Por Luís Fernando Praga

Ideia fixa

Muita gente tem reclamado: Agora é só impeachment, não tem outro assunto não?!

Claro, visto a carapuça e recebo a indireta como um direto no queixo.

Também preferia assuntos mais agradáveis, tanto que fiz campanha para que o impeachment não acontecesse, mas ao insistir no tema trato apenas de ser coerente comigo mesmo. Explico:

Um dia percebi que escrevendo conseguia me expressar melhor que falando e tomei gosto pela experiência. A partir de então tenho escrito, mostrado quem sou e o que penso com a máxima profundidade que minhas limitações permitem.

Mas nem eu nem o que eu penso nascemos ontem, temos uma história e foi ela quem formou o que somos hoje.

Nasci e cresci em Franca, uma das cidades mais conservadoras de São Paulo. Vivi num lar que, durante o regime militar, às refeições, discutia política, criticava a ditadura, a corrupção e sonhava com um mundo melhor. Pasmem, as refeições eram ocasiões cotidianas e agradáveis em que a família se reunia, comia, se falava e se ouvia.

Meus primeiros 14 anos foram os últimos 14 anos da ditadura no Brasil, tive um avô preso político e em minha casa éramos todos contrários ao regime de exceção. Não éramos contrários à ordem e ao progresso, mas à censura, à falta de liberdade, à corrupção, à tortura, às prisões arbitrárias e aos assassinatos nas prisões, tudo amparado pela Lei e pela Justiça então vigentes. Aquilo não era justo nem legal nem conduzia o país à ordem e ao progresso.

Mas aquilo era assim.

Lembro-me de um escândalo de corrupção e tráfico de pedras preciosas envolvendo a Rede Globo, malotes com cocaína e o então ministro da justiça do general Figueiredo, Ibrahim Abi-Ackel. Com toda aquela falta de transparência, ninguém foi condenado e meus amiguinhos da escola sequer comentaram sobre o “escândalo das joias”, sobre tortura, sobre a corrupção ou a impunidade.

Estudei em uma boa escola particular nos tempos em que o PT surgiu como uma opção à esquerda e quando Lula apareceu como líder das classes trabalhadoras, perto de 1980. Surgia uma ameaça à perpetuação do poder nas mãos das estruturas dominantes. Logo começou a se formar, no senso comum, com ajuda da mídia, uma imagem de Lula e do PT como afrontas aos valores cristãos e da família.

Meus coleguinhas de escola que não se indignavam com a corrupção nem com a impunidade e que naquela época diziam: “analfabeto vagabundo, precisa apanhar e apodrecer na cadeia!”, talvez por influência familiar, talvez por serem maduros e politizados já aos 10 anos de idade, são os mesmos que hoje dizem: “analfabeto vagabundo, precisa apanhar e apodrecer na cadeia!”.

Os mesmos amiguinhos, muito cristãos, que temiam comunistas, que ofendiam os negros, os gordos, os gays e os mais pobres. Os mesmos que desrespeitavam as meninas, que conversavam muito sobre a potência dos carros de seus pais e que ridicularizavam a música que eu já ouvia, hoje são adultos com diplomas, esbravejam contra a corrupção, defendem a volta da ditadura, argumentam com truculência e com ofensas, jogam lixo pela janela de seus potentes carros, desrespeitam mulheres, gays, negros, pobres, minorias marginalizadas e o Chico Buarque.

Por ter crescido neste ambiente, eu sei que a corrupção vem de muito antes de 1980. Sei que o PT se aliou ao que de pior existe na política e assim contrariou grande parte do que pregava. Sei que Lula pode ter cometido delitos e para isso deveria existir uma investigação idônea, mas sei que Lula está muito longe de ser um símbolo da corrupção no país. Sei que ele promoveu uma reforma social transformadora e inclusiva como nenhum governante foi capaz ou desejou. Sei que tal transformação ameaça um modelo econômico dependente da exclusão, de explorar a mão de obra dos pobres, de cultivar muitos pobres e ignorantes e de manter uma classe média alienada. Sei que o expressivo aumento na representatividade dos excluídos em escolas, universidades e na vida social do país também são uma ameaça às regras do sistema.

Sei que, quando escrevo isto, pessoas ficam iradas, porque seus olhos se acostumaram a ver apenas vilania em Lula e em quem argumenta a seu favor. O que me intriga é o orgulho que as pessoas ostentam pelo fato de sentirem ódio e de se privarem de enxergar enfoques que não dependam de odiar.

Não generalizo e sempre critico os rótulos, mas, em regra, quem foi criado ouvindo “verdades” preconceituosas e fascistas, não conseguiu deixar de se tornar um adulto preconceituoso e fascista, nas mais variadas nuances do fascismo, mesmo que não se dê conta disso. Não aponto todos os defensores do impeachment como gente preconceituosa, fascista ou interesseira, estou certo de que há pessoas que acreditam, com nobreza de sentimentos, que o impeachment seja a melhor solução para o país; respeito-os, mas não concordo.

Eu sei de tudo isso, da mesma forma que alguns sabem que o Lula é o maior bandido da história, que o PT acabou com o Brasil e que a Dilma é uma vaca maldita. Minha convicção política não é menor que a certeza deles, elas apenas se construíram a partir de premissas e argumentos diferentes.

Meu argumento não quer impor, ele quer fazer pensar, mas só pensa com qualidade aquele não está odiando ou impregnado de certezas. Meu argumento não depende de ofender ninguém, ele não se baseia na certeza de que alguém seja um câncer, ele não é o ódio que sinto de quem não concorda comigo ou de algum político, pois tenho ciência de que não odeio pessoas. Meu argumento é pela liberdade e pela igualdade entre os seres humanos.

O bom senso jamais esteve ao lado dos perseguidores, dos intolerantes ou dos imediatistas. Meu argumento me diz que é historicamente mais assertivo proteger a democracia, a representatividade do voto, as reformas sociais e as eleições que derrubar um governo eleito pela maioria.

Enquanto alguns me odeiam e me acham um chato por só falar de impeachment, eu procuro levar a todos em consideração; nem sempre consigo, admito.

Encaro nossas discordâncias como reflexo da ignorância, mas não diminuo ninguém quando chamo de ignorante: sou tão ignorante quanto todo mundo, apenas ignoramos coisas diferentes e lidamos com isso de formas diferentes, no entanto tenho noção de minha ignorância e busco sempre diluí-la em algum conhecimento, sem jamais encobri-la sob preconceitos.

Então, quando vejo Ibrahim Abi-Ackel como deputado federal e relator do mensalão em 2005, vejo uma impunidade secular, um corporativismo nefasto e a antiga e bem sucedida estratégia de nos ocultar fatos políticos importantes.

Quando vejo que julgar “pedaladas fiscais” como “crime de responsabilidade” gera discordâncias entre renomados juristas, mas que isso não é julgado por juristas, e sim por nossos deputados e senadores, enxergo que há interesses maiores que a justiça e o bem do Brasil.

Quando vejo o congresso votando o impeachment da forma que votou e Eduardo Cunha e Michel Temer como primeiros beneficiários do ato que jogou na privada o poder do voto de 54 milhões de brasileiros e quando vejo a rede globo, Jair Bolsonaro, Ronaldo Caiado, Aécio Neves, Marcos Feliciano, Janaina Paschoal etc. como grandes incitadores à polarização social e à banalização do principal preceito daquela democracia duramente reconquistada, vejo claros interesses políticos e de forças conservadoras em derrubar um governo que as ameaça. Conservadores clamando por mudanças são um contrassenso semântico e histórico; eles desejam conservar o status quo em seu favor, jamais mudar.

Quando vejo uma “justiça” superpoderosa atuando de forma tão omissa e parcial, protegendo ricos e poderosos, superlotando as cadeias de pobres e sendo tudo o que a verdadeira Justiça não é, enxergo aquele meu sonho de democracia e de um país melhor retrocedendo à condição de pesadelo da ditadura.

Quando vejo o povo em pé de guerra, exigindo punições sem julgamento e o extermínio de uma ideologia, sinto fraquejar minha motivação de viver pela justiça social, pela paz, pelo amor, pela poesia, por um mundo sem guerra, com mais solidariedade e menos egoísmo, com mais sustentabilidade e menos consumismo e minha confiança na democracia é duramente golpeada.

Sempre escrevi conteúdo político, de caráter social, de amor, de paz e de liberdade, por isso sempre escrevi contrariamente à opressão e a qualquer tipo de discriminação.

Nunca escrevi contra pessoas, mas contra um sistema que trocou o valor da vida humana pelo valor do dinheiro e contra um poder nefasto que envolve certas pessoas e as torna tão negativamente importantes.

Quando escrevo insistentemente sobre minha contrariedade em relação ao impeachment, continuo escrevendo sobre tudo o que sempre escrevi. Infelizmente agora coloco menos beleza em nas palavras, pois esta triste situação salta aos olhos delas.

Eu, meu pensamento e minhas palavras sabemos que a beleza e a esperança ainda existem, mas não estamos tendo facilidade em encontrá-las.

Minhas palavras acreditam que a beleza não se sinta bem em ambiente de ódio, elas creem que o ódio seja o amargo fruto da ignorância e que apenas o esclarecimento possa minguá-lo e nos restituir a beleza, por isso, sinto muito, mas minhas palavras teimam em não mudar de assunto enquanto não conseguirem clarear um pouco mais de belezas.