O Abnegado

A partir de determinado momento em minha vida, um dia conto essa história, escrever passou a ser fisiológico. Às vezes vital, como respirar. Às vezes como uma terapêutica válvula de escape, para tirar do organismo algo que não faz bem lá dentro, ou que fará melhor indo pro lado de fora, como certas necessidades fisiológicas menos nobres, mas tão essenciais quanto respirar. Às vezes é só gozação.

Apesar disso, tem dia que a coisa não flui, vira uma asfixia, uma prisão de ventre, um coito interrompido e aí é preciso ser abnegado e insistir.

Recordo que no comecinho do meu amadorismo pelas palavras, ia escrever sobre o universo conspirar a favor dos bons, essas coisas esotéricas que eu não acredito, mas tenho medo de dizer pro universo que não acredito, então o universo resolveu conspirar contra. Evitarei os palavrões.

Nesse dia fiquei aguardando a inspiração, atrasada em duas horas para o nosso encontro, até que lancei mão de um recurso que nunca falha, mas pouco uso para não perder a propriedade intelectual da obra, que é fazer a pose do Chico Xavier psicografando. Foi tiro e queda, era um domingo de manhã e a ideia caiu completa no cérebro, download concluído, só precisava copiar e colar.

Digitei as primeiras letras e já havia um conteúdo a respeito de causa e efeito, que vinha tomando a forma das minhas frases, mas minha gata começou a lamber meu pé por debaixo da mesa. Tem gosto pra tudo. Parei de pensar, meio a contragosto e afaguei com os pés a barriguinha peluda. Servi ração e ela se distraiu mastigando.

Recuperar o fio da meada pode levar tempo, mas eu já estava inspirado e foi rápida a retomada do raciocínio. Também foi rápida a ação de minha caçula, surgindo pela escada e me surpreendendo com um salto no colo, estilo golpe de m.m.a. , seguido de um abraço de esquecer a dor. Agradei, brinquei, conversei e dei lápis e papel pra ela se divertir no piso superior da casa.

Parte de mim já estava meio irritada, mas era uma parte pequena, podada pela parte tolerante que dizia pra não me irritar, e logo reiniciei o escrito: “…atitudes motivadas pelo ódio servem para cobrar de outrem, algo que deve ser resolvido intern…” e tocou a campainha.

Duas senhoras me pediam um minuto de atenção e eu pensei em reformular aquela frase sobre o ódio. Disse, educadamente, que não era um bom momento e que estava ocupado. Uma delas me olhou como quem olha pro demônio, mas a outra fez cara de gatinho carente e disse, sorrindo chorando, “é só um minutinho” e eu não encontrei modo de dizer não. Ouvi atentamente as explicações para o meu sofrimento e sobre como as pessoas como eu queimariam num lugar fedorento e sem cerveja, no dia em que Deus perdesse a paciência. Aos 10 minutos de conversa, perdi a paciência.

_Desculpem, não era um minutinho só? Não, não estou interessado no livrinho hoje, muito obrigado.

Fui reduzido à caca pelo olhar de ambas, me despedi e voltei a ordenhar meus pensamentos.

Precisava acabar antes do futebol e isso misturava em minha mente, tabus com barreiras, metáfora com pequena área, humanidade com onze pra cada lado e diabo com juiz, quando meu vizinho bateu à porta pedindo emprestada a furadeira.

Cumprimentei o Getúlio, entreguei a ferramenta sem dar chance a ele de iniciar uma conversa e voltei pro texto: “…não é porque as coisas não saem da forma que esperamos que devemos desistir de nossos sonh…” bruuuuuuuuuuuuuuuuu!… “… de nossos sonhos, pois os sonhos são o combus…” bruuuuuuuuuuuuuuu!…, na minha orelha.

Getúlio fazia um furo bem atrás de mim. Reformulando: Getúlio promovia um orifício em sua parede na posição coincidente com a com as coordenadas geográficas de meu encéfalo. Se a broca fosse maior atingiria meu cerebelo. Tive que parar e fui ter com o Getúlio. Coloquei a cabeça pra dentro da porta do vizinho e inqueri se iria demorar com o barulho. Getúlio pediu desculpas e disse que só estava preparando a parede para colocar os enfeites do aniversário do filho.

_Eu sei que tá incomodando, vizinho, mas é rápido. É que as casas são germinadas e dá a impressão que o barulho maior do que é de verdade.

_Geminadas!

_Sim, casa germinada é foda!

_É geminada, Getúlio!

_Eu entendi, vizinho, fazer o que? Se você tivesse condições, comprava uma na Alfavila, mas quem mandou ser povão? Tem que se virar com a germinada mesmo, rarará.

“Quem vai se virar e levar uma germinada é você, seu ignorante!” Tive vontade de dizer, mas sou educado e preferi apenas informar:

_O correto de se dizer, Getúlio, quando uma casa compartilha a parede com a casa vizinha, é geminada, e isso dá a perfeita noção de que o barulho que você está fazendo na minha cabeça é muito mais alto do que o permitido para um domingo cedo. Meu querido, por favor, seja breve, que estou tentando escrever.

Getúlio não gostou do meu tom, mas logo silenciou e veio devolver a furadeira. Sorrindo, convidou-me a participar da festinha do Gédino. Teria uns comes e bebes. Agradeci e disse que tinha um compromisso. Ele se foi e eu me deixei novamente dominar pelo texto. “… os sonhos são o combustível da felicidade, por isso é importante que eles nunca acabem…” bém! bém! bém! bém! bém! O Getúlio martelava algum metal pra enfeitar a festinha do Gédino, com certeza. Com certeza estava batendo o recorde de decibéis e com certeza estava ficando uma porcaria, assim como meu texto. Mas eu não tenho sangue de barata e fui, irritado, tirar satisfações. Toquei a campainha, bati na porta, gritei, mas tudo era abafado pelo maldito “bém! bém! bém!” Quando já ia meter o pé na porta ela se abriu e era a vizinha.

_Que coincidência, vizinho, tava indo lá te pedir um favorzinho.

Quase disse “coincidência mesmo!”, mas ela foi mais rápida.

_Será que você não podia ficar com o Gédino uns 5 minutinhos? Eu e o Getúlio precisamos comprar umas coisinhas pra festa.

_Olha Edna, eu adoraria, mas…

_Que bom!! Ele já lanchou e não vai dar trabalho, ligue a TV que ele fica quietinho.

_Mas Edna, eu não…

_Ah, ele já aprendeu a se limpar sozinho, não se preocupe! Tchau! E saiu, a vaca.

Fiquei com o Gédino como se estivesse dividindo a casa com o alien, mas o menino, com seus 3 aninhos, era bonzinho afinal. Ficou vendo um desenho e eu pude me compenetrar novamente no texto.

Precisava encontrar um título e estava quase decidido por “Um Vento que Veio” quando senti um vento quente no pescoço. O Gédino havia abandonado seu posto no sofá e agora acompanhava meu trabalho com o nariz a 2 milímetros do meu rosto. Olhei e disse “senta lá, o desenho tá super legal.” Ele fez que não com a cabeça sem tirar os olhos do computador. Eu sabia que não ia dar certo, mas continuei tentando mesmo assim.

Escrevi mais três palavras até que Gédino, discreto e silencioso, soltou um arrotinho aroma mortadela, na maior naturalidade, no momento em que eu inspirava. Naturalmente, perdi a inspiração, afastei meu rosto com asco e o guri com a ponta do cotovelo, mas ele parecia ter uma molinha que não desgrudava. Xinguei mentalmente o Getúlio, a Edna e todos os seus antepassados até passar o cheiro, mas o cheiro não passou, só mudou. Gédino tinha a magnífica capacidade de alternar eructações de mortadela com as de guaraná, mas sempre na modalidade “coladinho ao meu rosto”, criança prodígia!

A bizarra fragrância expulsou minha concentração aos pontapés. Confesso que sufocar aquele cabecinha de mortadela com um saco plástico rondou meus pensamentos, mas tenho bom coração e apenas removi o pequeno para o sofá, dizendo que se ele saísse do lugar outra vez, eu chamaria o homem do saco para sequestrá-lo e fazer mingau de suas entranhas. Ele voltou a ver o desenho, feliz da vida.

Aliviado, tive mais meia hora de escrita produtiva até que resolvi dar uma olhadinha pro lado. Gédino me olhava com um biquinho, um ranho no nariz e um… mingau escuro, nascia de suas entranhas e sujava meu sofá branquinho. Nesse momento percebi que havia exagerado com a estória do homem do saco. Imaginei que o Gédino já devia saber limpar os pés sozinho porque o nariz e o traseiro ele não sabia.

O calor infernal realçava o mix de odores em minha residência, por outro lado, permitiu que desse tempo de lavar e secar o shortinho do menino. Dei um banho no Gédino e o ameacei com o homem do saco novamente, caso comentasse algo sobre o homem do saco com seus pais.

Os filhos da… mãe natureza, Getúlio e Edna voltaram exatamente quando eu dava um lustro final no garoto.

_E aí, ele se comportou?

_Perfeitamente, nem notei que ele estava aqui, acreditam?

_Nossa, mas que catinga é essa, vizinho? Perguntou Getúlio. E aquela mancha no sofá?

_Fui eu que tirei um cochilo e caguei sem perceber, vizinho. Caso o cheiro impesteie também a sua casa, não repare, casa germinada é foda, né?

Abnegação é tudo mas tem limite. Aquele texto nunca saiu, perdi meu futebol, meus vizinhos ainda são os mesmos e vivo na mesma casa geminada, mas não desisti de escrever.