Em São Paulo – Até o dia 14 de novembro de 2022, fica em cartaz na Belizário Galeria a exposição coletiva “Escrever outros corpos, criar outras margens”.

A crítica de arte e psicanalista Bianca Dias assina a curadoria da Mostra, e esboça no texto abaixo os seus movimentos principais:

Da série de fotografias “Apnéia”, de Juliana Franco, Rafael Abdala, Sara Não Tem Nome e Victor Galvão

“O diálogo que acontece nesta exposição se dá por vibração e contágio. Em uma zona fronteiriça – um espaço tão visível quanto invisível – o conjunto de obras forja um corpo que produz devires em potencial. O que temos em jogo, na proposta da escrita de outros corpos e da criação de outras margens é, justamente, a abertura de uma dimensão da experiência informe que abre frestas à uma nova constelação de forças desestabilizadoras que criem condições para que se inventem novas cartografias e paisagens.

A fabulação e o sonho são partes do diálogo que a psicanálise estabelece com a arte, tomando a noção de delírio – tal como Freud a concebe, como tentativa de cura – como um movimento disruptivo capaz de transformar a realidade, como o fazem os artistas. O delírio pode denunciar as tentativas de cerceamento subjetivo e abrir as portas da invenção. No lugar de “loucura”, falamos então em “delírio” como gesto político-teórico de afirmação e recusa de delimitação patológica. Na arte delira-se. O pensamento sai dos trilhos que fixam a realidade, ensaiando modelos de mundo e fazendo convites para que reviremos o que está pronto. Diante da degradação simbólica dos tempos atuais e de rasteiros projetos políticos delirantes, podemos invocar a força delirante que a arte traz em seu bojo enquanto potência propositiva e fabulatória.

Fabulação e espanto pulsam no trabalho de Stella Margarita que, mesmo decididamente centrado na figura humana, promove uma distorção na representação e na ideia de retrato, tratando de temáticas singulares que buscam o tremor do mínimo. São gestos que se desvelam no limite do imperceptível em cenas que evocam uma sacralidade – como em “Batismo” – ou que reverberam momentos domésticos. A grandeza de sua obra se funda na beleza do ínfimo, na poesia que amplia todo o deslocamento. A pintura como tarefa ética e estética se ancora numa tentativa de fuga às margens da representação, encontrando ritmo em plena queda. A dimensão do acontecimento surge nas entranhas do inconsciente e, por isso, fascina, encanta e causa certa perplexidade.

A força pulsional de Stella Margarita encontra eco no trabalho de Raquel Nava que, de forma distinta, também opera a partir do assombro e da desnaturalização. A obra de Raquel, composta por objetos do cotidiano e partes de animais, dialoga com a pintura e se desdobra em experiências diversas, sinalizando o interesse por questões corpóreas e de natureza material. As relações entre humanos e animais revelam questões profundas da vida e da morte. Ao confrontar animais taxidermizados, esqueletos de aves e roedores e outros objetos e presenças em uma fauna absurda e delirante, a artista interroga os limites do humano, do corpo e da linguagem em hipóteses, imitações, simulacros e outros artifícios que sustentam uma espécie de zona borrada entre aparição e desaparição das coisas. Atravessado por uma inquietante estranheza e uma dimensão fantasmagórica, seu trabalho abre a possibilidade de formas híbridas de existência. Um inventário infinito e inacabado se prolifera nas fronteiras do absurdo.

A série de fotografias “Apnéia” é resultado de um encontro de experimentação entre quatro artistas – Juliana Franco, Rafael Abdala, Sara Não Tem Nome e Victor Galvão. O ensaio cria tensão entre os tempos e corpos pressupostos pela indústria da moda mas, ao contrário de uma imagem clara e objetiva, o que se apresenta, em película fotográfica granulada, é um corpo que se esconde, se retorce, se volta para dentro de si mesmo e se confunde com o espaço e a superfície ruidosa. Em contraponto a imagens monocromáticas, densas, opacas e asfixiantes, a última obra traz uma abertura para a cor, ainda que sutil, em que o mesmo corpo é capturado em movimento suspenso, uma libertação do estado de tensão que elabora o que excede, realocando aspectos da cultura e do corpo sob novos prismas, articulando o dentro e o fora, o dito e o não-dito e mesmo o indizível.

O corpo é também o centro do trabalho de Laura Gorski. Após uma imersão na floresta amazônica, a artista foi atravessada por uma série de questões oriundas de um encontro com forte potencial encantatório e uma relação de abertura e circularidade. O encantamento pelo desconhecido e o aspecto indomável da natureza fazem com que a artista engaje seu próprio corpo em uma imensidão selvagem e generosa. A partir de técnicas diversas com pigmentos, texturas e espessuras distintas, a artista inclui no seu trabalho a transfiguração do visível através da relação com a terra e seus frutos e ecos. A folha, a semente, a árvore, a água, a pedra, o cabelo, o corpo, a coluna são elementos que sustentam o seu corpo e o corpo do mundo, uma escrita permeável e infinita que cria um hibridismo entre céu e terra, dentro e fora. No lugar da experimentação máxima, explorando os ambientes por onde passa, a temperatura, a cor, a espessura e a mistura de tinta natural e artificial são encontradas pela artista, numa atividade febril de conexões e desconexões em função dos afetos mobilizados pelas forças que se agitam nesses universos variáveis.

Também é desenhando o absurdo e criando seu próprio santuário que Estevão Parreiras nos leva a um salto no abismo. Seu traço, tão exato quanto vertiginoso, porta a ambiguidade do fluxo do jogo da vida. Sua relação com o desenho é estruturante e sua obra se concentra – de forma múltipla, plural, nômade e delirante – na observação dos ritmos diversos que vibram e ecoam em tudo. Para Estevão, desenhar é uma forma de escrever. No corpo, na escrita e no entrelaçamento de ambos há desvios, mergulhos, perigos, inquietações: fragmentos e minúcias de um gesto que se encontra em constante deslocamento, abrigando o tremor das coisas e capturando o absurdo, o sagrado e o imponderável da existência. Seus desenhos abrigam narrativas dos mitos, épicos e cosmogonias ligados ao campo do lirismo popular ou religioso. Da presença súbita do extraordinário ele encontra uma possibilidade de deriva pelo humor. O desenho é a maneira pela qual Estevão habita seu próprio corpo e o mundo. No universo de seus desenhos, as paisagens surgem estrangeiras e como emissárias de outro mundo, paradoxalmente impregnadas de uma realidade ambígua.

Os trabalhos de Estevão são pequenas reconstruções do mundo, numa fina e aguda conversa com a obra do também goiano Marcelo Solá, que cria uma taxonomia infinita de um mundo em vias de nascer, um inventário de casas e bichos como uma maneira de adentrar as frestas da cintilância do desenho. Marcelo faz vicejar as minúcias das origens da forma e escapa a qualquer classificação. Em seu mundo, os animais nos espreitam – distantes e próximos, fascinantes, divertidos e assombrosos – animados pelo traço errante e pela cor. Como que surgidos de um “desenho puro”, eles nos olham e nos despojam de nossa arrogância narcísica: apenas uma linha fina separa a humanidade da animalidade, o doméstico do indomesticável. De maneira sensível, Solá agrupa arquiteturas fantásticas e bichos, elementos díspares que, através do desenho e da serigrafia, são justapostos numa taxonomia infinita e ancestral. Animais e formas arquitetônicas muito singulares se embaralham e nos levam a espaços mentais e temporais, fazendo-nos deslizar em sentidos outros. A dimensão do humor e o flerte com o que escapa aos sentidos domesticados permite que o mistério dos primeiros tempos nunca se dissipe: são garatujas, traços esboçados de forma ruidosa, preservando a centelha de inacessível e irrepresentável de uma obra. Ele nos faz adentrar as fronteiras do humano e do animal, do eu e do outro, do estranho e do próximo. Para acessar regiões de não sentido, as casas e bichos experimentam muitas possibilidades expressivas e vários ajustes formais em diversas texturas de tintas, sobrepondo nuances e filigranas de uma relação viva e complexa entre o corpo do artista e a estranheza animal que revira a domesticidade das imagens e salta à outra margem, extraindo daí um saber possível.

Os artistas reviram margens e escritas e nos recordam agudamente de um poema de Wislawa Szymborska: “no meio do corpo da holotúria se abre um abismo / com duas margens subita-mente estranhas / em uma margem a morte, na outra a vida”. (Bianca Dias)

Mais informações sobre a exposição no SITE da Belizário Galeria.

(Carta Campinas com informações de divulgação)