Por Luís Fernando Praga

Quem me conhece sabe que sou um caboclo trabalhador, que já vim pré-adaptado às novas reformas trabalhista e da previdência.

O ofício da medicina veterinária é lindo e gratificante, entretanto é raro que se encontre um colega, não concursado, um cirurgião, um clínico geral ou qualquer especialista, autônomo, recebendo os benefícios trabalhistas previstos na CLT.

Ainda existe CLT?

Fato é que, apesar de desamparados pela lei, temos, ainda assim, certas carências, intrínsecas à condição humana, como o merecido descanso depois de intermináveis meses de labuta incessante, se é que a lei ainda não mudou isso.

No meu caso, preciso e adoro viajar, respirar novos ares, abrir os olhos para novas paisagens e poder usufruir de momentos de lazer e cultura com a família.

Além de depender da suada economia, a fim de acumular o bastante para me ausentar do trabalho por 7 a 15 dias no ano e, ainda assim, ter o que comer e como viajar, meu principal parâmetro de necessidade de férias pode parecer um pouco subjetivo para quem não trabalha, diariamente, a centímetros da boca do animal.

Pois é, conforme os dias de atividade de um veterinário, experiente como eu, vão sucedendo, a gente começa a sentir aquela coisa esquisita por dentro, um pânico por nada, uma aflição desconfortante, que nada mais é que um prenúncio divino, dizendo que a próxima mordida está próxima. Neste ponto um gatilho é acionado e o veterinário, automaticamente desabafa: “Eu preciso de férias!”.

Às vezes nem dá tempo e a gente acaba mordido ainda nos preparativos, mas, graças a Deus, não foi o caso do presente relato.

Eu, minha esposa, também veterinária, e nossas duas filhas, gostamos muito de natureza e de bichos; então foi de comum acordo a decisão de passarmos aquelas férias num agradável hotel do Pantanal.

Até o dia da viagem, fui sendo, silenciosa e intimamente, consumido pelo medo de levar a tal da mordida, e também pela ansiedade de logo me ver longe da rotina, do monótono trajeto de casa ao trabalho, do dia a dia corrido e dos mesmos rostos dos mesmos clientes.

Preciso dizer que amo a todos os meus clientes, do fundo do meu coração, mas que, além de um coração eu tenho um saco menos tolerante.

Cliente de veterinário, pra quem não sabe, é cliente de veterinário por dois motivos: economizar com o psicólogo; e preservar a saúde animal.

Vou dar um rápido exemplo:

Trabalho em Campinas, uma famosa cidade do interior paulista, importante polo tecnológico e grande centro de negócios, que conta com uma das melhores universidades da América Latina, mas famosa, também, por outras qualidades…

Então, passei anos atendendo ao Tarzan, um mini pinscher, muito bem tratado pelo casal de meia idade, Abílio e Jurandir. Acontece que até as melhores relações às vezes se desgastam e o Jurandir, um gerente de banco muito discreto, bonitão, negro, forte, 98 Kg de puros músculos, foi abandonado pelo Abílio, um professor de química franzino e desinibido.

O Tarzan ficou com o Jurandir.

É impressionante como as pessoas desabafam com o veterinário!

Um mês antes das férias, o Tarzan precisou ser atendido, devido a um leve desarranjo intestinal. Comera alguma porcaria no passeio. Tratado com dieta adequada e um medicamento probiótico, no primeiro retorno, dois dias depois, Tarzan já estava de alta.

“O cocô tá uma belezinha, doutor!”, foram as palavras do Jurandir, que aproveitou o retorno e explanou como fora maravilhosa a vida com o Abílio, como ele sentia falta, como precisava espairecer, como ainda se davam muito bem e como o Tarzan ficara deprimido com a separação.

Como sou um caboclo que ouve as pessoas, o Jurandir achou legal continuar, por segurança, levando o Tarzan para outros retornos, e foram quatro semanas vendo o Tarzan, cheio de saúde, deitadinho debaixo da cadeira e tremendo de medo da injeção, enquanto o Jura contava tudo.

Ao final de cada seção eu recebia um caloroso e comovido abraço com três tapões nas costas, já inclusos. Jurandir se despedia com olhos marejados e na quarta semana o Abílio tinha uma série de defeitos cabeludos, mas quem não tem, não é mesmo?

O exemplo foi só pra ilustrar por que a gente bebe e precisa de férias, mas são incontáveis (literalmente) os particulares que chegam aos ouvidos deste profissional inapto e emocionalmente despreparado para ministrar seções de psicoterapia; e nem CLT a gente tem.

Dessa forma, note que eu estava era muito estressado e estafado do trabalho, até que embarquei no tão aguardado voo pra Cuiabá. De lá, uma van nos trasladou ao hotel, onde finalmente eu coloquei os pés pra cima.

Sou caipira de nascença, por parte de pai e mãe, um cara sossegado, avesso a multidões e “muvucas” e, no final daquela mesma tarde, parti pro meu primeiro “rolê”. Beira de rio, mato, passarinhos cantando, um mais bonito que o outro, e voando livres como todo mundo queria ser mas não sabe. Adorei!

No jantar, tive a convicção de que havíamos feito a escolha correta. Éramos nós e umas três outras famílias, para aquele salão gigantesco. A comida era maravilhosa, gostinho regional, ventrecha, mojica, chipa, caldinho de piranha e furrundu de sobremesa, tudo supervisionado por um chefe de cozinha profissional, de formação exemplar, com CLT e tudo.

Mais tarde descobri que convicção não é prova de nada…

Dormi nos braços da tranquilidade e já acordei um novo homem. Nem precisava mais de férias, mas a gente é ganancioso e insiste.

Na manhã seguinte tomamos um café reforçado e embarcamos na van pra um passeio na rodovia Transpantaneira, junto de outros hóspedes.

O cidadão comum não é capaz de mensurar o sofrimento de um veterinário durante um safari fotográfico ao lado de cidadãos comuns. É nessa hora que se percebe o quanto a educação do povo brasileiro deixou a desejar por tantos séculos. Durante o tempo do passeio, que durou, para minha gastrite, o equivalente a um ano de trabalho, ouvi o quati virar tatu, o gavião virar urubu, o tuiuiú virar garça, a garça virar pomba, o jacaré virar crocodilo, a iguana virar “largato”, a capivara virar castor, a anta virar hipopótamo e o bugio virou “o macaco bauduíno”.

Era fundamental que eu retornasse, rápido, à tranquilidade silenciosa do hotel, inclusive para a segurança de nossos acompanhantes, mas, quando chegamos, vi que a alegria de caipira veterinário pobre dura pouco.

O hotel havia sido invadido por uma manada de ônibus selvagens de excursões. O cantar dos passarinhos fora substituído pela gritaria da criançada e os bichos, antes facilmente visualizados pelos espaços do hotel, deram lugar aos mais diversos tipos humanos.

O que não faltava eram os representantes da terceira idade e fiquei feliz por, ao menos naqueles dias, ter podido estar próximo de tantos aposentados, espécie altamente ameaçada de extinção.

Jantei sem olhar pros lados nem sentir aquele gostinho regional, engoli o furrundu e fui dormir.

Em meus sonhos, sonhei que a realidade era só um sonho e acordei mais leve. Pesado foi sair do quarto e ver aquele estacionamento apinhado de ônibus, mas a punhalada de misericórdia em meu coração, que jogou por água abaixo toda a leveza do meu dia, também veio em forma de ônibus, três deles enfileirados, onde se lia, nas tabuletas, em letras garrafais, a dramática palavra: “CAMPINAS”.

Sim, eram três ônibus lotados de seres humanos provenientes de Campinas!

Deus pode até ser um cara justo, mas antes disso ele é um zoeira sem limites! Pra que fazer isso?

Era impressionante! Numa rápida inspeção pelo salão do café da manhã, tive a impressão de que pelo menos um, dos três ônibus oriundos de Campinas, fora fretado por meus clientes.

Foi um choque encontrar o Jurandir, que decidiu espairecer no mesmo lugar que eu, sem o Tarzan. Foi estranho ver o coronel Afrânio de sunga e sem o Pimpolho, o grande e feroz vira-latas, que já havia mordido toda a equipe da clínica. Foi surreal ver a dona Eulália em trajes de oncinha e sem a Oncinha, a gata asmática.

Tudo foi ganhando aquela cor de pesadelo e pensei que eu deveria ter sido algum tirano genocida ou ator de “pegadinha” numa vida passada.

Mas sou um cara equilibrado e ponderei: estou de férias em busca de mato, o hotel fica no mato, as pessoas ficam no hotel, o hotel é uma ilha onde as pessoas se amontoam temendo aquele hostil e desconhecido mar de mato. Foi simples juntar as peças e me decidir por passar a maior parte do meu tempo à margem daquela sociedade.

Depois do café, conversei com minhas meninas, que entenderam meu suplício e concordaram em curtir os passeios com a galera, as atividades recreativas e toda a estrutura oferecida enquanto eu me refugiaria no matinho, na periferia das dependências do hotel. Deveríamos nos encontrar às refeições e durante o sono.

Parti para minha odisseia selvagem, mas logo vi que o mato ocultava todos os pernilongos do planeta e minha cútis era preciosa demais pra isso, então fiquei ali mesmo, no barranco da prainha, em frente à casinha do seu Dito pescador, encostadinho na cerca do hotel, vendo o rio passar. Foram cinco dias em que migrei daquele ambiente rústico para o conforto do hotel a cada refeição. Fiz amizade com o cãozinho do Dito, a quem chamei de Toquinho, devido ao porte pequenino e índole dócil. Todo dia o presenteava com uma fatia de presunto, roubada do café, sempre atento à possibilidade de que algum veterinário pudesse estar espiando o delito. Também fiz amizade com Clóvis, um tuiuiú com quem dividia o barranco e o silêncio, no turno da tarde.

Tudo ia muito bem, até que chegou a véspera de partirmos e minha esposa e a filha mais velha informaram que haviam reservado uma manhã de relaxamento e beleza no Spa do hotel e que eu deveria ficar com a pequena de 8 anos.

Achei o cúmulo, mas achei melhor que elas não percebessem que achei o cúmulo e, sendo um cara flexível, aceitei, de bom grado e cara feia, aquela incumbência.

Coloquei meu traje de banho, composto, basicamente, do mesmo short que estava usando todos os dias, mas sem a camiseta, e partimos para a piscina, que era o sonho de consumo de minha filhinha naquela manhã. Postei-me numa espreguiçadeira e abri uma cerveja com quem mantive uma relação parecida com a que criei com o Clóvis. Fiquei de olho na criança, que pulava e saia, pulava e saia, pulava e saia da água até eu me cansar. Pensei em dizer “ai, como eu sofro”, mas a equipe de recreação chegou toda animada e eu ainda não conhecia o que era sofrimento.

As equipes de recreação desses hotéis são compostas por jovens, de ambos os sexos, bem articulados, simpáticos, divertidos e atléticos, mas o primeiro critério de seleção é a malvadeza.

O rapaz chegou à beirada da piscina apresentando claros indícios de overdose de Red Bull e, com o microfone na mão, convocou a todos para uma animada aula de hidroginástica.

Campinas foi entrando naquela piscina, mas o rapaz achava pouco e agora provocava, questionando a coragem de quem não entrasse na água. Coronel Afrânio sentiu-se desafiado e juntou-se ao Jura e à dona Eulália.

Olhei para a cerveja, ela olhou pra mim e rimos daqueles idiotas, mas minha doce filhinha segurou minha mão e me puxou pra participar, dizendo que a mãe fazia aquela aula com ela todos os dias e que se eu não fosse, a mãe não iria aprovar.

Sou um cara que não tem medo de mulher, mas como sou fã de hidroginástica, acabei fazendo as vontades da menina.

Passados 2 minutos e 7 segundos do início da aula, minha amada filhinha me abandonou e voltou pra piscininha. Tentei sair à francesa, mas o rapaz gritou pro hotel inteiro que eu estava querendo afinar e eu voltei a fazer os malditos exercícios, fingindo que não era comigo.

O ódio à primeira vista que alimentei por aquele monitor da recreação mostrou-se bem fundamentado, quando ele, sem noção, exigiu de nós uma carga de exercícios praticamente impraticável.

Não vou negar que tive uma pontinha de frustração ao notar que a dona Eulália era bem mais resistente e desenvolta que eu naquelas águas, mas sou um cara muito competitivo e decidi que chegaria ao meu limite mas não perderia pra velha! Só depois entendi que não era uma competição.

Superei as câimbras e todas as vergonhas, mas cheguei quase inteiro ao final daquela aula. Entretanto não era o final. Ainda tinha o relaxamento, quando colocam uma música menos axé, menos funk e menos sertanejo universitário pra relaxar os ouvidos.

Achei legal, mas não. A equipe de recreação tinha requintes de crueldade.

Durante a música relaxante, cada participante deveria circular algumas voltas pela piscina, carregando o seu par no colo. Ri demais quando o coronel estendeu sua mão pra dona Eulália e a puxou para si. Súbito, senti um arrepio na alma e comecei a chamar, desesperado, pela minha filha, para compor o meu par. A danadinha jamais apresentara tais sintomas de surdez e os pares foram se formando e eu fiquei com o Jurandir.

Exausto, carreguei aquele deus de ébano no colo por uma eternidade, depois trocamos. Não vou negar que o Jurandir sabe como carregar um homem nos braços e, naquele momento, cheguei a lutar pra não cochilar, mas acabei tirando uma soneca recostado em seu peito.

“Doutor, acabou… doutoooor, acabooouu…”, foi o que o Jura disse pra me acordar, com o olhar doce e a voz suave.

Desfiz, ligeiro, o forte abraço que, adormecido e inconsciente, aplicava em Jurandir. Coloquei-me de pé pra sair da piscina, mas ele me puxou de volta, deu os três tapões nas costas que faltavam e me libertou sorridente.

Mas Jurandir estava enganado, ainda não tinha acabado.

As equipes de recreação não têm limites! O satânico instrutor disse que a aula havia acabado, quem quisesse podia sair, mas não antes do “bônus”. Pediu pra que uma de suas belas bailarinas selecionasse um dos participantes para dar andamento ao “bônus”. Pensei em simular um infarto, mas tive medo de me afogar e logo relaxei e ri muito quando o coronel foi o selecionado.

Ele deveria sair da piscina, colocar uma peruca, uma sainha de frufru, dublar e dançar “Let It Go” do filme “Frozen” e eu fiquei pra ver o ridículo.

Só depois entendi que era uma competição. Quando o rapaz pediu pra outra bailarina escolher mais um concorrente ao “bônus”, eu mergulhei. Debaixo d’água era um mundo silencioso e calmo, mas quando emergi e a moça já apontava pra mim, notei que a equipe de recreação, fria e calculista, agira premeditadamente.

À borda, vesti minha sainha, coloquei minha peruquinha e apesar de ser um cara muito competitivo, nunca torci tanto pra perder em alguma coisa em toda a minha vida. Mas ganhei. Não posso fazer nada se o coronel tinha um quadril muito travado, um rosto inexpressivo e nenhum ziriguidum.

Recebi, orgulhoso, minha premiação, uma réplica vagabunda, em plástico vagabundo da Elsa, protagonista de Frozen.

Minha filhinha ria e a esposa chegava, com a outra filha, a tempo de fotografar o momento em que eu erguia a “taça” e era ovacionado pela multidão.

Almocei com ódio no coração, xinguei o furrundu e voltei pra passar a última tarde no meu barranco gostoso com o Clóvis. O rio passava tão hipnotizante que, quando dei por mim, já presenciava o belíssimo por de Sol pantaneiro. Nunca havia ficado até tão tarde e teria que fazer o percurso de volta no escuro, mas sou um homem destemido, rude e tarimbado com essas coisas de natureza.

Esperei dar a hora do Clóvis, nos despedimos e começava a caminhar, na escuridão da estradinha de chão, quando reconheci os latidos felizes do querido Toquinho, mas acho que, talvez por não ter ganho seu presunto naquele dia ou por não me haver reconhecido no escuro, o Toquinho partiu enfurecido pra cima de mim.

Sou um cara bem condicionado fisicamente e muito experiente com esse negócio de cachorro e senti que o momento era de correr, mas o rapaz da recreação havia exigido demais do meu físico naquele dia.

Minha vontade era de Usain Bolt, mas minha velocidade era tão lenta que nem merecia ser chamada de velocidade e o Toquinho, fácil, fácil, desferiu uma dentada de cachorro grande em minha panturrilha.

Cabra macho que sou, não ligo pra dor e segui caminhando, com o Toquinho preso pela boca à minha perna esquerda nos primeiros passos; depois ele teve que voltar e eu continuei sozinho.

Tentei disfarçar com um band aid infantil de minha filha, mas o ferimento era extenso e profundo e minha perna sangrou por três dias.

Sou um cara que não gosta de mentir, mas precisei explicar, pra quem se espantava com a ferida, como caíra e espetara a perna numa moita de espinhos ao despistar uma onça braba.

Deixei o Pantanal em ritmo de reforma trabalhista, com a convicção de que as férias são imposições supérfluas e perigosas. Pra quê, férias?

Voltei a trabalhar, ainda mancando. Tarzan, Pimpolho e Oncinha passam bem, mas o Jurandir, o Coronel Afrânio e a dona Eulália adquiriram o feio hábito de rir enquanto prescrevo minhas receitas.

Sou um cara pra frente e não liga pra maledicência desse povo. Sem ironia, amo minha profissão e a desempenho, hoje, com a leveza no espírito de quem sabe que não será mordido novamente tão cedo.