O pedagogo Henry A. Giroux, em artigo publicado na Carta Maior, diz que o capitalismo se degenerou em um empreendimento criminoso. Para ele, vivemos um ‘capitalismo gangster’ e isso explica porque grupos ligados a milicianos chegaram ao poder no Brasil. Mais que isso, explica também porque, após inúmeros crimes relacionados à pandemia e a informações falsas (mentiras), Bolsonaro ainda se mantém na cadeira de presidente da República. Giroux, que tem nome francês mas é norte-americano, atualmente ocupa cátedra no Departamento de Estudos Ingleses e Culturais da McMaster University. Giroux também um dos primeiros teóricos da pedagogia crítica nos Estados Unidos. Veja alguns trechos do artigo:

Giroux (foto de vídeo – youtube)

“Os tempos mudaram. O capitalismo degenerou em um descarado empreendimento criminoso e não há mais desconfiança na democracia; pelo contrário, ela é desprezada, temida e sujeita ao desdém dos vigaristas que se passam por políticos. Em vez de haver excesso de democracia, o momento histórico atual está sendo marcado pelo apelo para sua completa eliminação. Sob a influência crescente de extremistas de direita como o atual Partido Republicano nos Estados Unidos, os ventos ideológicos do momento clamam pela substituição do ideal e da promessa de democracia pelos ditames do nacionalismo autoritário, da supremacia branca e de uma política de exclusão – todos os quais ecoam um passado perigoso em sua promoção de uma versão atualizada do fascismo.

A maré crescente da política fascista tem sido acompanhada por novas práticas antidemocráticas e modos de opressão e expressão. As lutas e revoltas democráticas são agora mais baseadas em imagens, dado o crescente papel da mídia na normalização de ideologias extremistas e na promoção de modos de identidade e agência em ressonância com ideias e valores fascistas. 

A era histórica atual testemunha uma fusão acelerada de cultura, poder e mídia social, que contribui para o desenvolvimento de novas formações sociais que produzem tsunamis de informações enganosas, chegando àquilo que a Organização Mundial da Saúde rotulou de “infodemias”. Nesse caso, as ecosferas da mídia e as máquinas de ‘desimaginação’ criaram entre grandes segmentos do público uma fuga do pensamento crítico e da responsabilidade social. Isso é ainda mais acentuado pelo que Zygmunt Bauman chamou de “tranquilização ética” – um tipo de silêncio terrível e recusa de opinar em face da injustiça.

“Infodemias” são máquinas de despolitização que abrem caminho através da ordem social e da vida cotidiana, obscurecendo a conexão entre as relações sociais e as configurações de poder que as moldam, substituindo o que Wendy Brown chama de “vocabulários emocionais e pessoais por políticos na formulação de soluções para problemas políticos.” Consequentemente, torna-se difícil para o público, muitas vezes sem acesso a informações críticas, traduzir problemas privados em preocupações públicas. À medida que os interesses privados prevalecem sobre o bem público, os espaços públicos são corroídos e a vantagem pessoal de curto prazo substitui qualquer noção mais ampla de engajamento cívico e responsabilidade social. As “infodemias” tornam difícil para o público imaginar futuros alternativos e os horizontes de possibilidade começam a desaparecer.

A “infodemia” tem contribuído muito para o que Timothy Snyder chama de morte da verdade e da democracia. Em suas palavras: “à medida em que perdemos pessoas que produzem fatos, corremos o risco de perder a própria ideia da verdade … A morte da verdade também acarreta a morte da democracia, pois as pessoas só podem governar quando têm os fatos dos quais precisam para se defender do poder.” As guerras culturais têm sido um grande sucesso para a extrema direita e precisam ser levadas a sério, encaradas como fundamentais para qualquer noção viável de política. Um novo modo de política cultural e educacional deve ser desenvolvido a fim de promover o pensamento crítico, encorajar a dissidência e usar o domínio cultural para ganhar poder a serviço da resistência generalizada. Uma ressalva política é o entendimento de que a luta contra o capitalismo gangster não pode ser reduzida à luta por ideias, consciência e agência.

 Green enfatiza a nova formação social que ele rotula como “política ocular”, referindo-se a uma noção de espectador em que a relação entre os indivíduos e a mídia corporativa é definida por uma cultura visual. De acordo com Green, a política ocular alude “ao fato de que a maioria das pessoas se envolve com a política principalmente com os olhos, ao invés de sua voz”, reduzindo a política às forças do marketing de massa e uma política espetacularizada manipulada pelas elites dominantes em que a maioria dos cidadãos habita o papel de espectador. A política ocular e a mídia social se fundiram para produzir formas de mensagens visuais no interesse da guerra política e da dominação cultural. As plataformas de mídia social de direita transformaram a política em um espetáculo no qual as forças das relações públicas e do consumo se tornam parte de uma política de emoção crua, infantilização e medo.

 O capitalismo neoliberal é uma máquina movida pela morte que infantiliza, explora e desvaloriza a vida humana e o próprio planeta. Entendido adequadamente, o capitalismo neoliberal é uma forma de necropolítica, ou mais especificamente, um tipo de capitalismo gangster que é totalmente criminogênico. O capitalismo gangster prospera no silêncio dos oprimidos e na cumplicidade dos seduzidos por seu poder. Como projeto educacional, ele opera na ignorância manufaturada. Uma consequência é que, à medida que as mentalidades e moralidades do mercado aumentam seu controle sobre todos os aspectos da sociedade, as instituições democráticas e as esferas públicas estão sendo reduzidas, para não dizer desaparecendo totalmente, junto com os cidadãos instruídos, sem os quais não há democracia.

Qualquer pedagogia viável de resistência precisa criar as ferramentas educacionais e pedagógicas para produzir uma mudança radical na consciência, capaz de reconhecer as políticas de terra arrasada do capitalismo gangster e as ideologias distorcidas que o sustentam. Essa mudança de consciência não pode ocorrer sem intervenções pedagógicas que falem às pessoas de maneiras pelas quais elas possam se reconhecer, se identificar com as questões que estão sendo abordadas e colocar a privatização de seus problemas em um contexto sistêmico mais amplo. 

Na era do espetáculo, as ferramentas da pedagogia e da cultura popular devem ser elevadas ao centro da política. Cada vez mais, uma cultura baseada na imagem é onde as pessoas se percebem como cidadãos, agentes e membros de uma comunidade maior. A agência é a base da política, e a cultura é a esfera onde as pessoas se tornam politicamente alfabetizadas ou civilmente analfabetas. Questões de subjetividade, persuasão e identificação são o alicerce material da política e não são menos importantes do que as estruturas econômicas por meio das quais trabalham para normalizar a praga da despolitização, infantilização e seu ponto final: a política fascista. Esquecer isso é dar à extrema direita e ao capitalismo gangster uma vantagem na guerra cultural que pode ser impossível de reverter. As apostas são muito altas para que tudo isso aconteça. (Veja texto integral AQUI)