de verdade

Por Luís Fernando Praga

De verdade? Falta amor!

Os dias passam, a poeira dos fatos vai assentando a razão clareando e tornando possível enxergar o Brasil atual com maior alcance e por outros ângulos.

Minha visão pouco mudou. Falta conhecimento histórico e político, faltam princípios éticos, faltam educação e informação de qualidade, falta interpretação de texto e contextualização, falta amor e sobram ódio e ignorância em nossa sociedade.

Costumo falar muito sobre o amor que sinto e o ódio que os outros sentem e posso estar sendo injusto e hipócrita ao falar de um sentimento que não domino, mas o amor é a lei em que acredito e alguns pontos precisam ficar claros.

Eu busco o amor, mas sei que não sei amar o tempo todo, muitas vezes me impaciento com pessoas amadas e as trato de forma grosseira, como eu não gostaria de ser tratado.

Busco não ser hipócrita; já cometi incontáveis equívocos e deslizes e por saber de minhas limitações, aprendi que devo ser tolerante com as alheias.

Minhas falhas e experiências desagradáveis foram importantes para que eu me conhecesse, penetrasse nos motivos que me levaram àqueles atos e buscasse encontrar o convencimento necessário para que eu deixasse de repeti-los. Meus erros não servem para eu fingir que jamais ocorreram.

Lembro-me da vez em que roubei. Ter cometido este delito, mesmo tendo recebido uma educação severa e esclarecedora no sentido de não me tornar um bandido ou uma má pessoa, foi e ainda é uma lição de vida em vários aspectos. Vou contar como foi: Começo dos anos 90, tempos de faculdade, turma reunida num tradicional bar londrinense para uma confraternização qualquer. Eu roubava discretamente os copos vazios das mesas e colocava na mochila que trazia às costas. Amigos aproveitavam e também “socavam” mais e mais copos em minha mochila. Eu não passava nenhuma necessidade, não carecia de copos, não tinha onde enfiar tanto copo e havia aprendido muito bem que roubar era feio, ilegal e desonesto.

Hoje enxergo minha motivação para tal crime na tentativa de ganhar popularidade na zoeira, de ser aceito e me enquadrar num grupo social, não que meus amigos fossem ladrões, longe disso, estou aqui falando mal apenas de mim.

Terminada a reunião, saí do bar tilintando tranquilamente com minha mochila estourando de cheia, mas… já na calçada, o garçom, profissional experiente, colocou a mão no meu ombro, olhou pra minha cara segurando o riso e disse: devolva, por favor. Não havia argumentos nem defesa em meu favor e claro, despedi-me dos copos sem saudades, mas com um constrangimento monstruoso. Meus amigos, aquele grupo em que desejava me enquadrar roubando copos, riam muito, o garçom e o dono do boteco riam. Eu acabei rindo também e rio ainda hoje de alguns detalhes daquela história.

Voltei ao bar do Carlão outras vezes e sempre fui tratado como um cliente normal, exceto pelo fato de que, a partir do roubo, serviam minha bebida apenas em copos plásticos, sempre acompanhada de uma risadinha do garçom.

Mas o que mais me marcou daquela história foram outros detalhes. Hoje vejo que minha atitude só ocorreu por falta de amor. Não tive amor pelo dono do bar, não desejei o melhor para ele, não o levei em consideração e minhas prioridades foram equivocadas. Queria receber amor e admiração de meus colegas roubando copos e não pensei em amar as pessoas mais diretamente atingidas por minha falha de caráter, o dono do bar e eu mesmo.

Sou grato pelo fato de o garçom não ter permitido que eu chegasse às vias de fato, sou grato pelo constrangimento que me doeu por meses e até hoje me constrange e sou grato por ter transformado a experiência em aprendizado.

Hoje, mais de 20 anos depois, tenho uma esposa e duas filhas a quem amo, sou um médico veterinário feliz por ser médico veterinário e por ter contato diário com bichos e com gente e também sou este que escreve coisas por amor.

Tenho plena consciência de que, na sociedade onde o “bandido bom é o bandido morto”, se eu fosse um jovem negro, pobre e em situação de rua e estivesse roubando copos naquele bar, teria apanhado muito. Haveria uma chance enorme de chamarem a polícia e de eu ir para a cadeia. Certamente eu não teria argumentos nem defesa nem dinheiro para um advogado e ninguém teria achado graça da situação. Hoje eu poderia ser um presidiário mantido sob as piores condições, passar anos aguardando um julgamento e fazer da cadeia o meu lar e meu local de aprendizado.

Eu não sou melhor e não mereço mais que ninguém. Eu não deveria ser tratado de forma privilegiada. Porém, não apanhar de rapazes mais brancos e mais ricos, não ser torturado pela polícia, não ser estuprado nem apodrecer na cadeia, ter chances de aprender com os próprios erros e não ter a liberdade, o futuro e os sonhos tolhidos por gente que apenas se diz capaz de julgar outras gentes, não são privilégios nem méritos, são direitos e deveriam ser garantidos a todos… e não são.

Falta amor em nossa sociedade pois consideramos natural que nem todos tenham os mesmos direitos.

Nossos criminosos de maior periculosidade e mais danosos à sociedade são brancos, ricos, poderosos e protegidos por imunidades descabidas.

Falta amor em nossa sociedade porque não desejamos o bem daqueles negros e pobres que superlotam os presídios, fingimos que eles não existem e que há justiça em tal aberração.

Falta amor em nossa sociedade porque a classe média acredita que pobre é vagabundo e não vale nada.

Falta amor em nossa sociedade porque ela aceita passivamente que alguém seja punido sem julgamento ou direito a defesa.

Em nossa sociedade injusta, intolerante, prepotente e hipócrita, alguns podem errar e prejudicar milhões quantas vezes desejarem, que seus crimes serão acobertados; já outros não podem comer, locomover-se, tratar-se, estudar ou se divertir. Consideramos isso natural.

Falta amor em nossa sociedade, pois ela é viciada em tratar o pobre como lixo e se fingir de cristã.

Falta amor em nossa sociedade porque ela é viciada em lamber as botas dos poderosos, esperando uma migalha em troca, mesmo que essa migalha, na prática, represente apenas sacanear os pobres, tirando-lhes um bocadinho a mais de direitos.

Falta amor em nossa sociedade porque nossas avós, nossas mães e nós crescemos assistindo a novelas em que todos ficam felizes quando um vilão fictício morre.

Falta amor em nossa sociedade porque deixamos de nos amar e de nos preocupar uns com os outros em troca de competirmos pelo apego ao dinheiro.

Uma mídia trilhardária, especializada em criar vilões fictícios, encobrir falcatruas de políticos e empresários e alienar o povo manipula massas contra o vilão da vez, cada vez que seus interesses são ameaçados.

Se o vilão da vez for alguém que, ao invés de lamber as botas dos poderosos, dá direitos aos pobres e os aproxima daquela classe média prepotente, ignorante, temente a um deus mercenário e não a seus próprios atos, fica muito mais fácil criar um exército de soldados hipócritas que fingem que jamais erraram e enterram seus deslizes no passado, para que, munidos daquele ódio ignorante contra o “vilão”, movam uma cruzada de justiça hipócrita e se achem os mocinhos da novela.

Falta amor em nossa sociedade porque ela trata, de forma diferente, delitos iguais. Falta amor em nossa sociedade porque odeia e persegue um político de origem humilde, nordestino e operário, mesmo que ele seja respeitado por milhões dentro e fora do Brasil, mas coloca no poder, calada, sem questionar as inúmeras denúncias de corrupção e investigações que pairam sobre o mesmo, um político alinhado com o sistema explorador, filho da elite paulista.

Falta amor em nossa sociedade pois ela, gananciosa e escrava do dinheiro, acostumada com a banalização da injustiça, ignora 54 milhões e tantos outros brasileiros defensores da democracia e coloca no poder uma equipe desumana de racistas, machistas e entreguistas.

Falta amor porque não se pensa em quem se está prejudicando quando se invalida, pela força do poder de juízes tendenciosos e políticos oportunistas, uma eleição direta e democrática.

É impressionante como sobra ignorância quando se vê uma parcela da nossa sociedade odiando e perseguindo seus artistas, seus professores, odiando gente que agrega valor à vida humana e faz pensar. Sobra ignorância quando se abre mão de um patrimônio cultural para se ver como o mocinho de uma novela de segunda.

Falta amor quando se apoia a polícia batendo em nossos filhos que desejam aprender a fim de transformarem nosso mundo.

Falta amor, bom senso, inteligência emocional e caráter, quando se apoia um político que deseja o mal de negros, de mulheres, de gays, de nordestinos. Ele se diz cristão e está desejando o mal de seres humanos. Os seres humanos são todos irmãos; queiram os crentes ou não, até eles são meus irmãos!

Alguns dizem que eu cometo o mesmo erro quando sou intolerante com os intolerantes e eu me questionava muito a respeito, então imaginei um mundo livre. Um mundo onde as pessoas se respeitassem e se amassem entre todas as cores, de todas as formas, com todas as orientações sexuais possíveis: elas se amariam, se respeitariam e o mundo ostentaria harmonia e uma saúde de ferro. Não consigo enxergar esta harmonia num mundo dominado por brancos ricos opressores e exploradores de uma massa escravizada. Então, eu me sentiria muito bem naquele mundo livre, e você?

O momento é de lutar, a cada instante e com amor no coração, contra o retrocesso! O momento também é de a poeira assentar, de colocar as ideias no lugar e, quem sabe, de se reposicionar e ocupar, ao menos por algum tempo, um lugar na História, do qual o futuro possa se orgulhar.