depois, Elpídio se lembrou de como a vida pode ser implacável, cruel, triste, sem cores, sem borboletas, sem lacunas preenchidas e sem ter um bom lugar para o coração bater. Lembrou-se também de que a vida tem seu lado bom, que houve Eunice e que parte do que foi Eunice nunca morrerá. Que há Elpídio e que Elpídio é capaz de enxergar esses dois lados e decidir em qual deles investir sua esperança e seus dias de permanência neste planeta. Lembrou-se de que Eunice o amava, queria o seu bem e não desejava vê-lo infeliz ou rancoroso.

Amanheceu e Elpídio chorou novamente. Agora sem tanta dor, mas com gratidão e saudades de Eunice. Sabia que em pouco tempo já conseguiria ser grato à vida novamente.