Que ventinho bom!

Sinto-me um ingrato ao escrever estas linhas e quero que entendam que só o faço por pressão familiar. É sobre meu carro, mas que ele não nos ouça. Quero, aliás, deixar claro que ele nunca me deixou na mão, no sentido de ficar a pé, porém, hoje, com 90.000 km rodados, vem me incomodando um pouquinho essa queixa recorrente, desde os primeiros dias de relacionamento. Nas revisões, nunca resolveram o que, a mim, mais parece um traço de caráter do que um defeito.

É um probleminha que ele tem nos vidros, que só fecham na hora que ele quer e só abrem na hora que eu não quero. Acho até bonito que ele tenha essa índole selvagem, mas quando o caboclo tem família ou qualquer outra companhia no carro, a situação pode variar entre o constrangedor e o risco de óbito.

Foram muitos incidentes no decorrer destes três anos, mas para não tornar esse texto, uma bíblia do vidro atormentado, me atenho apenas aos fatos ocorridos em minha última viagem a Franca, em visita aos meus pais. São 6 pedágios que oneram muito o passeio, mas eu pagaria 36 para não ter passado pelo ridículo que passei.

Saí de casa e os vidros não abriam. Tudo bem, temos um excelente ar condicionado que mantem a temperatura sempre amena e afinal, quem não tosse um pouco hoje em dia? Fazia Sol e o dia estava lindo para se viajar quando chegamos ao primeiro pedágio e numa tentativa tola, acionei, sem expectativa, o dispositivo de abertura do vidro do motorista. Acho que pra não fazer feio pra atendente do pedágio, ele se abriu silencioso, como se não tivesse problemas na vida, o tratante. Agradeci e segui rumo interior, notando que o acionamento de subida do vidro, agora se fazia de morto. Disse pras meninas que só estava curtindo a liberdade e o vento no rosto.

O tempo foi virando e o belo céu azul ficou preto, que também é uma bela cor, mas me fez apertar desesperadamente e com toda a força de meus dedos, o maldito botãozinho de subir. Nas não, ele não queria saber. A chuva caiu forte e com pedras. Minha mulher tripudiou perguntando se não era melhor eu fechar o vidro agora e minha filha mais velha respondeu que eu só estava curtindo a liberdade e o granizo no rosto. As três cruéis criaturas riam, mas não tinha graça nenhuma.

A cem metros do próximo pedágio o vidro fechou sozinho e eu não ousei questionar. Lembro-me bem da expressão assustada de Jacira, a mocinha do pedágio de Limeira, ao ver-me encharcado, com cara furada de pedradas e um olhar de poucos amigos, abrindo a porta, retirando a carteira do bolço traseiro e lhe entregando uma nota úmida.

A operação foi repetida a cada novo pedágio até Ribeirão Preto, mas como que tentando se redimir, para que eu não chegasse molhado e maltrapilho à casa de meus pais, o vidro se abriu para que o vento e o calor de um dia que deixara a chuva no passado, pudessem me secar e exalar um pouco do ódio de minha alma. Impressionante como em apenas uma hora o Sol forte é capaz de secar toda a roupa de um homem, exceção feita à bunda, e ainda deixar o lado esquerdo do corpo, particularmente a orelha, com aquele tom vermelho emergência, mas eu não sou de reclamar.

A estadia em Franca foi ótima, pois mamãe passava hidratante em minha orelha diariamente e eu só precisei usar o carro uma vez. Meu pai, que sempre fora contrário à aquisição de um veículo dessa marca, ia gradativamente aceitando que não fora um negócio tão mau, pois sempre que me perguntava “como o carrinho tem se comportado?”, eu respondia “surpreendentemente!”. Mas a máquina, sensível que é, percebia o bullying nas indiretas de meu pai e ruminava calada aquela angústia.

Numa noite, aquela em que tive que usar o carro, convidei meus três sobrinhos e minha filha mais velha a um passeio no shopping, para um cinema e um jantar. Meu irmão e minha cunhada, superprotetores, deram a tradicional palestra de uma hora sobre os cuidados especiais que eu deveria tomar com suas preciosidades, além de uma lista por escrito. Era muita frescura, mas eu estava disposto a ser um tio exemplar. Partimos então para uma noite sem cenas de cunho sexual, sem gordura trans, sem violência, sem lactose, sem complexidade temática, sem gelado, sem humor politicamente incorreto e sem carne vermelha. Não sobrou muita coisa, mas nos divertimos mesmo assim. O retorno, porém, reservava as maiores emoções. Era tempo de seca, o que não quer dizer nada para uma pessoa como eu e um novo temporal se armou assim que entramos no carro. Conferi que os vidros estavam todos fechados, mas pareceu até um recuso do automóvel, pois quando a primeira gota caiu, os vidros se abriram automaticamente, só os de trás. E dá-lhe água! Impecável é o funcionamento do limpador de para-brisa, que não deixa a desejar a nenhuma grande marca. Chegamos em casa sequinhos, eu e minha filha, ah, mas os meninos… Minha cunhada não fala mais comigo, dois sobrinhos convalescem da pneumonia e um ainda não voltou a falar nada com ninguém.

Tive que antecipar minha partida de Franca, por motivo de força maior. Na despedida, meia hora antes de sair, entrei no carro e testei todos os comandos. Tudo estava perfeito, inclusive os vidros. Todos a postos, acenamos para minha mãe e meu pai. Minha pequena chorava e abria os bracinhos chamando o vovô, que não resistiu e enfiou a cabeça no carro pra dar uma beijoca na netinha. Ninguém mandou ficar provocando o kung-fu. O vidro, num golpe rápido e fulminante,  fechou no pescoço do vovô. O ardiloso carrinho usara a menina como isca! Achei muito inteligente, mas não elogiei na hora. A sorte é que temos aquele sensor que interrompe a subida do vidro ao primeiro sinal de resistência, mas também não estava funcionando. Tive que sair do veículo e desligar os cabos da bateria quando ouvi papai balbuciando algo e notei que estava roxinho. Precisamos também de um pé de cabra e vaselina, mas o homem passa bem, tirando a marquinha no pescoço.

Na volta tudo correu bem, graças a Deus, no comecinho, mas sempre que olhava no retrovisor, via as imagens de meus sobrinhos ensopados, minha cunhada zangada e papai sem ar. Os vidros subiam e desciam direitinho, até o pedágio de Pirassununga, quando começou a chuva e claro, meu vidro se abriu. Fui tomando chuva até o pedágio de Leme, quando entreguei, agora xingando muito, uma nota molhada pro rapaz. Estendi o braço para receber o troco e o recibo, mas o vidro fechou com minha mão pra fora. Por falta de opção, já que a pressão do vidro mantinha minha mão firmemente cerrada, fui pilotando e agarrando as notas e o papelzinho amarelo do recibo debaixo do toró. Era como se o carro quisesse dizer “agora você vai ver o que é nota molhada, inocente!”.

Pra variar, choveu granizo. As pessoas pensam que o granizo, caindo sobre os dedos humanos, pode gerar algum dano severo ou uma dor insuportável e elas estão mesmo certas.

Chegando ao pedágio de Limeira, que coincidência, novamente a Jacira me recebe, agora suspeitando de minha sanidade mental, arranca as notas derretidas que eu esticava pra ela através do vidro e as esfarela, olhando em meus olhos. Aguardo sorrindo, com o braço estrangulado, até que minhas acompanhantes façam uma vaquinha e me contorcendo, abro a porta e entrego, com a mão direita, o valor contado, dizendo com simpatia: “oh, sequinhas!”. Jacira ignora e abre logo a cancela.

Corto o último pedágio mais por rancor do que por economia. Paro num posto da polícia rodoviária e peço para que um homem da lei empurre meu braço pra dentro. Ele tenta de todas as formas, com a peculiar delicadeza policial, mas o braço só volta quando o vidro entende que já podia afrouxar um pouco. Sigo deixando o polícia rindo sozinho.

Fiquei uns poucos dias afastado do trabalho, mas já estou bem e na ativa, usando uma tipoia. Há um mês os vidros adotaram o modo “fechado” e estamos nos dando muito bem assim. Semana que vem temos uma nova revisão no possante, mas nem vou tocar no assunto “vidros”, que vai que eles resolvem abrir de novo… (Luis Fernando Praga)