(imagem reprodução)

.Por Gustavo de Almeida Nogueira.

Recentemente publicado pela Editora Urutau, livro de poesia coloca em xeque pressupostos pelos quais a literatura contemporânea tem sido avaliada

Se tivermos de ser honestos quanto a quem pertence a autoria de nem eu, nem máquina, seríamos obrigados a perfilar uma lista pouco usual de escritores de poesia: instituições de produção de placas de trânsito; publicitários, comerciantes e anunciantes próximos ao Centro de Convivência de Campinas, bem como o autor do texto de um dos monumentos da praça; moradores do bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro; o economista David Blanchflower, da “universidade de dar mal dos Estados Unidos”; internautas e jornalistas interessados na definição do que seria “o novo punk” e o que “o povo brasileiro é”; um especialista chamado “conta do Calligaris”.

Há outros, ainda mais difíceis de serem nomeados: publicitários do Xbox na transcrição automática do Microsoft Word? Responsáveis pelas palavras-chave de sites dedicados à indústria musical ou à política nacional? Programadores do Google Alerts e seus mecanismos de pesquisa? A resposta mais simples para algumas dessas questões seria apenas uma: o algoritmo em sua alimentação a um só tempo coletiva e anônima, refratada por interesses econômicos, políticos ou simplesmente de engajamento de cliques.

Um outro nome de autoria, que ocorre figurar na capa do livro, é o de drump goo, pseudônimo de um escritor radicado em Campinas que já havia publicado no ano anterior o experimento de exaurir, com descrições objetivas, tudo o que se passava à sua frente em três redes sociais, com a obra Tentativa de esgotamento de 3 lugares na internet (2022, Editora Ofícios Terrestres). Drump goo é quem pontua, recorta, organiza e coloca para funcionar os mecanismos do livro, a saber: “projeto de acúmulo por 4 anos com o Google Alerts ativado para ‘o novo punk’; a cada atualização, um novo verso”; “texto construído a partir dos resultados em diferentes contextos da pesquisa ‘o povo brasileiro é’ no Google”; “texto construído a partir do programa de transcrição automática do Word ligado durante o primeiro bloco do Fantástico de 23 de fevereiro de 2020”; “a partir de um primeiro parágrafo autodescritivo, o poema é declamado para o programa de transcrição automática e seu resultado serve de nova declamação, até a redução máxima, realizado em agosto de 2021, declamação disponível em: https://youtu.be/s0rL6I8WeZ8”. Essas são as notas fornecidas por aquele que assina nem eu, nem máquina, referentes aos seis poemas constantes no livro. O que os une? A questão da autoria, sua extinção ou, antes, seu afastamento pela dissolução no arranjo da multiplicação de vozes. Para identificar o estranhamento e a peculiaridade da obra, é preciso levar em consideração o histórico de autores e artistas que produziram a partir de pressupostos estéticos similares, bem como uma forte tendência literária contemporânea que enfatiza critérios de autoria extraestéticos, abarcando uma forma de escrever, de ler e…de vender.

Imiscuindo-se na máquina e na multidão, nem eu, nem máquina insere-se em uma linhagem que poderia ser traçada no mínimo desde o poema 16 do romano Catulo, vagar pela formulação sintética do “Eu é um outro” de Rimbaud, acenar para a separação entre eu-social e eu-escritor de Proust, os heterônimos do “eu” disperso de Pessoa, a composição pelo acaso de John Cage, os anonimatos singulares de Lygia Clark e Marcel Duchamp, os textos célebres sobre a morte do autor de Barthes e Foucault, o método cut-up de William Burroughs…a lista é interminável. O poeta Paul Valéry chegou a afirmar em meados do século passado que “o leitor ideal lê toda literatura como se fosse anônima”, ideia compartilhada por escritores como Jorge Luis Borges e suas provocações em contos como Pierre Menard, Autor do Quixote.

A tendência atual do personalismo não se refere somente à figura do escritor, seu histórico de vida, a limitação do recorte de sua ficção a uma parte mínima da existência que se restringe ao que teria sido experienciado em primeira mão ou não por aquele que escreve, em uma lógica que serviria para o gênero da reportagem jornalística, mas que, na criação artística, significa a abolição do exercício imaginativo. Tal tendência dita também as regras da outra ponta da literatura, ou seja, de sua recepção, do modo de interpretação e de leitura das obras. Peguemos brevemente como exemplo a obra de Clarice Lispector, um dos nomes que mais rondam as redes sociais — as atribuições erradas de textos que não foram escritos por ela atestam apenas a dimensão do culto à celebridade e, talvez, da falta de contato com seus textos. Um modo persistente de leitura que vai de trechos edificantes de redes sociais a dissertações acadêmicas poderia ser resumido da seguinte maneira: o leitor se reconhece na formulação de afectos que já haviam sido experienciados por ele e que se encontram agora na sua forma correspondente articulada e expressa em uma obra. Disso, conclui-se que a literatura de Clarice seria uma celebração da subjetividade individual, porque formula algo que o leitor pensava ser o único a experienciar, formando atributos que traçavam seus contornos individuais em uma identidade alheia ao meio social. Dessa leitura narcísica, forma-se um paradoxo flagrante e cômico, uma vez que o fenômeno Clarice da multidão de leitores atesta, na verdade, para a conclusão contrária: os pensamentos, as frases e os afectos não corroboram para a autenticidade dos sujeitos, mas provam a autonomia de sua existência em relação a eles. Para parafrasear novamente Rimbaud, não deveríamos dizer: eu penso, mas, antes, sou pensado. Isso não é muito diferente do lugar em que Virginia Woolf coloca a autoria e os grandes nomes em relação às linguagens: “Hamlet ou um quarteto de Beethoven é a verdade sobre essa vasta massa que chamamos de mundo. Mas não há Shakespeare, não há Beethoven; certamente e enfaticamente não há Deus; nós somos as palavras; nós somos a música; nós somos a própria coisa”.

Em nem eu, nem máquina, o trabalho do autor é o da organização, do recorte, da pontuação e da entonação declamada; de resto, abre o caminho no limite do possível para a autonomia das vozes mais diversas, compostas pelas palavras digitadas e propostas por mecanismos de busca da internet, pela agregação de matérias na mídia, por registros orais de um programa televisivo transcritos automaticamente e produzindo fagulhas poéticas ali onde a máquina falha ou onde o interesse mercadológico das Big Techs entra em cena. Seu primeiro poema, “Incontornável”, abre o livro em uma filiação procedimental à ironia punk desdobrada sobre si mesma, em relação ao que é feito dessa mesma postura irônica. Coletando atualizações de matérias do Google Alerts a partir da expressão definidora do que “o novo punk” seria, o procedimento se desdobra como que às avessas do mercado em sua assimilação de crítica e oposição em produto vendido como novo; ou, antes, mimetiza esse funcionamento em chave infinita, para melhor escancarar sua engrenagem própria, pagando o preço de andar sempre à beira do sucumbir final a ela, reduzindo-se a produto. A dialética singular dessa ironia à enésima potência gera atualizações inusitadas de origens irrastreáveis, enfileirando definições como essas:

O conservadorismo é o novo punk […]

A direita é o novo punk […]

A internet é o novo punk […]

O queer é o novo punk […]

O cristianismo é o novo punk […]

Usar burca é o novo punk […]

O velho punk é o novo punk.

O poema seguinte, “Identidade nacional”, construído a partir de sugestões de complemento da frase “o povo brasileiro é” pelo Google, traz uma cacofonia atordoante de definições contraditórias, inesperadas, cuja acumulação resultam na conclusão incontornável de sua complexidade impassível à síntese que sua formulação buscaria: o povo brasileiro, segundo suas próprias pesquisas, é triste, feliz, acolhedor, violento, merece e não merece o que tem, e também não possui senão a si mesmo. O poema remete a uma longa tradição literária brasileira, com alguns pontos evidentes: a idealização do povo própria do Romantismo, muito mal importado da Europa no que se refere à sua íntima função do estabelecimento de identidades na formação do Estado-nação de fins do século XVIII; o Modernismo que buscou síntese na formulação antropofágica, cuja proposta foi encolhida ao vislumbrar todo um país desde o eixo sudestino, relegando tudo o que lhe fosse alheio a um esoterismo chamado por regionalista; a retomada pelo movimento tropicalista, compondo com a cultura pop e marcando a identidade latino-americana, em mecanismos poéticos de fotografias rápidas e dispersas que perdem a força da proposta de um projeto nacional por se dissolverem em articulações não-relacionais. Nesse sentido, “Identidade Nacional” insere-se na esteira histórica da concepção da literatura como pedra fundamental das tentativas de formação de uma identidade em sínteses abertas. Se a definição pelas contradições é talvez a mais gasta, o procedimento se utiliza de um recurso que parece inédito: a própria busca do brasileiro por sua definição — muitas vezes na forma de perguntas. São vozes tão anônimas quanto reconhecíveis, tão democráticas quanto filtradas pela engrenagem de busca de uma grande corporação.

A questão tão procurada da literatura, “o povo brasileiro”, por meio das próprias definições dessas vozes múltiplas e anônimas, confere ao poema uma radicalidade democrática em uma literatura simetricamente oposta ao sermão panfletário, didático – que implica uma posição de mestre, pastor ou coaching. Fugindo também da lógica do “quem paga, escolhe a música”: não se lê o que se quer, muito menos o que já se pensava, em anuência ou concordância. O leitor não aplaudirá sua própria opinião prévia à leitura do livro.

Há uma moda que recentemente foi acentuada e premiada na literatura mundial, caindo muito bem no mercado brasileiro, que consiste em uma literatura subjetivista, com um trabalho de linguagem acomodado, estruturas bem comportadas, perfeitamente coerentes e compreensíveis. Em poucas palavras, a matéria do mundo domesticada pela forma que apara arestas e multiplicidades, que reduz o singular onde quer que se encontre à tipologia reconhecível no imaginário coletivo. Eis alguns de seus pressupostos: o sujeito é um todo coeso, regido e compreensível pela simples racionalidade, em tudo esgotável pela indicação causal de suas idiossincrasias. Herdeira de certa esteira do Iluminismo, compartilhando concepções centrais do positivismo, seu histórico remete à ascensão do indivíduo burguês e encarna o que é hoje o individualismo neoliberal — mesmo vestido de boas causas. O personalismo recai assim em uma irônica proximidade com a estatística, pois seu valor no mercado literário é calculado a partir do número de consumidores que se projetem em espelho e aprovem a reflexão de seu autorretrato.

Na outra ponta, nem eu, nem máquina também foge da histeria apocalíptica dos geradores de textos — falso fantasma dos apegados ao som de suas próprias vozes —, propondo exercícios de coautoria com os diversos dispositivos de máquinas, corais de uma multidão anônima, abrindo espaços para o poético inesperado ali onde apontam com alarde para uma porta fechada. Mas não se trata de uma celebração da tecnologia para criação estética — ainda que a alargue e a realize. Tampouco recai em uma demonstração de alerta catastrófico do caos semântico dessa época; pois, se o resultado é cacofônico, contraditório, impassível a sínteses, desencontrado entre linguagens humanas e maquinais, certamente não é ao autor a quem devemos culpar.

Estabelecido o distanciamento próprio à experiência estética, o livro revela a complexidade dos coros de hoje de modo paradoxalmente mais claro, porque fiel ao retrato da natureza das vozes, sem traí-la por qualquer intenção ideológica ou política autoral precedenteao experimento — o que frequentemente reduz a literatura a panfleto comercializável on demand, ou ao gosto do cliente. Isso não equivale a dizer que não existam pressupostos políticos implicados nessa obra. Estes não se encontram, porém, em um discurso didático a serviço do convencimento retórico pelo autor, ou em narrativas e imagens poéticas reduzidas à função exemplificadora de uma ideia ou um conceito. A obra impõe continuamente uma pergunta: o que fazer com esses versos?

o povo brasileiro é conhecido mundialmente como um país alegre, cuja mistura racial deu origem a um povo sem preconceitos que acolhe e respeita o novo

o povo brasileiro é bem mais excludente e intolerante que receptivo, mas gosta de crer o contrário

o povo brasileiro é formado por vagabundos, preguiçosos, incompetentes e bandidos em potencial

o povo brasileiro é o melhor que já vi na vida

Ou ainda:

o povo brasileiro é uma tentativa de compreender quem somos

o povo brasileiro é construído discursivamente no Jornal Nacional

o povo brasileiro é um milagre

Pode-se remontar as batalhas ideológicas dos últimos anos. Pode-se observar algo novo sobre elas, sob o prisma daquilo que o algoritmo prioriza e lucra. Pode-se, sobretudo, desesperar-se de buscar uma interpretação sintética. Tais caminhos são espaços abertos por uma estética libertada da celebração do indivíduo-autor, da limitação da coerência fácil, da noção de que o ato interpretativo concorre ao encerramento, da leitura de identificação narcísica.

Com “trAjetóriA”, poema localizado no meio da obra, a relação entre cotidiano e máquina que compõe o livro é cortada por uma travessia pela cidade, na dupla ação de olhar-recorte e de recolhimento da produção textual exposta na rua. O resultado força o leitor a um reconhecimento deslocado das expressões textuais da cidade, pontuados pelo que está ausente e que demanda um exercício imaginativo, tanto pelo emprego exclusivo de palavras que contêm a letra “A” quanto pela natureza sempre referencial e indicativa desse léxico: orientações de trânsito, direções de bairros e cidades, anúncios fragmentados e empilhados, figuras políticas, aluguéis, serviços, dizeres de um monumento, nomes de cervejas, tudo entremeado por registros absolutamente indiscerníveis e ritmados por diversos “Pare” e um “Mais rápido”.

Seja lembrado…

Campainha quebrada

Oferta oferta oferta

Linda

Mais Rápido

Guarani

Amarração amorosa

Lula

Planos assistência funeral

Comprar não pagar?

Brazil

Aluga culpa

A rua é a transição para as transcrições automáticas de falas. Se na primeira parte o princípio formal é o de recolhimento e organização de uma profusão de fragmentos textuais, na segunda, é a criação na brecha entre o que é ouvido e o que é escrito, no erro da máquina, em desentendimentos que Goo coloca para funcionar poeticamente. É neste ponto em que surge “DOMINGO / 23022020 / 20:40”, inscrição de registro oral do “Fantástico”, um dos programas de valor afetivo do imaginário coletivo brasileiro marcado pela conta final de mais uma semana e a melancolia dos eventos. Esse texto pode ser chamado de poema porque produz indeterminações inesperadas no processo de distorção do jornal a partir da transcrição automática do Microsoft Word. A um passo de adentrarmos a pandemia do Coronavírus, lemos Ciro Gomes em uma retroescavadeira, greves policiais, assassinatos, vozes múltiplas de uma reportagem sobre envelhecimento, muito carnaval, futebol e ininteligibilidades. Na formulação precisa do prefácio de Andressa Tata Coutinho, “o autor parece pretender menos narrar o acontecimento — o que aparenta fazer a transcrição automática —, mas o de testemunhar, de forma que autor e software passam a revogar uma configuração entre sensível e inteligível”. Sem o apoio visual, e refratado pelas distorções, lidamos com um discurso em que raramente é detectável quem fala ou para quem, em uma confusão de vozes concluída pelo autor, pelo desentendimento da máquina e pela programação televisiva popular dessa maneira:

Resolve se vingar da pessoa, tem direito. A que eu confundi, eu acho uma falta de consideração, vou acordar surpresa toda de empatia e intimidade. Não é o Candangão, rei dos contatinhos, eu só tô vendo o Brasil.

O poema Primeiro escrevi este parágrafo conclui o livro em uma travessia do escrito-declamado e inteligível, experimento com propósito que inclusive anuncia seu fim de antemão, para a redução total do discurso, em progressiva ininteligibilidade. Declamado um primeiro parágrafo para o programa de transcrição automática, lê-se o resultado dessa transcrição, muitas vezes intacto, tantas outras finalmente alterado, até que não haja mais nada. O resultado exige tanto uma leitura espacial, em virtude das repetições e modulações, quando sonora, captando os ecos e as proximidades fonéticas dos erros transcritos. Dedicado ao compositor Alvin Lucier — conhecido por seu experimento “I am sitting in a room”, no qual declama em uma sala fechada, grava a declamação e a reproduz, gravando então a reprodução, até que as palavras se percam —, Primeiro escrevi esse parágrafo carrega uma relação paradoxalmente mais determinada entre palavra e som, porque a máquina busca palavras exatas; no entanto, é precisamente por essa exatidão que inaugura frases e sentidos inauditos. Quem os criou? ”Um outro autor”:

A cada nova declamação vou assimilar os meus erros de leitura ou pronúncia e os de compreensão ou glitches produzidos pela máquina, até que a linguagem que compõe este texto se torne ambiente, ininteligível e indecifrável e seu discurso despojado de articulação, e eu e a máquina nos tornemos um outro autor, nem eu nem máquina.

No vídeo a que nos leva o link fornecido pelo autor, acompanhamos o experimento in loco, em cada passo de erros de leitura, modulações de pronúncia, ênfases distintas, entonações, em um esforço considerável do declamador para forçar a diferença para fora da repetição.

Nenhum dos poemas em nem eu, nem máquina chega a ser um ready-made, porque há nos poemas o trabalho da organização de versos, de ritmo de pontuação, de variações nas inflexões das declamações. Mas estamos aqui a milhas de distância do determinismo da máquina ou da literatura reduzida a panfleto, exemplificação de conceito ou defesa ideológica. Nesse “tropeço entre o indeterminado e o condicionado” — expressão de Coutinho em prefácio —, drump goo articula um discurso de autoria radicalmente democrática e de convite à leitura e interpretação ativas e livres: transforma o mercadológico alienante em revelação de seu mecanismo, e o erro inesperado da programação da máquina em funcionamento poético. A quem preferir ler somente aquilo que lhe agrade, há o feed mercadológico do algoritmo, as respostas do Chat GPT e a literatura edificante. Quem se enveredar pelos experimentos de nem eu, nem máquina arrisca encontrar algo não programado, finalmente.

Gustavo de Almeida Nogueira é doutorando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP), tendo a obra de Samuel Beckett como objeto de estudo desde seu mestrado, realizado na mesma instituição. Ministrou cursos de extensão na FFLCH-USP sobre a literatura francesa do pós-guerra e tem artigos publicados sobre Samuel Beckett, Marcel Proust e Mário de Andrade.