recomeco

Campinas, 09 de dezembro de 2014, 10:00 da manhã. Informo aos parentes, amigos, leitores e a quem possa interessar que a fim de esclarecer um desconforto abdominal que me incomodava há anos, fiz uma série de exames que revelaram que tenho pouco tempo de vida.

Saí abalado do consultório e me lembrei de minhas filhas. A pequena me pedia há tempos um álbum de figurinhas da moda. Não comprei. Voltei pra casa no meu ritmo habitual e ensinei a menininha a fazer uma pipa e ficamos olhando o céu com ela. Contei para ambas que estava morrendo e abracei-as muito demoradamente, pois ao saber da minha morte, lembrei que sentia por elas o amor inexplicável que os pais têm pelas crias.

Pensei que todas as pessoas eram crias de alguém e que muitas vezes esse alguém adiava o momento de demonstrar esse amor especial e morria antes que isso acontecesse.

Pensei que esse amor inexplicável que eu sentia por minhas filhas deveria servir para que eu tentasse amar da mesma fora as crias das outras pessoas, pois isso faria meu resto de vida mais proveitoso do que se eu o gastasse procurando defeitos nas crias das outras pessoas.

Abracei e agradeci muito à minha mulher e companheira de tantos anos pelos sorrisos e puxões de orelha e pela vida que ela decidiu dividir comigo.

Desejei que quando eu morresse, minhas pessoas amadas percebessem que eu não era o primeiro ser humano a morrer, que esse era o ciclo natural da vida e que isso não precisava ser triste, pois eu as preferia felizes. Além do que, eu já havia avisado que estava para morrer.

Decidi modificar algumas condutas antes que morresse e passei a perguntar mais vezes “por que não?” e quando a resposta era “porque não!” eu ousei pisar no desconhecido território do “porque não”, encontrei algumas respostas e não morri ainda.

Decidi, nos meus últimos momentos, que me daria o direito de escolher quais leis eu obedeceria. Decidi que seria prioridade questionar e lutar contra as leis tendenciosas e as leis sem porque.

Percebi que eu não teria mais tempo de mudar o mundo, mas se eu soubesse viver o resto de meus dias vendo as coisas boas que esse mundo que eu não conseguirei mudar já tem, o meu mundo já seria outro.

Decidi não mais tomar a iniciativa de ser o primeiro a afrouxar um abraço.

Decidi que meus últimos dias de vida seriam mais interessantes se eu compartilhasse o mundo com pessoas que amassem o mundo tanto quanto eu passei a amar quando soube que iria morrer.

Formulei uma teoria para não carregar culpas para onde eu fosse depois de morto. Como exigir que uma criança não tropece nos seus primeiros passos? Ela estava acostumada a engatinhar! Nessa vida sem cartilha, cada dia é um novo primeiro passo. Se caímos muito no começo é para aprender, depois, a cair sem doer tanto e a cair menos e depois até correr. Sim, até os grandes recordistas caem e não está em nossas mãos a decisão de não cair. Então caí mais tranquilo umas outras vezes.

Percebi que gostaria que cada pessoa passasse a dar valor à vida da mesma forma que eu passei a dar quando ouvi que estava morrendo. Percebi que para isso, talvez as pessoas precisassem passar por uma experiência limite, como a que eu estava passando. Que todos tinham o direito de passar por essa experiência. Que para passar por experiências, as pessoas precisavam viver bastante antes de morrer. Então desejei que todos vivessem muito antes de morrer, mesmo que por pouco tempo, porque isso não está em nossas mãos. Pelo mesmo motivo, passei a evitar comer animais assassinados que morriam antes do tempo e depois viravam a minha bosta.

Não desejei que todos fossem como eu. Desejei que cada um pudesse ser cada um, para que eu aprendesse coisas diferentes no pouco tempo que me restava.

Entendi que foi muito rico e que era coisa mais que valiosa que eu trazia dentro de mim, ter amado as pessoas que amei enquanto vivi, pois não dei espaço para o ódio me fazer infeliz e prejudicar outras pessoas. Então continuei amando bastante nos meus últimos dias.

Decidi que não gritaria mais com as minhas filhas, pois estava prestes a morrer e poderia morrer no grito e essa não era a lembrança que eu queria deixar para elas.

Viajei para abraçar, dizer do meu amor e agradecer a meus pais e meus irmãos por terem me ajudado a chegar até aquela etapa, de estar ciente da morte, com felicidade no coração.

Percebi que rir, nessa vida, é coisa muito séria, talvez até a mais séria e fiquei feliz porque não iria morrer sem ter rido muito. Nessa hora lembrei que fui muito idiota, inocente, despreparado, estabanado e isso deveria ter sido motivo para eu ter rido mais de mim, então decidi que iria, nos momentos de vida que me faltavam, achar mais engraçada e natural a minha imperfeição ao invés de ser um hipócrita carrancudo que se finge de perfeito e critica a imperfeição das crias dos outros.

Aí comecei a contagem regressiva. O médico disse que os exames estavam bons e que eu não precisava me preocupar. Parei de me preocupar tanto e vivi de uma forma diferente os anos que me restaram, não importa quantos foram. Era pouco tempo de vida, perto de todo o tempo em que pessoas nasceram e morreram antes de mim e perto de todo o tempo em que pessoas nascerão e morrerão depois de mim. Então, esperei a morte, mas não sentado, fiquei correndo atrás do sonho e me surpreendendo com cada dia.

É, decidi investir minhas últimas energias em busca do meu sonho de ver um mundo livre onde as pessoas se respeitassem, pois não encontrei, dentre as prioridades para o resto de minha vida, nenhuma que me fizesse mais feliz do que essa. E correria atrás desse sonho a cada segundo que em estivesse acordado, porque nesse sonho, meu sonho sobrevivia à minha morte.

P.S. : Passou o desconforto abdominal…