Gislaine Goulart dos Santos
Gislaine: da escola pública ao título de mestre na Unicamp

Gislaine Goulart dos Santos, filha de José Antonio dos Santos, pedreiro, e Maria Goulart dos Santos, faxineira, cursou o ensino fundamental e médio em escola pública e formou-se em Letras na UNIFEV – Centro Universitário de Votuporanga – uma faculdade privada da sua cidade natal. Durante os dois últimos anos da sua graduação, ela recebeu bolsa de 50% do ProUni, o Programa Universidade para Todos, do Governo Federal, que permitiu a sua permanência no curso de Letras ao ajudar a pagar a mensalidade.

Após ter se formado, Gislaine ingressou no programa de mestrado em Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), na Unicamp. No último dia 30 de agosto, ela defendeu, sob os olhares atentos dos seus pais, a sua dissertação de mestrado – “Sevilha na poesia de João Cabral de Melo Neto” – sobre o poeta brasileiro autor de livros como “Morte e Vida Severina”, “A escola das facas”, “Museu de Tudo” e “Sevilha Andando”, seu último livro, sobre o qual Gislaine se concentra em sua pesquisa.

Com o título de mestre, Gislaine é a primeira estudante que foi bolsista do ProUni durante a graduação a defender uma tese de mestrado no Instituto. Nesta entrevista ao site CartaCampinas, ela conta um pouco da sua trajetória desde a faculdade até a defesa da dissertação. As dificuldades de trabalhar durante o dia para poder pagar a faculdade e se acostumar a estudar de madrugada, depois o processo de transição para o mestrado em uma das maiores universidades do mundo, o aprendizado da pesquisa e da escrita, do pensamento sobre a poesia, tudo isso é dito nesta entrevista que, ao final, deixa uma mensagem poética sobre as facas, balas e relógios – as nossas armas do cotidiano – com as quais travamos as batalhas desta vida severina.

CartaCampinas: Você é a primeira aluna que cursou a faculdade com auxílio do ProUni a defender uma dissertação de mestrado no IEL (Instituto de Estudos da Linguagem) da Unicamp. Conte um pouco da sua experiência na graduação, como foi a sua formação em Letras como bolsista do programa?

Gislaine: O fato de ser bolsista do ProUni não alterou a minha formação em Letras, só permitiu a minha permanência no curso, porque custeou metade da mensalidade que eu estava tendo dificuldades para pagar. Eu trabalhava durante o dia para pagar o curso e minha família, na época, não tinha condições de me ajudar, por isso o ProUni foi importante na minha vida.
Sobre a minha experiência na graduação, penso que foi semelhante a de muitas pessoas brasileiras que trabalham durante o dia e estudam à noite. Nos quatro anos de curso, eu tive que aprender a estudar de madrugada para ter bons resultados nas aulas e nas provas. Hoje eu avalio todo o sacrifício e chego à conclusão que valeu muito o esforço e dedicação neste período de graduação que serviu para mim como uma lição para toda a vida.

CartaCampinas: Quando você ingressou no programa de mestrado em Teoria e História Literária na Unicamp quais foram as principais mudanças sentidas em relação à graduação? Como foi o processo de transição? Você teve alguma dificuldade de adaptação?

Gislaine: Na minha opinião, o curso de pós graduação, sobretudo o mestrado, é uma aprendizado novo para todo mundo, porque neste período aprendemos a escrever e a pesquisar. No meu caso, eu tive uma experiência de pesquisa quando fiz meu TCC na graduação que, na época, se tratava de um trabalho individual de cada aluno, hoje, já não é mais assim na UNIFEV, porque os trabalhos de pesquisa são feitos em duplas. Como eu desenvolvi uma pesquisa individual, isso me possibilitou a continuar estudando e aprimorando o que já tinha iniciado na graduação e na pós.
Eu tive dificuldades de transição, principalmente no primeiro ano, porque tinha que fazer as disciplinas e pesquisar o meu objeto de estudo ao mesmo tempo, mas sobrevivi a esta primeira etapa. Depois, eu passei por uma outra experiência na minha pesquisa na qual tive que repensar e refazer tudo o que tinha pensado e escrito, mas foi mais um obstáculo da lista dos que surgiram neste período que consegui superar até, enfim, defender a minha dissertação no dia 30 de agosto de 2013.

CartaCampinas: A sua dissertação de mestrado defendida recentemente fala sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto. Por que João Cabral?

Gislaine: Eu conhecia alguns poemas de João Cabral que estudei na graduação, mas a ideia de estudar a sua poesia surgiu quando eu estava pensando no meu projeto de TCC e decidi falar com um dos meus professores de Literatura, o professor Paulo Ferrarezi, e disse a ela que gostaria de estudar poesia, mas estava indecisa sobre o que pesquisar. Ele me disse que se eu quisesse continuar estudando, que é o que eu deveria fazer segundo ele, eu tinha de estudar um poeta “de peso”, então, ele me sugeriu João Cabral de Melo Neto. No entanto, como João Cabral é e foi um poeta muito estudado, eu deveria encontrar algum aspecto ainda não pesquisado, ou pouco estudado sobre a poesia cabralina, foi quando eu encontrei o livro Sevilha andando, última obra do poeta. Desde esta conversa, eu comecei a pesquisar este livro do poeta e pude aprofundar ainda mais o seu estudo na minha pesquisa do mestrado.

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CartaCampinas: O enfoque particular da sua dissertação foi no último livro de João Cabral, onde você ressalta o tom religioso presente na obra. Como conciliar a religiosidade em um autor que se dizia ateu e que é conhecido pela “engenharia” com as palavras, ou seja, pela racionalidade na construção do verso?

Gislaine: O livro Sevilha andando (1989) apresenta-se dividido em duas partes – “Sevilha andando” e “Andando Sevilha” – e o tema da religião aparece na segunda parte desta obra nos poemas “Semana Santa”, “O asilo dos velhos sacerdotes” e “Padres sem paróquia” em outros também, mas não tão nitidamente. Como você ressaltou, João Cabral sempre se dizia ateu, por este motivo quando eu iniciei a estudar este tema, tive dificuldades de entender o motivo que levou o poeta a retratar este tema em sua última obra. Mas também pensei que seria difícil João Cabral não retratar esta temática religiosa em um livro que busca descrever o espaço sevilhano, visto a religião ser um tema incontornável da cultura ibérica por estar presente na história, na cultura, nas tradições, nos costumes e nos monumentos sevilhanos. Para entender o modo como João Cabral se relacionou com a religião nos poemas de “Andando Sevilha”, eu tive de estudar os poemas sobre Sevilha de livros anteriores a Sevilha andando e conclui que a compreensão do espaço sevilhano se dá por meio de seus aspectos culturais, humanísticos e poéticos, porque há uma identificação de João Cabral com a cidade de Sevilha e com a produção literária espanhola por meio de seu caráter tradicional-popular. Essa foi a chave de leitura para entender que a religião nos poemas cabralinos não tem um sentido doutrinário ou mesmo transcendental. No poema “Semana Santa” a religião é vista como uma manifestação cultural popular que reativa os laços sociais; já nos poemas “O asilo dos velhos sacerdotes” e “Padres sem paróquia”, as atitudes do clero sevilhano são indiferentes às manifestações populares, por isso estas atitudes clericais são criticados nestes poemas, porque são irrelevantes à ordem social e coletiva. Portanto, o fato de João Cabral ter retratado a religião em Sevilha não significa afirmar que ele deixou de ser antiespiritualista e materialista, visto que o poeta pernambucano coletou as características das festas e das situações religiosas e as operacionalizou em forma de imagem em sua poesia, ou seja, essas características materiais do mundo exterior foram organizadas nos poemas de maneira a atender os interesses poéticos e éticos do poeta. Isso quer dizer que João Cabral manteve o seu materialismo poético ao retratar a religião em Sevilha, o que não lhe confere um caráter religioso por abordar este tema.

CartaCampinas: Qual a importância que o ProUni teve na sua formação e como você vê o programa?

Gislaine: O ProUni, como disse anteriormente, permitiu que eu desse continuidade ao meu curso, porque custeou metade da mensalidade. O ProUni é um programa que dá bolsas integrais e parciais para alunos de faculdades privadas, portanto, é um programa que dá oportunidade para as pessoas sem condições financeiras a estudarem, este foi o meu caso.

CartaCampinas: Entre tantos poemas de João Cabral, cite um que você mais gosta e que diga algo sobre a construção do conhecimento, a importância dele na nossa vida.

Gislaine: Na minha opinião, o poema “Uma faca só lâmina (ou: serventia das ideias fixas)” (1955) reflete sobre a construção do conhecimento e é uma lição não só de poesia como também de vida, porque propõe uma reflexão ético-existencial sobre as noções de agressividade, carência e interiorização em torno de três elementos: faca, bala e relógio. Trata-se de armas que o homem usa em sua luta diária.

Citarei a última parte deste poema para instigar as pessoas a lê-lo na íntegra e refletir sobre ele:

De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que mais condensa o homem
quanto mais o mastiga;

de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;

da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;

pois de volta da faca
se sobe à outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,

e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte e dentada

e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pôde a linguagem,

e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,

por fim à realidade,
prima, e tão violenta
que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta.

 

(Maura Voltarelli/Rede CartaCampinas)