Aedes aegypti

Acordei espirrando. Uma sequência de cinco unidades de espirro. Me levantei e avaliei que, no geral, me sentia bem, tirando aquela região acima do pescoço, que aparentava abrigar, além do cérebro, uma toalha de banho úmida que teria sido introduzida por alguma das narinas cabeça a dentro.

Olhei no espelho pra conferir se eram os olhos mesmo que doíam. Eram. Notei intrigado que as juntas também não iam bem. A maioria parecia ter uma colher de chá de areia que roía os ossos. Menos de 50% delas, além da areia, davam a impressão de terem sido acometidas por picadas de jararaca. Mas eu tava bem.

Minha mulher olhou pra mim, se afastou amedrontada e disse pra eu ir já pro médico, que com saúde não se brinca. Obedeci feliz, que ia ganhar um atestado e não ia ter que trabalhar naquele dia. Coloquei bermuda e camiseta pra aparentar mais saúde e tomei a condução. Ocupei meu espaço, em pé, de 20 cm² e como sou um cara ligado à filosofia e às questões sociais, imaginei que estava cercado de gente empoleirada que rumava, cada um para o seu destino, que era alguma forma de ganhar dinheiro pra dar sentido à vida. Mas a percepção filosófica rapidamente foi substituída pela percepção olfativa. Havia cheiros por ali, era inegável. Procurei me concentrar e selecionar apenas os olores agradáveis. O máximo que consegui foi um discreto cheirinho de banana que logo foi encoberto pelos outros. CC, cigarro, bafo, bodum, xixi, chulé e pum. Por sorte meu nariz entupiu. Passei a respirar de boca aberta.

Reavaliei e vi que não tinha sido sorte não. Começou a se formar em minha garganta uma estrutura de saliva viscosa que acumulava as notas dos odores ali presentes. A coisa foi se avolumando e grudando nas papilas gustativas da minha inocente língua. Ela já não cabia mais na minha boca. Se eu não fosse tão atrelado a convenções sociais idiotas, ou se eu fosse uma lhama, teria cuspido, mas sou educado e engoli. Senti as mãozinhas da coisa tentando se agarrar ao meu esôfago que pensou em golfar, mas eu o proibi. Lentamente aquela matéria amorfa se acomodou no meu estômago, que, de vingança, resolveu me retribuir com uma asia desumana.

Cheguei ao meu ponto e engoli outra coisinha filhote que já tava formadinha. Comecei a andar e o nariz desentupiu. Pensei que não havia justiça no mundo. Cheguei ao médico e aguardei, em ambiente não menos carregado que o do ônibus, que a atendente me chamasse. “Sr. Luís Fernando!!!”. Fui lá e ela me perguntou se era SUS ou particular. Em particular, sussurrei pra ela que era SUS. Ela gritou: “BERNADETE, SUS!!!”.

Bernadete veio e fez uma triagem completa, perguntando meu nome e CPF. Em breves duas horas o doutor me chamou, me viu, disse que era dengue, me passou um remédio pra dor e febre, alertando que não seria útil, pois se eu tomasse o remédio bom para tirar a dor e a febre, poderia sangrar até a morte, então tinha que ser um remédio mais simbólico. Orientou que eu não exagerasse na carne vermelha nem na bebida alcoólica. Disse pra eu não me preocupar, que o problema era se eu pegasse a dengue tipo 2, que fatalmente me faria sangrar até a morte. Se despediu sem tocar em mim, no que sou grato… mas desconfiei um pouco.

Fui na salinha ao lado coletar sangue pra confirmar a suspeita. Pelo SUS levava 120 dias pra ficar pronto, beleza, nem 6 meses. Agora era voltar pra casa, mas já tava vacinado, iria a pé, não sou idiota pra pegar aquele maldito ônibus de novo. Ainda tinha asia. Resolvi fugir da poluição das grandes avenidas e fui pelo parque pra casa, beirando o lago… a água parada. Me deparei com algo que parecia o boitatá ou um portal pra outra dimensão, mas era apenas uma nuvem… de pernilongos… de dia… perninhas listadas. Eles me atacaram. Por sorte não sou um cara hipocondríaco, o que leva sempre a atitudes racionais e equilibradas, mas, por azar, tenho de verdade, a síndrome do pânico, o que, aliado a um azar no sentido mais genérico, subjuga totalmente qualquer equilíbrio.

Corria e gritava no parque enquanto os malditos aedes me sugavam, esfregando as patinhas e olhavam com aquele olhar do tipo 2. Podia ver os balõezinhos de pensamentos saindo da cabeça dos insetos, com os dizeres “perdeu, otário!”. Não gosto de dizer isso, mas consegui deixar os limites do parque aos prantos.

Continuei correndo pelo passeio, porque, ao que parece, um indivíduo vetor da dengue havia se afeiçoado à minha pessoa, ou não estava totalmente satisfeito ainda, e me seguia implacavelmente. Na esquina, um aglomerado de pessoas esperava o sinal abrir. Reconheci minha vizinha, dona Ordóxia, à margem do grupo. Segurei firmemente a velha e interpus sua jugular entre mim e o mosquito, que, meio a contra gosto, chupou. Pra disfarçar, como bom escoteiro que nunca fui, atravessei a anciã pro outro lado da rua. A ingrata sequer agradeceu.

Voltando pra minha calçada, educado que sou, parei e disse “até logo, dona Ordóxia!”. Foi quando o ônibus me pegou em cheio. Eu teria desmaiado ou até morrido se não fosse a síndrome do pânico me lembrando as palavras do especialista: “sangrar até a morte, sangrar até a morte!!!!” Então preferi ter uma crise histérico-convulsiva, espalhando sangue do nariz pela sarjeta e pelas pessoas despreparadas que tentavam me ajudar, enquanto gritava “eu vou morrer, eu vou morrer!!!” e chorava como uma garotinha, mas não gosto de falar muito isso.

O pessoal do SAMU teve muito trabalho e altas doses de sedativo pra me conter. Graças a Deus estou quase bom, tirando as juntas, hoje, 130 dias depois. Quase dei meu primeiro sorriso em meses, quando chegou o resultado do exame dizendo que não era dengue. O especialista vai tentar tratar como gota úrica, porque as articulações incharam e ficaram esverdeadas. Não tolero mais zumbidos, nem que zombem me chamando de zumbi, devido ao modo como tenho me locomovido e ao aspecto cansado. Ah… gosto sempre de ver o lado bom das coisas. Na correria da consulta, me esqueci que pedir o atestado médico. Acabei desempregado, o que facilitou muito a dieta com restrição de carne e cerveja, que continua atual pra gota úrica, é muita sorte!