Família

Por Luís Fernando Praga

Há coisas mais importantes que política e economia… a família, por exemplo.

Pai de criança pequena e médico veterinário, gosto de transmitir informações sobre a fauna às minhas filhas.

Semana passada, em férias no pantanal, na van que fazia o traslado do aeroporto ao hotel, alertei minha filha de 7 anos, que quer ser veterinária e vinha de rosto colado ao vidro do veículo para ver algum bicho, sobre o exótico e perigoso “saltjanela”, animal pantaneiro que salta às janelas dos carros para assustar os passageiros.

A menina se afastou do vidro e perguntou:

 _ E o que esse bicho faz?

 _ Só assusta as pessoas, filha, mas assusta tanto que elas ficam com medo de olhar pela janela pro resto da vida.

 _ Mas como ele é, pai?

 A filha mais velha tratou de responder, enquanto a pequena fechava a cortina da van.

 _ Ele é do avesso, a parte peluda e fofinha fica do lado de dentro e as carnes, ossos e vísceras ficam pra fora.

 A pequena veio pro meu colo, fugindo do canto do carro e perguntou-me, assustada, se era verdade. Claro, ela desconfiava da lorota, mas precisava ouvir do pai, a maior autoridade no assunto ali na van, que aquilo era mentira.

Abracei a guria, ri, disse que era mentira e que ela voltasse à janela pra ver muito bicho de verdade.

Sou um conhecido mentiroso e as pessoas têm dificuldade em saber quando estou brincando ou não (parece que transmiti o gene à prole), mas, naquela hora, quando vi o medo nos olhos de minha filha, percebi que detinha em minhas mãos um poder inimaginável.

Eu poderia dominá-la pelo medo de algo que não existe. Caso os outros ocupantes da van comprassem a brincadeira e amedrontassem minha filha, ela desenvolveria um medo corrosivo e palpável que talvez a acompanhasse pra sempre, limitasse suas ações, modelasse seu comportamento e a tornasse menos feliz dali pra frente.

Não era possível avaliar a extensão dos danos daquela mentira sobre a mente e a vida de minha filha. Não é possível avaliar o estrago que uma informação enganosa pode causar a uma criança, um ser humano, uma sociedade…

Pensei nalgumas mentiras sociais que os adultos usam, com a melhor intenção: o quanto o papai Noel e o coelhinho da Páscoa são dispensáveis. É possível ser criança e ser feliz sem ter que engolir símbolos do consumismo desenfreado, onde se ocultam vidas escravizadas pela produção de supérfluos e o uso irracional de recursos escassos.

Era um poder fabuloso o de enganar e, quanto em mais tenra idade isso acontecia, mais firmemente arraigado ao cidadão o engano seguiria, de modo que a mentira seria a sua verdade, a sua certeza, seu fundamento.

Enxergando-me humano, limitado e buscador de conhecimentos, vi o quanto era temerário exercer tal poder sobre a vida de quem quer que fosse. Talvez minha verdade não fosse tão verdadeira, mas, ainda assim transformaria a vida de quem acreditasse nela.

Desejei, sabendo que seria melhor pra mim e para todos, nunca desejar aquele poder, nunca impor verdades a ninguém, mas sempre incentivar ao questionamento e à busca do conhecimento.

Lembrei-me de pessoas cheias de certezas, ódios e medos marchando como corajosos caçadores do perigoso saltjanela e repetindo grandes equívocos e injustiças históricas.

Vi quem exercia o poder da manipulação e da enganação sobre as massas e como uma enganação antiga nos mantinha, a todos, reféns de um sistema que subestimava a vida humana e valorizava coisas inventadas por humanos que tiveram a liberdade de ser inventivos.

Vi seres humanos alimentando seus enganadores, aprendendo, desde cedo, que é preciso viver conforme políticos ou religiosos decidirem, pois apenas eles são bem preparados, buscando o melhor para suas próprias vidas, a dar o melhor rumo a nossas vidas.

Vi que o poder de ludibriar trazia uma série de vantagens ilusórias e viciantes para quem o exercia.

Vi crianças aprendendo e carregando pela vida a verdade imposta de que a Terra era plana, de que não se pode ser feliz sem dinheiro, de que os gays são pecadores e vão pro inferno, de que os negros são inferiores, de que os pobres são vagabundos e querem roubar as conquistas de quem trabalha, de que mulher é um lixo, nasceu da costela de um homem, gosta de apanhar e merece ser estuprada, de que precisamos competir com nossos semelhantes mantendo a degradação insustentável do Planeta.

Vi crianças crescerem aprendendo que deveriam rir de piadas machistas, racistas e preconceituosas e vi que achar graça da injustiça acabava moldando um comportamento excludente, ignorante e de frieza social.

Como se o sucesso na vida dependesse de se trapacear alguém, percebi a multidão bradando contra a corrupção, mas desejando ter tanto dinheiro e poder quanto os políticos, grandes empresários, renomados juízes e líderes religiosos. Um “sucesso” só possível à custa da exploração de outras vidas de uma forma que ninguém desejaria ser explorado.

Percebi que, sendo criados para prosperar ao molde dos poderosos, alimentávamos a ganância e ciclicamente mudávamos de mãos o poder de poucos sobre muitos, mas perpetuávamos a injustiça.

Entendi que o maior engano era fruto da inversão de valores. Cobiçávamos, enganados, dominar outras pessoas e controlar outras vidas para que essas nos trouxessem benefícios. Preocupados em garantir poder sobre outros, abríamos mão do mais belo e verdadeiro benefício, o de gerenciar a nós mesmos, de exercer o livre arbítrio, de aprender com a vida, de entender as vontades da natureza, prezando pela liberdade de cada indivíduo.

Vi o quanto nossos preconceitos e ignorâncias vinham nos impedindo de evoluir, o quanto limitávamos nossa capacidade de amar, de sermos generosos com o próximo e de cooperarmos, graças a medos que nos implantavam desde bem novinhos: medo de bicho papão, medo de muçulmano, medo dessa corja socialista, de pobre, de gente mal vestida, de umbandista, medo de se transformar em gay vendo um beijo gay na TV, medo de que a educação e o conhecimento desagradem a Deus, medo de Deus, do diabo e da morte.

Vi que o medo da morte, a mais natural e necessária contingência para a continuidade da vida no Planeta, nos diminuía a grandeza da magnífica experiência de estarmos vivos.

Quando vi o medo do saltjanela estampado no olhar de minha filhinha e o potencial destrutivo daquele medo, também vi o potencial de minha filha sem aquele medo e desejei que nenhuma criança fosse mais enganada pelos adultos.

Compreendi que o melhor para minha família era desejar o melhor para cada família do mundo. Acreditar que minha família fosse mais merecedora de dignidade que outra era ignorância, prepotência, desagregava a sociedade e era uma das sementes da guerra, da injustiça e da corrupção.

Entendi que amar à minha família era muito mais que garantir a ela vantagens que outras famílias não tinham. Amar é querer bem e querer o bem ao ser humano é desejar que ele seja autônomo, livre, que não sofra injustamente, mas que aprenda com seus erros e que aprenda a amar, pois o amor sempre abre novas perspectivas.

Entendi que o amor não se restringe às paredes do meu lar e, como pai que quer o melhor para minhas filhas, é meu dever dizer a elas que acredito que todos merecem dar e receber o mesmo amor, sem medo.

Entendi que a família deve um nicho de bem-estar e segurança que proteja a criança e a prepare para a vida, sem gerar corruptos em potencial. Que a vida tem muito mais incógnitas que certezas, por isso não cabem os dogmas e as imposições.

Notei que as famílias não têm cumprido a função de suprir a sociedade de indivíduos equilibrados, criados no verdadeiro amor, livres e dispostos a aprender e evoluir.

Entendi que preciso de todos unidos, como espécie, como uma grande família que se ama e não se curva às vontades de um sistema inventado e antinatural. Precisamos reinventar algo melhor, com respeito à natureza e à dignidade humana. Precisamos direcionar o fruto de nosso trabalho a objetivos maiores que o de sustentar um sistema que nos oprime, a fim de construir uma sociedade pautada em valores mais nobres.

Entendi a necessidade de que cada um questione se a melhor forma de viver é controlando a vida alheia ou a própria, se o tempo gasto com a guerra e todos os seus estilhaços tem valido a pena, se prosperar sobre a miséria de irmãos é mesmo prosperidade, se a caçada ao saltjanela é mesmo a melhor empreitada e se viver com medo dele, sem olhar os horizontes além das vidraças é o melhor uso que poderiam dar às suas vidas.