Por Luís Fernando Praga

Era forte e enxuto o corpo preto e formoso de João Carlos. Algum desavisado poderia imaginar que tivesse sido uma criança muito bem alimentada, mas não passara de mais um menino miserável que sempre comera o mínimo pra não morrer.

Fossem os tempos da escravidão, a harmonia dos traços, o olhar poderoso, os dentes muito brancos e a força muscular que compunham a beleza daquele corpo, poderiam garantir que João fosse vendido por um dinheiro que ele jamais acumularia em toda a sua vida, mas João não se entregou à escravidão daqueles tempos. Jamais o compraram, jamais se vendeu.

Provavelmente, tinha uma boa genética, sua mãe era linda e, por sorte, saudável, porém outros fatores influenciaram para que ele adquirisse corpo tão atlético e bem definido. Morava no alto do morro, mas não foi porque ele quis, não; nascera lá sem escolha e nunca pode se dar ao luxo do sedentarismo; assim, jamais cultivou um só músculo preguiçoso. Precisava caminhar pra ir à escola, à cidade, às vezes pra arranjar comida… e precisava correr, pular muro e subir em árvore para fugir da polícia e para brincar de ser criança. Depois, quis trabalhar pesado.

João, quando criança, era criança mesmo! Livre demais, brincava como um menino sem tablet, televisão ou celular; era pé no chão, bola, pipa e vida; e aí começava aquele ciclo vicioso. Menino preto correndo descalço ou era brincadeira ou banditismo e, na dúvida, a polícia atirava, pra não deixar pivete virar bandido grande; “pau que nasce torto nunca se endireita”, diziam; e, no país de João, matar criança pobre era praticamente uma lei.

João levou muito safanão e viu muitos amigos morrerem de polícia; outros não eram mais vistos, mas ele era astuto e, vendo como morriam e matavam no morro, foi ficando cada vez mais “liso”, arranjou os mocós só dele, onde ninguém conseguia encontrá-lo na hora dos apertos.

Muito sortudo, João tinha mãe, e a mãe daquele menino preto de pés descalços conseguia amá-lo demais, certamente não menos que qualquer mãe de menino branco, rico e de sapatinho no pé. Aquele amor de mãe era o que amaciava a vida dura que João engolia todo dia e, de tanto amor, João aprendeu a acreditar que a vida era a fruta mais macia e saborosa.

O pai de João era um homem que apenas Maria sabia quem era, mas era um homem de sorte, pois já fora amado por Maria, antes de deixar de fazer parte de suas vidas.

De noite, a Maria voltava pro barraco. Trabalhava como limpadora de chão numa loja da cidade e não via a hora de chegar a hora de chegar em casa e trocar aquele abraço com o menino magrelo a quem tanto amava. Como a vida era macia naquele momento!

Maria contava as notícias que via nas TVs da loja, sempre ligadas, cada uma num canal. João gostava de ouvir as notícias do canal dos bichos e imaginava como seriam os elefantes, crocodilos, tubarões, onças e serpentes. João gostava dos animais e às vezes cuidava de um passarinho ferido até que estivesse pronto pra voar; então o soltava e deixava que fosse livre, que fosse pássaro.

A mãe amava ver o brilho nos olhos do pequeno João Carlos, que acendiam fortes quando a voz de Maria contava histórias.

João era sortudo que em sua cidade não fazia muito frio, já que, no barraco, não possuíam uma coberta que cobrisse, por inteiro, o corpo de ambos, mas se esfriasse não tinha problema: João sempre adormecia abraçado à mãe e o frio não ousava se aproximar do abraço deles.

A escola era ruim, mas era uma escola e Maria queria que João estudasse pra ser alguém na vida. João também queria estudar, mas para entender a vida. Instintivamente sabia que todos eram alguém na vida, com ou sem estudo. Só não entendia por que alguns eram tratados como ninguém.

Havia os amigos da escola e os amigos da rua, todos pobres como João, que gostava de estar entre eles, pois, se ia à escola para entender a vida, passou a compreender que cada um de seus amigos era uma lição, que a rua era outra escola e que ele não devia se privar de nenhum aprendizado.

João era um moleque esperto, prestava atenção a tudo sem ninguém mandar. Vivia a maior parte do tempo por sua própria conta e não tinha muita gente que se ocupasse de mandar nele.

Raciocinava a respeito dos motivos pelos os quais as coisas acabavam acontecendo como aconteciam, tanto em sua vida, quanto na vida dos outros, na vida da sociedade, na favela, na cidade, no País e no Mundo.

Nem sempre era possível explicar por que as coisas aconteciam assim ou assado, mas João gostava de raciocinar e preferia continuar quebrando a cabeça, a vida toda, a aceitar uma explicação que lhe parecesse ridícula, inconsistente ou infundada e que, por mais que fosse a verdade de alguns, não o convencesse.

Prestando atenção à vida, João foi se tornando um jovem muito questionador, e foi aí que ele reparou que a vida não era só macia. Ah, mas como João era sortudo por ter experimentado o amor…

Certa manhã, na sala de aula, João ouviu o tiroteio se aproximando e se escondeu sob a carteira. O professor mandou que se sentasse direito, mas ele não se moveu. O mestre, então, aproximou-se com brabeza nos olhos e dedo em riste, quando a bala perdida passou a um palmo daquele dedo e atingiu, em cheio, o crânio de Ana, que morreu instantaneamente. O sangue vermelho da amiguinha negra tingiu o chão e os pensamentos de João. Ana também tinha uma mãe que a amava, tinha pai, irmãos e teria uma vida toda pela frente, que poderia ter sido macia, caso as pessoas que atiravam estivessem amando naquele momento.

O professor e todos os colegas jogaram-se no chão, mas o tiroteio havia acabado.

João ficou em estado de choque por alguns minutos, porque as crianças negras e pobres também possuem sentimentos e, sem querer, podem entrar em estado de choque e até ficar definitivamente traumatizadas, mas João era forte, sortudo e conseguiu superar.

Naquele dia a aula acabou mais cedo e João aprendeu que não deveria obedecer ao professor, ou a ninguém, mais que à sua própria consciência.

Voltou pro barraco, sentou-se num canto do chão de terra, abraçado aos joelhos e chorou até Maria chegar; então se abraçaram e ele chorou de alívio.

Maria amava seu filho e preferiu que ele não fosse à escola no dia seguinte. Mal amanhecia, mãe e filho desciam o morro pra pegar a condução pra cidade. Maria levaria João pro seu trabalho. É natural que uma mãe zelosa, vez por outra, precise levar o filho ao trabalho.

Maria entrou na loja, colocou seu uniforme e limpou o chão o dia todo, enquanto João esperava na calçada, não em frente nem muito perto, pra não espantar os clientes.

João, que gostava de pensar e, por isso, conhecia bastante a seu respeito, ficou intrigado com o que levaria os clientes da loja a se espantarem com ele, uma criança magrela e inofensiva, mas percebia mesmo o olhar de receio.

Quando podia, e ninguém espiava, Maria chegava até a porta da loja, pegava o filho no colo e apertava forte, deixando uma lágrima na pele do menino sem camisa, que adorava esse momento.

Nesse dia, João viu muitas crianças brancas, como jamais havia visto, com roupas de todos os tipos e cores, calçados reluzentes, entrando e saindo da loja, com os olhos em seus celulares e mãos dadas com algum adulto, também cheio de roupas e olhos no celular. Também viu algumas crianças negras, umas bem felizes, outras bem sofridas, com poucos sapatos, poucas roupas e do lado de fora das lojas.

João ficava entristecido ao ver gente triste, então pensou na mãe de Ana. Seria melhor, para todos, que as pessoas tristes não ficassem tristes por muito tempo, mas como? Ah, se aquelas pessoas que atiraram estivessem amando naquele momento, abraçando alguém…

À noite pegaram o ônibus de volta. A mãe dormiu no trajeto, de pé, com a cabeça apoiada ao braço erguido, que segurava a barra no teto do veículo. João também dormiu de pé, abraçado à perna de Maria e depois continuaram no abraço de dormir em casa, sempre repleto de afetos.

No outro dia, o franzino João Carlos acordou disposto a mudar o mundo.

Ele enxergara sofrimento demais, em gente demais, e acreditava, fortemente, que a vida deveria ser mais macia para todos, não só pra ele.

Menino de sorte, aprendeu a amar a vida, raciocinar e confiar em sua consciência. Sabia que suas verdades ainda eram poucas e frágeis para que conseguissem mudar o mundo; assim, decidiu que, dali pra frente, a cada dia, buscaria cada vez mais conhecimento, a fim de que, um dia, sua verdade se amparasse em bons argumentos, se tornasse forte e, só então, transformadora.

Desejou aprender muito além do que a escola o mandava decorar e, por anos, o que se via na favela era aquele moleque subindo e descendo o morro com seus pés descalços e um livro na mão.

Na adolescência, a biblioteca da escola ficou insuficiente e ele decidiu trabalhar para comprar livros e aprender mais coisas.

João tinha muita sorte por adorar a liberdade e pensou que seu trabalho deveria ser uma ocupação que não lhe aprisionasse o corpo nem a mente, e que também lhe acrescentasse conhecimentos úteis.

Depois de alguns meses na carpintaria do Zé, comprou e leu “O Pequeno Príncipe”, “O Príncipe” e “A Conquista do Pão”. Aprendeu carpintaria, reformou o barraco e conseguiu tornar suas vidas ainda mais macias quando ensinou Maria a ler. Aprendeu com os sentimentos, os conhecimentos e as ignorâncias do ser humano carpinteiro Zé, por quem nutria amor e gratidão.

Depois, trabalhou como pedreiro, balconista de boteco, pescador, eletricista, encanador e jardineiro; ocupações que forneceram conhecimentos valiosos, também sobre os seres humanos com quem convivia. Foi conhecendo melhor os outros que João ampliou seu autoconhecimento.

Leu “Dom Quixote”, “A Bíblia Sagrada”, “O Velho e o Mar”, “O Capital” e namorou. Amou com consciência, sem pudores e leu “Assim Falou Zaratustra”, “Os Miseráveis” e “As Veias Abertas da América Latina”. Viveu a vida do morro lendo “Guerra e Paz”, “O Reino de Deus Está em Vós” e “Desobediência Civil”. Leu Darci Ribeiro, Paulo Freire, Fernando Pessoa e Saramago. Amou ler Drummond, Cora, Quintana, Cecília, Vinícius, Clarisse e Chico. Entregou seu amor e foi amado outras tantas vezes!

A partir da experiência adquirida no trabalho, nos livros, no convívio e nos erros (João teve a sorte de errar sem ter sido preso ou assassinado, sorte de gente branca!), implantou melhorias em sua casa, em sua rua e em seu bairro e procurava transmitir seu conhecimento a tantos quantos fosse possível, porque pensava que quanto mais gente houvesse em busca de aprender o novo, mais fácil seria mudar o mundo para melhor.

Os anos se passaram e Jotacê, como os amigos habituaram-se a chamá-lo, adquiriu um humor inteligente e sedutor. Deixou pra trás aquele corpo mirrado e Maria ficou pequenina para seu abraço. Ganhou músculos invejáveis e uma cultura e conhecimentos raros, inatingíveis a quem temia atingi-los.

Percebeu que a escola ensinava de forma tendenciosa e que a história lá contada omitia e deturpava os fatos, criando uma falsa “verdade”, na qual os cidadãos acreditavam cegamente, já que precisavam trabalhar, comer, comprar coisas, andar bem vestidos, se casar, cuidar dos filhos e levar vantagens sobre outros cidadãos; enfim, tinham muito o que fazer antes de gastarem seu tempo questionando professores e o ensino. Para João, educação era de vital prioridade.

Ao concluir o ensino médio, João havia lido muito, assimilado demais e abandonado pelo caminho uma série de medos muito íntimos, outros coletivos e sociais; pesados supérfluos que só percebemos que carregávamos quando nos livramos deles.

Jotacê era, agora, um cara seguro e instruído. Sentia-se bem sucedido, leve, forte e pronto para mudar o mundo. Não tinha sonhos de consumo, não tinha sonhos de grandeza pessoal ou fama, ah, mas como ele tinha sonhos!

Passou a ir, todo final de tarde, à pracinha, onde se colocava à disposição para aliviar algum sofrimento, resolver algum problema ou transmitir conhecimentos que a escola não transmitia.

Aquele pequeno aglomerado de gente foi, semana após semana, tornando-se uma plateia fiel e cada vez mais abundante, porque, naqueles tempos, tudo custava dinheiro, até as coisas ruins, mas João dava o melhor de si, e isto fazia muito bem às pessoas, sem cobrar nada daquele povo pobre.

João voltava pra casa às altas da noite, às vezes de madrugada, às vezes atravessava conversando com alguém e só ia dormir de manhãzinha; e, quando não podia ver a mãe, sentia saudades. Caía na cama cansado e, antes de adormecer, sempre corria pela memória o dia que tivera. Assim avaliou que nenhum conhecimento adquirido fora inútil; porém, que o mais útil de todos não viera de um livro ou do conselho de algum mestre, mas de seu coração, de seu instinto de amar, de sua consciência de querer o bem a todos e de seu apreço pela liberdade.

Amar resolvia todos os problemas resolvíveis. O que não era resolvível, João reparou, não era problema e sim, coisa de se viver e aprender.

João relacionou que tal percepção deveria ser inata, natural a todos os seres humanos, já que pensamentos literalmente iguais aos dele constavam de diversos livros, como principal ensinamento para que a vida fosse macia, rica, plena e socialmente justa para todos.

João constatou que a vida era só o que ele possuía, que sua vida era só o que ele poderia transformar e que só poderia fazê-lo antes que a morte chegasse, já que ela, inevitavelmente, viria e isto não poderia ser visto como um problema.

Pensou que, nalgum ponto da vida, algum mestre equivocado ou uma sociedade imperfeita deveriam fazer o vivente se esquecer do seu instinto de querer bem. As pessoas acabavam trocando os benefícios do amor por ilusões efêmeras e destrutivas, que geravam ganância, vingança, ódio, guerra, dor e um sofrimento perene, até a vida acabar.

Desejou que todos vivessem amando… ninguém teria atirado em Ana… ninguém teria atirado em ninguém.

As pessoas da praça tinham sorte em poder ouvir as palavras e sentir o amor de João. Gente faminta aprendia a plantar sua horta, pescar e dividir. Gente rancorosa aprendia que a vida sem rancor era outra, e muito melhor. Gente viciada aprendia que a vida guardava muito mais belezas e prazeres que apenas um. Gente doente encontrava a vida além da doença e isto já era uma cura. Gente falida aprendia que o dinheiro não salva vidas, apenas viver salva a vida.

Todos aprendiam que, enquanto há vida, há possibilidade de se evoluir, e que a forma como cada um escolhe viver é uma escolha pessoal, que deve ser respeitada. João acreditava que a vida seria melhor quando tal escolha pessoal fosse baseada no conhecimento, não em mentiras e preconceitos.

A atuação de João na comunidade transformou seu mundo. Suas palavras se espalharam e viraram prática, a cooperação virou rotina, os objetivos passaram a ser o bem comum e sua realização trazia um enigmático sorriso de sucesso aos moradores daquela bela favela.

João, agora, mantinha uma legião de seguidores, e gente de toda a cidade vinha à pracinha ouvir o que ele tinha a dizer. Era adorado e muito respeitado pelos que aceitavam o amor e o conhecimento em suas vidas. Entretanto, havia gente contaminada demais por outros desejos que não o amor incondicional e o bem comum. Gente contaminada pelo desejo de possuir coisas, de ter poder sobre pessoas, de ser mais importante, de ser mais temida ou de ser mais amada que outras gentes. Gente contaminada pela inveja e pelo ódio. Gente em quem as palavras de João tocavam, mas às quais não conseguiam transformar.

Numa tarde, um renomado político e empresário subiu o morro à procura de João. Seu filho sofria e ninguém fora capaz de ajudá-lo.

João indicou que o pai o trouxesse à pracinha, mas o poderoso capitalista disse que não queria expor o filho e pediu que João fosse à sua casa. João explicou que todos ali, com as mais diversas dificuldades, estavam expostos, que isso não poderia representar um problema e que ele não devia tratar o filho do rico de forma diferente. O homem ajoelhou-se e implorou. Disse ser questão de vida ou morte e que se João se deslocasse até sua casa seria muito bem recompensado.

João sentiu o desespero do velho pai e se propôs a uma visita, na tarde seguinte e assim ficou combinado.

Era feriado e fazia muito calor quando João partiu para a casa do político. Seu carro não tinha ar condicionado nem vidro elétrico nem vidro nem nada. João, apesar do prestígio, não tinha carro. Continuava o mesmo homem humilde que perambulava descalço pelas ladeiras do morro e, vestido à extrema simplicidade, caminhou por um bom tempo e chegou à mansão, na hora prevista: um luxuoso condomínio.

Em princípio foi ignorado pelo outro homem negro da portaria e, quando foi ter com ele, antes de ser ouvido, ouviu: “vai trabalhar, vagabundo, aqui não é lugar pra você!”. João explicou calmamente a situação, a equipe de segurança o revistou e o manteve esperando por muito tempo, até que resolveram criar coragem e avisar ao dono da casa que um indigente estava ali dizendo ter hora marcada.

Na casa portentosa, João encontrou o filho do homem. Cristiano olhou João de cima para baixo, com asco e desprezo. Tinha perto dos 30, cabelos longos e loiros, barba bem feita e olhos muito azuis. Havia sido um modelo famoso, tornou-se viciado em álcool e várias outras drogas e assim envolveu-se num mundo perigoso. O pai, até então, sempre ausente, sentiu o descontrole da situação e decidiu-se por não mais financiar os vícios de Cristiano, mas o filho, que sempre tivera tudo o que pedira, exceto atenção e afeto, passou a roubar, em princípio, as coisas do próprio lar; depois foi para as ruas, depois começou a andar armado e, numa discussão acalorada como o seu traficante por mais uma dose vendida no fiado, matou o homem negro, sem instrução, filho de pai ausente, que, para sobreviver, vendia drogas que homens brancos consumiam e dividia seu lucro com policiais pobres que fingiam que não viam, contratados por brancos ricos que fingiam que não viam, tudo aos olhos da sociedade que fingia que não via. Era uma ocupação perigosa e o traficante não sobreviveu.

Cristiano estava perdido no vício e jurado de morte, e João sentiu muito por ele.

João se considerou muito sortudo pela vida que construíra e por, apesar do pai ausente, ter conseguido chegar à vida adulta sem ter-se tornado um viciado ou traficante.

A situação era dramática. Ações haviam gerado reações e causas acumularam efeitos que inevitavelmente se concretizariam cedo ou tarde. João tentaria, ao menos, minimizar os problemas daquela família de gente endinheirada.

Disse a Cristiano que ele era livre para viver a vida como bem entendesse, mas que a vida poderia ser boa, não precisava ser tão sofrível, e que, em algum momento, ele havia aberto mão dessa liberdade e de todas as maravilhas que a vida oferece, em troca de um prazer efêmero, que jamais voltaria a ser o mesmo e que o aprisionaria numa busca infinita por uma sensação maravilhosa, que jamais esteve na droga, mas que continuava dentro dele e espalhada pela vida: só precisava ser buscada de formas diferentes e em coisas diferentes.

João sabia que Cristiano estava ameaçado de morte e quanto a isto não havia milagre. Sugeriu que fugisse, que sumisse do mapa e recomeçasse a vida longe dali. Não considerava uma boa opção que Cristiano se entregasse à polícia, pois não havia justiça ou recuperação nas punições impostas por uma sociedade doente. Na visão de João, a prisão era uma terrível vingança que igualava o estado aos criminosos mais bárbaros e cruéis, e nenhum ser humano merecia passar por isso.

Cristiano chorou compulsivamente ao ouvir as palavras de João Carlos, mas já não era capaz de compreender seus próprios sentimentos. Seu cérebro estava contaminado demais, de preconceitos, prepotência e química, para aceitar o auxílio de um favelado preto e esfarrapado, igual ao traficante a quem matara friamente.

Cristiano chamou os seguranças e, na presença deles, ordenou, aos berros, que João saísse já daquela casa. Desferiu um forte tapa no rosto de João, que era mais forte que Cristiano e que os seguranças, inclusive emocionalmente; e João retirou-se humilde e chateado pelo insucesso.

Refez o trajeto até o morro e, já em seu barraco, abraçou Maria, que o beijou muito e retribuiu ao abraço de forma particularmente emocionada. João tomou um banho, trocou a roupa simples por outra roupa simples, despediu-se da mãe com outro beijo emocionado e partiu para a pracinha, onde pessoas o aguardavam ansiosas.

João foi ovacionado e abraçado pela gente da pracinha. João, ali, era um pop star, e ninguém naquele morro era mais respeitado que ele, mas a polícia chegou e o enquadrou. Pego de surpresa, João não teve tempo de fugir da justiça. O tenente enfiou a mão no bolso daquele preto e arrancou um pacotinho com alguma droga.

Na viatura, Cristiano chorava e proferia ofensas pesadas contra João.

“Este preto, traficante filho da puta! Não aceitou que estou me limpando, invadiu minha casa para me ameaçar e acabou matando meu pai! Maldito! Assassino!! Bandido!!”

Ao longe, no alto de outro morro, a estátua de concreto iluminada de um Cristo Redentor acompanhava a cena.

Na multidão de adoradores, muitos, rapidamente, mudaram de opinião, indignaram-se contra aquele preto enganador e partiram para cima do assassino do famoso homem público. João foi agredido e um antigo colega da escola o apedrejou, deixando uma ferida que fazia sangrar-lhe a testa. Muitos tentaram impedir o linchamento, dentre os quais, João notou a presença de Maria.

A mãe, desesperada, transpunha o aglomerado humano enfurecido como que caminhando sobre as águas, o foco era o filho e nada a impediria. Seus dedos se tocaram, João segurou na mão da mãe, a puxou para si e enfim se abraçaram, banhados no sangue que escorria pelo corpo de João Carlos.

Maria, aos prantos, gritou para a multidão: “Vocês conhecem meu filho! Sabem que ele é bom e inocente! Isto não é verdade, não é justo, parem!!”

O povo pareceu entorpecido, e uma pesada paz reinou por um instante, até que o tenente e dois soldados desfizeram o último abraço entre aquela mãe e aquele filho, seus dedos se afastaram, Maria foi empurrada pra longe e João foi algemado e, aos tapas, jogado no camburão.

Ao ver a mãe transtornada, rastejando e implorando por sua liberdade, João ainda conseguiu dirigir suas palavras a ela e, num tom baixo e tranquilo, estranhamente audível por todos, pediu: “Por favor, mãe, não deixe de amar!”.

Seguiu, rumo à delegacia, acompanhado dos homens da lei, na traseira da viatura.

Naquele curto percurso, João entendeu que não havia milagre que curasse, instantaneamente, uma sociedade acometida por uma ignorância secular. Entendeu que era preciso cultivar tais ignorâncias, como o ódio, o preconceito e o desamor, para que tudo pudesse ficar como estava, pois apenas o esclarecimento transforma e, para quem já detinha o poder, para quem determinava o que era e sobre quem deveria pesar a justiça, para quem ditava de que forma a história deveria ser contada, para quem ostentava luxo e posses oriundos da exploração humana, para quem podia o que pretos e pobres não podem, nenhum esclarecimento e nenhuma transformação eram desejáveis.

João entendeu por que os poderosos de outros tempos tiveram o interesse de escrever um livro contando a história de um homem bom, que pregava o amor e a tolerância, humilde, justo e transformador, que foi injustiçado, torturado e morto pela lei e justiça vigentes. João entendeu os motivos pelos quais aquele livro ensinava que, não importa o quanto se sofra nesta vida, deve-se sofrer resignadamente, porque Deus está no comando, está vendo tudo e garantirá que, depois da morte, venha a parte boa da vida, e que aqueles que nos fizeram sofrer em vida, serão, como vingança divina, castigados no inferno. João entendeu por que aquele livro era o livro mais lido do mundo, regularmente, o único livro lido na vida por toda aquela população ignorante. João entendeu por que, nesse livro, o Messias, o Salvador da humanidade, um homem nascido no oriente médio, encostadinho na África, de pele escura e cabelos negros e crespos, precisou ser transformado num branco, loiro, de olhos azuis. Sim, o livro queria dizer que é nesses, nos brancos, loiros e de olhos azuis, reflexos do próprio Deus, é que os desamparados devem confiar, é nos brancos que está a salvação, são brancos os políticos que cuidam de nosso mundo, são brancos os grandes capitalistas, são brancos os juízes que mantêm justa a nossa sociedade e são brancos os banqueiros, todos brancos e muito cristãos.

Seria muito arriscado, para quem escreveu o tal livro, que seus leitores tivessem o conhecimento de que, desde os tempos de Jesus Cristo, quem é condenado injustamente, torturado e morto a mando da lei, são os negros e os pobres.

João entendeu por que os estados mais brutais, corruptos e injustos do planeta, têm muita dificuldade em se tornarem laicos.

João sabia que não havia milagre que mudasse esta dura realidade, mas sim, tempo e evolução. Sabia que dogmas aprisionavam o povo na ignorância e no medo de mudar. João sabia que todos temos o mesmo sangue, que todos cometemos erros e acertos e que todos merecemos a mesma dignidade e a verdadeira justiça.

João sabia que Cristiano havia matado o próprio pai e herdaria toda a sua fortuna, que comprara os policiais para que plantassem a droga em seu bolso e que se cercaria de milícias e mataria quantos inocentes ou parentes ou traficantes fossem precisos para continuar exercendo seu poder enlouquecido.

João sabia que não havia milagre que resolvesse sua situação naquele camburão, seria preciso muita sorte, mas João já tivera sorte demais nesta vida. Era um homem feliz por enxergar com clareza, por ter conseguido mudar o seu mundo e porque sua vida fora rica da melhor riqueza possível.

Naquele feriado de “corpus christi”, a versão oficial foi de que João não resistira aos ferimentos causados pelas agressões sofridas na pracinha e já dera entrada morto na delegacia. Mais um preto maltrapilho que chegava lá morto. E era flácido, marcado pela tortura, ensanguentado e sem vida o corpo preto de João Carlos.