(Foto annie spratt- upl)

.Por Lilian Oliveira.

O fim do ano está aí, batendo na trave nos 45 do segundo tempo, piscou é gol. Pior quando é contra, e o árbitro finaliza o jogo e a esperança de ir para a próxima fase caí por terra. Os torcedores que fizeram até promessa ficam com aquele sentimento de descrença e de sei lá… O texto a seguir nada tem a ver com futebol. E o futebol não está aqui como analogia. Mas, como uma forma eufêmica de tentar suavizar as palavras que venho gestando há tempos e não conseguia parir. Confesso que o desejo de meter a política e o dito cujo de arremedo que tivemos como desgovernante aqui no caldo é gigante. Mas, não sucumbirei. A tentativa desse texto é a de falar do lugar da perda. É tentar dizer o indizível que se fez na minha vida e na vida de muitos entre 2019 e 2021.

Sempre que se aproximava essa época de fim de ano eu ficava, como eu dizia, meio sei lá… Era tipo um misto de ansiedade para começar as decorações, eu era a louca do natal se bobeasse no início de Outubro eu já estava colocando os enfeites, principalmente as luzinhas. Achava um charme, bucólico, era pura magia para mim. Aquelas luzinhas enchiam meu coração de um quentinho! Acho que fosse para nomear esse quentinho poderia ser ternura e esperança. Além disso, vinha junto um sentimento de aímeudeusdocéu! Batia aquela nóia de ano está acabando e eu ainda não fiz isso ou aquilo. Ah, não! A balança está dizendo que não perdi aqueles quilos que prometi. Ah, não! Também não visitei a amiga na casa nova. Aquele café então que combinamos em março, até hoje não conseguimos. Ou, nossa! O bebê do fulano está com 3 anos já e ainda não fui conhecer. Tenho que fazer a lista de presentes. Tenho que fazer a lista para o ano novo. Como se o ano novo fosse a personificação de uma pessoa. Enfim, esse era o caos quase todo do meu “sei lá” de fim de ano.

Mas, desde o fim de 2020 tem sido um sei lá muito confuso, contraditório, irreal. Esse sei lá aí que descrevi acima, cedeu lugar a um sei lá que ainda não consigo contorna palavra que o nomeie. Contando com a internação em 22 de dezembro de 2020, esse será o quarto fim de ano sem sua presença. Tudo aconteceu exatamente entre a semana de natal e a primeira semana de janeiro. Era incompatível! Um ano novo chegando e uma vida deixando de existir. Que paradoxo de – coloque o palavrão que quiser aqui -! Todo aquele sei lá de antes da ansiedade boa, da magia e da esperança que se fazia com as luzinhas, os enfeites, o reencontro com familiares e parentes, se transformou em angústia, escuridão, solidão e desesperança. Era o incompreensível da vida subvertendo a “lógica”. Como um filho pode ir primeiro que uma mãe?! Não há nada que consiga fazer com que isso seja aceito. Parecia que eu havia sido jogada em um caleidoscópio que a cada movimento causava vertigem. Porque ao invés de cores era composto por sentimentos e emoções irreconhecíveis. Da paralisia, mudez, choro, agitação, raiva, ódio, saudade, culpa, desamparo, solidão até o “sei lá”. Sabe aquela frase do personagem Chicó “Num sei. Só sei que foi assim.”. Pois bem. Não havia explicação, só o fato em si. Só havia uma (in)certeza. Que eu teria que lidar com isso de alguma forma.

Aos poucos esse caleidoscópio doido foi se transformando. Deixando de causar vertigem, mas, não o incômodo. Esse aí ganhou contornos outros. Ser atravessada por esse paradoxo da inversão da ordem natural da vida, a que supomos que seja assim, é uma travessia da qual não se pode voltar o mesmo. É como uma ponte que se rompeu e não pode ser reconstruída no mesmo lugar. Porque o ponto que a sustentava não está mais lá. Mas, é preciso haver uma ponte. Não é possível simplesmente que ela deixe de existir. Ela precisará ser reconstruída a partir de algum outro ponto que te levará de um lugar para o outro. Também não é possível não a atravessar. Não. Isso não é opção. Por mais difícil que seja. Atravessar é religar de uma forma outra da que era conhecida. E busca tentar tornar reconhecido esse outro lugar.

Mesmo ainda sentindo o raio do “sei lá”, esse ano eu quero enfeitar árvore, comprar todos os enfeites possíveis. Claro, as luzinhas que não poderão faltar! Talvez você pense que seja fácil, que está superado. Não. Não está. Quero fazer isso para tentar reconstruir minha ponte partida de outro lugar. Quero que meu coração seja inundado pela magia do encantamento, ternura e a esperança de outrora. Mas, não falo da esperança do verbo esperar, de se conformar. Falo do lugar da esperança do verbo esperançar, que significa buscar, fazer o possível, transbordar. Fazer minhas próprias bordas no vazio que ficou. Não tenho mais a presença física que me sustentava no lugar de mãe e tudo o que a isso correspondia. Mas agora posso começar a me reconhecer nesse mesmo lugar de outro jeito, a ausência física que causa o vazio, começa a se sustentar na presença interna, nas lembranças do som da voz dizendo mãe, no som das risadas quando ficava rolando os reels, no som das chaves fazendo barulho antes de abrir a porta, no som do violão que vinha do seu quarto, no cheiro do perfume que ficava no corredor ou da inhaca que ficava no quarto às vezes, do calor, da textura e força do abraço que muitas vezes eram desajeitados… Essas lembranças são minhas, estão mim. E nada me tirará elas – claro, isso se eu não for visitada pelo alemão “Zheimer”. Enfim, tudo uma hora acaba. Aqui vou terminando esse parto doloroso que foi parir essas palavras. Voltando ao natal, sabe aquela estrela que se coloca na ponta da árvore? Àquela maior e mais bonita que significa a estrela que guia? A minha está um pouco mais além do topo da árvore. Brilhando em algum lugar lá em cima, onde meus olhos podem definir, mas, meu corpo se atravessa por sua luz. E sabe as luzinhas que enfeitarão minha casa, elas serão minha metáfora.

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Nota: Dedico este texto a todas as vítimas da pandemia que perderam não só seus entes, mas que perderam seus lugares de ser com eles. Dedico a todos que tiveram suas vidas e seus sonhos interrompidos. Dedico In memoriam a todas as vidas que deixaram de existir fisicamente pela ordem do invisível chamado Covid-19, e pela ordem da inexplicável desgovernança da época que contribuiu criando um efeito mais catastrófico com a negação da vacina, com o tratamento de descaso e de piada com algo tão sério. O efeito disso tudo aparece em nossas sequelas psíquicas, feridas emocionais e vazios a serem subvertidos.

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Por: Lilian Oliveira, mãe de Milton Júnior que no dia 19 de outubro desse ano de 2023 completaria 32 anos de vida.

Psicanalista e escritora, com os arrobas no instagram: os.nos.de.nos.psicanalise e s_escrevedeira