(imagem reprodução)

.Por Gustavo de Almeida Nogueira.

A nova obra da compositora, cantora e escritora Patti Smith chegou recentemente nas livrarias brasileiras: trata-se de Um Livro dos Dias, cujo lançamento em inglês se deu no ano passado. A edição é traduzida por Camila von Holdefer, que vem há anos vertendo a cantora estadunidense para o português. Não seria errado dizer que se trata de mais um livro de memórias, na esteira do que Smith vem lançando na última década. Porém, dessa vez, o inusitado está em sua forma: a obra é uma edição de 365 (mais uma) postagens — imagem e legenda — de sua conta na plataforma virtual do Instagram, uma para cada dia do ano. É um diário fotográfico? Um álbum de memórias pessoais? Sim, mas não somente.

Logo em seu prefácio, Smith comenta a foto que abre sua obra: o que vemos é uma mão, a sua mão; dedos alongados, magros, a pele envelhecida. A escritora elenca diversas facetas simbólicas de uma mão: de pinturas milenares em cavernas do sudoeste da França até sua função no cumprimento cotidiano. Em cada uma delas, o que Smith reforça é o valor de uma ponte entre imaginação e execução. A reflexão adianta a extensão temporal e geográfica que as fotos e os textos abarcarão ao longo do livro.

A cantora confessa sua relutância em comprar seu primeiro celular, o que só ocorreu em 2010, quando finalmente resolver unir-se ao que chama de uma “cultura da colagem”. Já em 2018, nos conta, sua filha Jesse lhe disse que a linguagem da plataforma do Instagram lhe cairia como uma luva, uma vez que tirar fotos e escrever são duas das atividades que Smith cultiva quase diariamente há décadas. A obra é uma compilação de suas postagens feitas em grande parte durante a pandemia, quarentenada em seu apartamento. As celebrações de aniversários que permeiam os dias servem de ocasião para celebrar a memória dos mortos queridos – influências artísticas de espectro amplíssimo. Algumas dessas perdas são mais pessoais do que outras. É o caso de Robert Mapplethorpe, o fotógrafo influente que aparece com frequência nesse álbum, cuja morte, em decorrência do HIV, deixou marcas na memória da compositora de Horses (1975) em diversos níveis.

O interesse suscitado por esse compartilhamento da memória de Smith passa ao largo de uma mera idolatria à cantora, porque o que se costura pelos dias é um álbum de uma família artística espalhada pelo mundo, cuja genealogia embaralha séculos e linguagens estéticas que se a influenciaram, também a superam. Entre xícaras de café de seu pai e de sua filha, surge aqui uma lápide de Bobby Fischer, acolá uma deidade hindu, mais à frente uma obra de James Joyce, e logo adiante uma fotografia de fotografias de Antonin Artaud — imaginado a observar-se nos mesmos registros em que o vemos, duplicando-se a si mesmo. Salta à vista a quantidade de lápides e cemitérios retratados. São tempos de pandemia, afinal. Mas são também os reflexos das perdas que a cantora enfrentou ao longo da vida — além do amante e confidente Mapplethorpe, seu marido Fred Smith e seu irmão, Todd Smith, ambos mortos no mesmo ano de 1994. Como a autora reitera no prefácio, celebrar e cultivar a memória daqueles que a marcaram — em vida ou exclusivamente pelo legado — é ecoar o sentimento universal de perda pelo qual todos devem atravessar mais dia ou menos dia. Antes de tudo, seu livro é um monumento à memória — não por acaso, um pássaro solitário surge entre as páginas dos dias somente para cantar a morte de Marcel Proust.

Chama a atenção o fato de que sua relação com os escritores parece se sobrepor àquela com os músicos. Mas, aqui, estamos sobretudo no regime da estética, em que as atividades artísticas se imiscuem com naturalidade. É assim que Allen Ginsberg, poeta que também compunha canções, faz sua aparição por meio de uma fotografia de sua lavra, na qual a cantora é retratada ao lado de William Burroughs. Desde o início de sua carreira musical, Smith firmou seu lugar no panteão de compositores para os quais o valor literário da letra pode conservar uma autonomia — rítmica, lírica — em relação à música. Não é por acaso que foi a escolhida para performar na cerimônia de premiação do Nobel de literatura concedido a Dylan em 2016. Foi também ao lado do autor de Like a Rolling Stone que escolheu voltar aos palcos, em 1995, após anos de reclusão. Na foto de 24 de maio, aniversário do bardo, Smith aparece mascarada com uma fotografia de Dylan sobreposta ao seu rosto, celebrando-o na legenda como um “fornecedor de máscaras”. Como confessado em diversas ocasiões, o documentário Don’t look back (1967), registro da turnê dylanesca de 1965, marcou profundamente a jovem aspirante, que na artificialidade de um Dylan interpretando para as câmeras entreviu a possibilidade da performance artística alargada para além da criação musical, estendendo-a para a invenção de personas. Um Livro dos Dias nos dá uma noção inédita da diversidade dos materiais com os quais Smith forjou e forja suas facetas tanto em sua obra quanto fora dela.

No que se refere à literatura, três de suas maiores referências detêm nessa multiplicidade de ser um dos cernes de suas poéticas: Arthur Rimbaud — de quem ela é guardiã da propriedade —, William Blake e Walt Whitman. Se essas figuras povoam os dias de seu novo lançamento, elas já apareciam nas publicações de sua lavra poética ao menos desde 1972, data em que seu primeiro livro veio a público. Recentemente, a autora tem se concentrado especialmente em registros autobiográficos — traduzidos e lançados no Brasil de modo imediato pela Companhia das Letras: Só Garotos (2010), seguido de segundo volume, Linha M (2016), configuram-se como livros de memórias; em Devoção (2017), suas reflexões sobre o processo de escrita e a criação artística são também indissociáveis de uma autobiografia estética; e O Ano do Macaco (2019) retoma o caminho da rememoração em sentido amplo.

Em Um Livro dos Dias, memória e tempo passado se imiscuem no tempo presente; datas comemorativas de grandes figuras são postas no mesmo registro de valor de uma cotidiana xícara de café; a família pessoal e a família artística, das mais diversas épocas, parecem indistinguíveis. A mesma horizontalidade e princípio de contaminação dominam a relação entre imagem e texto: nenhum dos dois componentes é subordinado a uma função explicativa; se funcionam autonomamente, formam um terceiro produto, outro, quando conjugados. E aqui gostaríamos de dialogar com a crítica publicada pela Ilustrada no jornal Folha de São Paulo1, tanto pelo mérito deste texto em levantar questões relevantes, quanto pelo que julgamos como reprovações apressadas à obra de Smith. A primeira problemática levantada é a da relação entre a plataforma do Instagram e o livro físico; segundo o resenhista, Smith buscaria apreender a passagem do tempo em livro com um conteúdo banal de rede social que seria inapropriado para esse propósito.

Como ele mesmo aponta, logo no prefácio somos informados que o hábito da cantora de tirar fotografias e escrever breves legendas quase diariamente já vem de décadas. As publicações deste material em rede social e em livro têm valores distintos não só pelo meio, mas pelo ritmo; na primeira, a frequência das postagens acompanha o passar dos dias, enquanto na segunda temos um álbum de um ano todo em nossas mãos, podendo acompanhá-lo de um só golpe e sem as frequentes distrações dos dispositivos com os quais acessamos a conta da escritora. Há também uma implicação de ano definitivo, passado, ao manusearmos o livro impresso, relacionada às memórias afetivas de um álbum de fotografias de família e de toda a longa tradição intimista do gênero textual do diário.

Além do mais, o uso da plataforma como um diário não é assim tão comum nessa rede social, ainda que a comemoração de aniversários o seja. O modo distinto com que Smith utiliza de sua conta reside especificamente no material com o qual ela tem trabalhado já há mais de meio século: a linguagem poética. Indo muito além da descrição comum do álbum de família — nomes daqueles que estão sendo retratados, somados a local e data — Smith celebra os aniversariantes não por listas de adjetivações, mas por meio das criações de imagens poéticas que complementam a imagem fotográfica. Gustavo Zeitel afirma que essa estratégia de preencher os dias celebrando datas comemorativas de suas principais referências e inspirações incorreria em uma “escrita proselitista”: “[n]o que se refere ao uso da língua, Smith está a todo momento demonstrando algo a alguém”, o que tornaria seu estilo “enfadonho” e sua obra “vazia de valor literário”. Ora, os exemplos que colhe para ilustrar essa interpretação corroboram justamente para derrubá-la. Ei-los: “Allen Ginsberg no Washington Square Park, 1966, repartindo poesia como se fosse pão”; “Virginia Woolf, nascida em 25 de janeiro de 1882. Essa é a cama em que ela sonhou”; “Esse é o chapéu do poeta Lawrence Ferlinghetti. Ninguém mais o usará”.

Me deterei brevemente em cada uma dessas legendas, pois penso que elas são exemplares para a ilustração do valor literário deste livro. O primeiro coloca Ginsberg em um plano de comparação no mínimo inusitado com Jesus Cristo, espalhando a palavra de sua poesia, que nada perderia em valor à do Evangelho, que reparte sem a intenção da conversão. A relação com o pão cria uma imagem que remete a dois grandes eixos da poética ginsberguiana que a produção de Smith compartilha: um valor sagrado e um valor prosaico; mais: o prosaico alçado ao sagrado no ato de sua repartição enquanto alimento. O segundo nos impõe imediatamente uma questão sem resposta: o que sonharia Virginia Woolf? Como se sabe, a relação entre realidade e sonho é tema central da obra dessa que é uma das mais importantes romancistas do século XX. Em Mrs. Dalloway (1925), é a tensão entre delírios de guerra e o sonhar acordado, cerceados e calados pelas percepções daqueles que seriam autoridades em designar o que é realidade e o que não é — médicos, policiais — que determina o destino da personagem Septimus Smith e a epifania de Mrs. Dalloway. O terceiro refere-se à data de falecimento de Lawrence Ferlinghetti, lendário fundador da City Lights — livraria e editora e conhecida por publicar livros banidos na era do macarthismo, local sagrado de encontro de escritores de São Francisco na década de 1950. O chapéu é a condensação em um só objeto da figura do louco, da saudação de respeito e tributo do ato de retirá-lo e da marca de uma época. Indissociáveis, legenda e imagem indicam o quanto Ferlinghetti foi protagonista, centro de toda uma época de produção artística e literária da beat generation, e a irreversibilidade de um tempo que, com sua partida, não voltará.

Também é infundada a crítica de que Smith estaria em seu livro apenas “demonstrando algo”, o que implicaria uma linguagem seca e descritiva. Pois os procedimentos mais comuns são os de animação de objetos e de construções de cenas e relações inusitadas. Smith empresta a imaginação de Haruki Murakami para acordá-lo em uma cápsula prateada diante de um céu amarelo; nos faz ouvir crianças rindo nos arredores da lápide de Jean Genet, pedais de distorção construindo catedrais de cacofonia e lamúrias cardíacas, bonecas de pano discutirem como cerzir o mundo; põe musgo e líquen a mimetizar o estilo de Jackson Pollock em sua lápide, a estátua do Leão de Lucerna a sonhar com seu orgulho e a de Joana D’Arc em triunfo ao sobreviver às chamas da Catedral de Notre-Dame.

Essa linguagem, que alia a necessidade da concisão de uma legenda com a alusão ao que não está presente em imagem, é a linguagem que ela emprega para complementar os registros de seus próprios objetos pessoais: xícaras de café, óculos, camas e, sobretudo, livros. A concretude de cada artefato forma sugestões de sua vida privada enriquecida pela imaginação, da celebração da natureza indecifrável de Finnegans Wake (1939) a um gato escutando a história das propriedades medicinais de um limão. A frase inicial do romance Aurélia (1855), de Gérard de Nerval: “Nossos sonhos são uma segunda vida”, celebrada por Smith como o mantra de todo escritor, serve para ilustrar o propósito e o efeito de Um Livro dos Dias, que também é o resultado de seu reencontro com suas anotações quando ainda era uma menina de 12 anos, devorando um livro de fotografias e sonhando em conhecer e registrar o mundo com suas próprias mãos.

O livro é um vislumbre de sua segunda vida e, como ela afirma, “escrever é melhor do que morrer”. São singulares tanto seu uso de uma plataforma famosa pela repetição de conteúdos quanto a impressão desse livro meio diário, meio álbum de fotografias, e algo além dessas duas definições. Não é nenhuma novidade: é próprio dos escritores inventivos forjar lampejos poéticos em mídias improváveis.

1 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/04/um-livro-dos-dias-de-patti-smith-expoe-falha-entre-livro-e-instagram.shtml

Gustavo de Almeida Nogueira é doutorando do Departamento de Teoria
Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP),
tendo a obra de Samuel Beckett como objeto de estudo desde seu
mestrado, realizado na mesma instituição.