O ET

Por Luis Fernando Praga

Seu nome era impossível de se expressar com palavras humanas, então abriu uma página do catálogo telefônico e escolheu Plínio.

Enviado extraterrestre de uma espécie evoluída, Plínio recebeu a gloriosa missão de dominar a Terra.

Preferiu o Brasil como base porque, visto de cima, parecia um lugar bonito, com um povo musical, alegre, sambudo e acolhedor.

Plínio abanou o rabinho de sua orelha central e assim metamorfoseou-se em humano, deixando pra trás definitivamente a sua forma alienígena e assumindo os fortes traços de um brasileiro bem miscigenado.

Como espécime superior, Plínio não via a dominação pela força como uma opção, então procurou começar de baixo e galgar, passo a passo, as etapas terráqueo brasileiras de se atingir o poder. Precisava entrar pra política.

Instalou-se num bairro popular de uma grande cidade e vestiu-se com roupas adequadamente simples a fim de passar desapercebido na multidão.

Conseguiu um emprego de motoboy na associação de moradores do bairro e daí pra frente, devido ao seu alto patamar evolutivo, grande poder de persuasão e inteligência sobre humana, conseguiu promoções consecutivas e uma série de melhorias para o bairro. Em semanas era o presidente daquela associação e representante da comunidade junto ao prefeito.

Sua performance superavam as expectativas, até que foi abordado por um comando policial na saída de uma reunião na prefeitura. Suspeitaram daquele homem com roupas humildes e traços mestiços correndo pra moto com uma pasta de couro nas mãos. Mandaram-no parar com as mãos na cabeça, mas Plínio, ingênuo, dirigiu-se aos policiais para saber se precisavam de alguma coisa. Foi alvejado na cabeça e morreu. A comunidade sofreu pela perda daquele ilustre representante, mas ficou tudo por isso mesmo.

Mas E.Ts. dessa variedade não morrem assim tão fácil.

Plínio, de um plano superior, estudou os motivos históricos envolvidos naquele fracasso e entendeu que teria sido mais prudente ter se apresentado numa forma menos suscetível a esse tipo de injustiça social.

Voltou na pele de uma jovem que a lista telefônica sugeriu que se chamasse Arlete.

Arlete se instalou num bairro de classe média e poupou etapas. Passou em um concurso público sem estudar, valendo se sua condição superior. Conseguiu um bom salário e usava roupas mais dignas da posição que almejava alcançar.

Criou uma ONG de caráter assistencial e educativo onde dava formação profissional, noções da ética, cidadania e sustentabilidade a pessoas em situação de rua.

Demonstrou dinamismo, carisma e já disparava na liderança das pesquisas de intenção de voto para prefeito aquele ano.

Deixou claro que todos tinham direito à dignidade. Que os recursos disponíveis deveriam ser entendidos de uma forma global. Que definir quem teria acesso a esses recursos com base no poder aquisitivo era lutar contra a Natureza e que sempre que se luta contra a Natureza se perde. Que jamais haveria nenhum tipo de justiça no mundo e nem naquela cidade, enquanto houvesse uns miseráveis e outros muito abastados. Que era necessário, urgentemente, garantir a todos os direitos básicos dos quais apenas poucos desfrutavam, como prazer, conhecimento, saúde, segurança, água e comida e isso implicava no uso racional de recursos escassos. Privilégios não podiam ser permitidos. O excesso de quem tinha muito precisava ser repartido com quem tinha pouco a fim de gerar equilíbrio e uma vida melhor para todos.

Mexeu com gente poderosa, fez inimigos, foi chamada de vadia, puta, quadrilheira, comunista e mandaram-na para Cuba. Ela achou engraçado mas não foi.

A grande mídia, que fazia parte da parte que tem em excesso, passou a lançar acusações, difamar sua vida pessoal e pessoas influenciáveis pela grande mídia passaram a odiá-la.

Certa noite saiu da sede da ONG acompanhada de um amigo morador de rua e foi abordada por um carro de luxo ocupado por três rapazes fortes, brancos, saudáveis, cristãos, bem vestidos e educados. Eles a assediaram e o homem que a acompanhava se interpôs. Os rapazes desceram e desceram o cacete no mendigo; jogaram-no na mala do carro e a forçaram entrar no veículo, onde a estupraram, mataram e largaram o corpo num matagal ao lado do mendigo desacordado, que acordou na cadeia em que vive injustamente até hoje.

Sem mais poder contar com Arlete para seus planos de dominar o mundo, ele voltou às planilhas, avaliou onde havia errado, consultou o catálogo telefônico e voltou Aparício.

Dr. Aparício era um homem branco, forte, saudável, de olhos claros, cristão, bem vestido e educado. Fixou-se num bairro nobre e forjou documentos que lhe davam títulos de doutor em ciências políticas, econômicas e sociais.

Tinha um discurso que agradava aos poderosos e convencia às massas, e foi eleito presidente do Brasil.

Tinha poder, mas era pouco pra quem desejava dominar o mundo. Percebeu que apesar de ser presidente não podia fazer tudo o que queria. Agradando aos poderosos e aliando-se a eles como fizera, acabara por reduzir sua capacidade de atuação sobre a sociedade.

Se colocasse em pratica sua meta de redistribuir recursos de forma justa desagradaria a grandes corporações, instituições e nações muito poderosas que agiam com uma truculência disfarçada, muito mais bem organizada e ainda mais descompromissada com a vida humana do que os policiais que mataram Plínio ou os rapazes que mataram Arlete. Seria morto mais uma vez.

Constatou que havia forças multilaterais e interdependentes se digladiando pelo domínio do mundo que não hesitavam em massacrar pessoas, espoliar o planeta, difamar adversários, criar dogmas escravizantes, leis proibitivas e inventar inimigos, tudo a fim de manter o esse estranho equilíbrio alimentado por vidas humanas.

Dr. Aparício via de seu gabinete uma sociedade machista e viciada em consumo.

Via uma série de Plínios inocentes sendo perseguidos e assassinados por policiais que seguiam ordens de gente que desviava dinheiro público, manipulava a imprensa, chantageava, mentia, corrompia e mandava matar.

Dr. Aparício viu muitas Arletes inocentes sendo ameaçadas, discriminadas, oprimidas, espancadas dentro e fora de suas casas.

O vício pelo consumo consumia recursos não renováveis de forma cancerosa e cegava as pessoas de enxergarem as cores da vida. As pessoas não conseguiam ver o Plínio e sim suas roupas surradas, de modo que um paletó e uma calça de linho teriam evitado sua morte. As pessoas não viam que o assassinato de Plínio não era culpa de sua falta de paletó, mas da incapacidade de se enxergar a vida de um irmão que recheava aquelas roupas.

A sociedade marginalizava, estuprava, assassinava e transformava de vítimas em rés, centenas de Arletes diariamente. Dr. Aparício sabia que a culpa nunca fora de nenhuma Arlete, mas da cegueira de homens e mulheres machistas. De não se enxergar a vida humana além do rótulo preconceituoso e ignorante imposto venda negra do machismo.

Dr. Aparício viu seu povo convenientemente dividido em blocos rivais, cada um se considerando infinitamente superior ao outro, sem ver que ambos eram controlados pela inércia das engrenagens de um sistema obsoleto criado muito tempo atrás por gente como eles e que precisava ser radicalmente transformado.

Ele entendeu que se todo aquele povo tomasse consciência do que acontecia e questionasse profundamente suas vidas, não trocariam seu tempo pelas migalhas que seus senhores jogavam no chão e pelas quais competiam como bichos, sem hesitar em matar.

O Dr. Aparício sabia que nenhum ser humano seria capaz de chegar aonde ele chegara sem aceitar as regras daquele jogo em que o objetivo era o dinheiro e o poder. Todos, em algum momento do trajeto, ou pela eleição, ou pela governabilidade, ou pela manutenção de suas regalias, faziam vistas grossas para as mortes de muitos Plínios, Arletes e anônimos. Gente que se tivesse o dinheiro com que um político paga um bom jantar, poderia ter tido um atendimento de saúde mais digno e não ter morrido.

As pessoas não precisavam de um bom governante. Precisavam de, numa profunda incursão interna, entender onde foi que perderam o governo de suas próprias vidas. Precisavam entender que não odiavam por vontade própria, mas por uma conjunção de fatores externos que interferiam na formação de suas convicções e crenças. Precisavam entender que antes de ser uma sociedade perfeita criada por indivíduos, eram indivíduos acomodados com a sociedade falha que haviam criado.

Dr. Aparício, apesar da pretensa superioridade de sua raça, aprendeu coisas importantes com a espécie humana. Havia amor, havia alegria, havia esperança e havia uma força inexplorada dentro de cada criatura, e isso não o tornava superior a ninguém. Havia ilusão, ignorância, inversão de valores, ganância e ódio, mas tudo isso podia ser esclarecido com o amor, a alegria de viver, a esperança e aquela força interior cujo potencial ele apenas supunha.

Ele entendeu que enquanto as pessoas trocassem suas forças de trabalho por dinheiro, o principal valor, o da vida, estaria obscurecido. Enquanto houvesse o capitalismo que induzia ao vício do consumo, o valor das vidas seria subestimado, haveria corrupção e escravizados.

Enquanto houvesse dominação, pelo estado ou pelo patrão, também haveria depreciação da vida humana, corrupção, vaidade e privação de liberdades, e enquanto a liberdade não fosse plena, o indivíduo sentiria medo de se aprofundar no tão importante conhecimento de si próprio, de encontrar seu potencial e sua vocação na vida.

Dr. Aparício entendeu que dominar o mundo não era uma atitude digna de uma estirpe superior. Era o mesmo tipo de ilusão da qual os humanos eram vítimas, então mudou seus planos de forma radical, pois aquela inércia exigia uma guinada radical.

Entrou no ar em horário nobre, e num pronunciamento à nação contou como ele acreditava que a vida deveria ser vista dali pra frente e como era equivocada a forma como ela vinha sendo vista até ali.

Reiterou os seus motivos e estabeleceu as seguintes mudanças numa medida provisória:

*Abriu mão de seu salário, regalias e imunidades. Estava certo de que não precisaria deles para viver.

*Da mesma forma, todos os representantes dos três poderes abririam mão de tais privilégios e apenas continuariam em seus cargos se tivessem algo a oferecer à nação de forma despretensiosa.

*Proibiu o uso de agrotóxicos em todas as lavouras do país. Seríamos capazes de viver sem comida envenenada e sem alimentar a indústria do veneno.

*Proibiu a importação de produtos que fossem fruto de mão de obra escrava. Viveríamos melhor sem explorar gente inocente e seríamos mais felizes vendo essa gente experimentar a liberdade, feliz e desfrutando da vida, com os mesmo direitos de todos os seres humanos.

*Proibiu a importação de produtos de países que fomentassem a guerra e que lucrassem com a indústria bélica. Conseguiríamos sobreviver num mundo sem armas e bombas atômicas, já que sobrevivemos até hoje num mundo com elas.

Depois de anunciar outras medidas que nossa sociedade considera extremamente radicais, despediu-se da nação sugerindo mais tolerância, mais abraços, menos medos e uma busca incessante pela liberdade e auto conhecimento. Pessoas livres eram sem dúvida mais confiáveis do que as aprisionadas.

Dr. Aparício foi encontrado morto em sua cama com um tiro na cabeça e na manhã seguinte a imprensa noticiou o “suicídio”.

O presidente da câmara assumiu e disse ao povo que infelizmente o Dr. Aparício enlouquecera, que com fé em Deus tudo seria colocado novamente nos trilhos e que ninguém parasse de trabalhar.

Nenhuma das ações previstas na medida provisória foi colocada em prática e a vida no país continuou muito, muito bem, como era antes, exceto por algumas poucas pessoas que ousaram ouvir o doido do Dr. Aparício.

Pipocaram boicotes aqui e ali, movimentos de insubordinação e agrupamentos humanos crentes na possibilidade da evolução, de uma coexistência pacifica e no uso sustentável da terra.

Nosso E.T. instalou-se, por fim, numa dessas comunidades, pois se afeiçoou muito à espécie humana, aos abraços, ao planeta e ao Brasil. Aprendeu a amar a terra e extrair dela o seu sustento. Aprendeu a conviver com as diferenças entre ele e nós e a chorar de alegria e esperança.