O movimento sindical brasileiro que historicamente manteve um papel central não só nas lutas por garantias e avanços nos direitos trabalhistas, mas também na defesa da democracia e de direitos sociais do conjunto da sociedade, vive um momento de esvaziamento que aponta para a urgência de novos modelos de organização e ação.
Parte desse quadro de desmobilização é resultado dos ataques permanentes desfechados contra o movimento sindical por forças econômicas e políticas que moldaram, nas últimas décadas, as relações neoliberais de trabalho, situação agravada no Brasil pelas políticas de desmonte de direitos trabalhistas e sociais levadas a termo pelo atual governo. Mas, além disso, questões estruturais, formas de ação não atualizadas e defasagens nas agendas de mobilização das organizações sindicais também são responsáveis pelo atual esvaziamento.
Essas foram algumas das reflexões apresentadas, nesta quinta-feira, 18 de agosto, pela professora Andréia Galvão (IFCH) e pelo professor José Dari Krein (IE) no segundo evento do ciclo “Encontros pela Democracia”, e que teve como tema “Sindicalismo na resistência democrática”. Os Encontros são promovidos pela ADunicamp para discutir e debater temas ligados às eleições de outubro.
A professora Andréia, pesquisadora do sindicalismo e com vários livros e artigos publicados sobre o tema, relatou a importância dos sindicatos na história da defesa dos direitos e da democracia na história recente do Brasil, desde quando as greves do final dos anos 1970 no ABC tiveram um papel decisivo na derrubada da ditadura militar.
Mas, principalmente a partir de meados dos anos 1990, o movimento sindical perdeu paulatinamente a capacidade de protagonizar as grandes mobilizações políticas e de interesse coletivo no país. “Nós vimos isso, inclusive, ao longo dos governos do PT, especialmente no momento da crise política que levou ao impeachment de Dilma Roussef. Foram várias as manifestações convocadas, mas o que vimos foi o protagonismo de outros movimentos sociais, como as frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, e não dos sindicatos”, lembrou ela.
Os sindicatos, segundo a professora, continuam mantendo um papel essencial no plano econômico corporativo, uma vez que ainda mantém forte capacidade grevista e “são bastante atuantes nos processos de negociação coletiva, conquistando acordos e reajustes importantes”.
FORA DAS RUAS
“Mas, nos últimos anos, os sindicatos têm mostrado cada vez mais dificuldades em levar gente para as ruas. Vimos greves do ponto de vista corporativo, por salários, contra direitos lesados. Mas quando a gente vê a convocação de grandes manifestações em defesa de direitos ou da ampliação de direitos universais é cada vez mais difícil ver essa capacidade de mobilização”, avaliou ela.
As grandes mobilizações de rua, mostrou a professora, têm sido protagonizadas por outros movimentos como os de luta pela terra, por moradia e das mulheres, entre outros. “Embora compostos por trabalhadores e trabalhadoras, são movimentos que não têm o vínculo com o trabalho como o seu principal movimento de articulação”, avaliou.
A professora lembrou que, na pandemia da Covid-19, ocorreu um movimento sindical bastante atuante, focado nas condições de trabalho e perdas, entre outras questões trabalhistas. “Muitos sindicatos fizeram acordos importantes, ações importantes, inclusive de solidariedade, como a doação de alimentos e apoios. Mas o protagonismo nas questões mais amplas foi, entre outros, do movimento negro que, por exemplo, levou a bandeira do racismo associado ao antifascismo. Que colocou em pauta o slogan ‘Vidas Negras Importam’. Os sindicatos tiveram pouca participação nessas manifestações”.
E, mesmo que as centrais sindicais tenham tido um papel importante na organização de grandes eventos recentes, o que “se observa é a baixa participação das bases sindicais”. “São movimentos compostos principalmente por dirigentes, por lideranças e muito pouco pelas bases. Então, as manifestações acabam esvaziadas”, apontou.
E é exatamente nesse distanciamento entre as lideranças e as bases que, segundo a professora, reside alguns dos grandes desafios que o movimento sindical tem que enfrentar hoje no Brasil. Na avaliação dela, uma das causas desse distanciamento é a ocorrência de “uma divisão de tarefas” entre centrais sindicais e sindicatos.
AFASTAMENTO
“As centrais é que se encarregariam das pautas mais políticas e os sindicatos da defesa de ações mais econômicas, da categoria. O que acontece é que as pautas das centrais chegam muito pouco aos sindicatos filiados. Muitas vezes o sindicato conhece essa pauta política, mas não leva para suas bases e também acaba se afastando dessas pautas”. Aliado a isso, a professora vê o formato das mobilizações das centrais, “burocratizado, engessado e muito formal”, também como uma das causas do afastamento das bases.
Por fim, todo esse quadro aliado às características cada vez mais heterogêneas dos contratos de trabalho Brasil, com a precarização e informalidade crescentes, exigem que o movimento sindical rearticule profundamente os seus modelos de organização e atuação.
E o primeiro desafio, na avaliação de Andréia, é que os sindicatos ampliem a sua base social, sejam capazes de organizar setores hoje desorganizados, como trabalhadores informais, jovens, mulheres, migrantes e minorias étnicas. E que também se organizem regionalmente e incorporem formas de atuação que não estejam restritas apenas ao campo econômico e o local de trabalho.
“Não se trata de substituir questão de classe por questões identitárias, mas de articular diferentes formas de luta contra situações de opressão ou dominação”, defendeu.
SINDICATOS ESSENCIAIS
Para o professor Dari, o fortalecimento do movimento sindical é essencial neste momento da vida brasileira, tanto pela urgência da defesa da democracia, como principalmente pelas profundas mudanças nas relações de trabalho, que exigirão sindicatos capazes de defender não apenas direitos específicos de categorias, mas direitos trabalhistas e sociais universais.
“Não existe democracia sem a contraposição daquilo que é dominante na sociedade, não existe democracia sem sindicatos, sem direito de greve, sem direito de mobilização. Esse é o ponto de partida”, afirmou.
Estudo recente, realizado por Dari em parceria com a professora Andréia, mostrou diferenças fundamentais em locais onde existem sindicatos atuantes e onde eles não estão presentes. “E isso não só na questão de direitos trabalhistas, mas também na realização de politicas públicas mais favoráveis ao conjunto da população, na contraposição do desmonte de direitos e assim por diante”, relatou.
Para Dari, o sindicalismo brasileiro talvez “nunca tenha vivido” momentos tão difíceis como o que vive nos dias atuais. “Difícil porque há sim uma intenção de excluir os sindicatos da vida democrática do país. A reforma trabalhista reduziu o poder dos sindicatos, criou elementos de legislação que fragilizaram ainda mais o movimento sindical. Tirou o poder dos sindicatos nas homologações, reduziu o alcance dos acordos coletivos, e tenta sufocar financeiramente os sindicatos por vários meios”, analisou o professor.
E isso ocorre, neste momento, diante de “um governo autoritário que não fez e não faz” nenhum diálogo com os atores sociais. “Um governo que só fez um processo de desqualificação dos movimentos sociais e pretende excluir eles da cena social. Então esse é de fato um perigo que estamos enfrentando”.
A ENCRUZILHADA
Mas, para o professor Dari, o movimento sindical vive hoje no Brasil também uma encruzilhada mais ampla. Além dos ataques, das questões conjunturais e políticas, ele terá que enfrentar as questões estruturais ligadas à reorganização do mundo do trabalho.
O sindicalismo quando se organizou no mundo, no século 19, se estruturou principalmente em torno dos trabalhadores qualificados. Já no século 20, com a reorganização do mundo do trabalho durante a segunda revolução industrial, passaram a se organizar por setores de atividade, como metalúrgicos, químicos, eletricitários, professores e assim por diante.
Mas o desmonte das relações trabalhistas tradicionais, promovido pelas políticas econômicas neoliberais nas últimas décadas, e agravadas no Brasil pelos ataques recentes aos direitos trabalhistas e sociais, provocaram uma profunda heterogeneidade no mundo trabalhista, com a ampliação do trabalho informal, do trabalho precário e a chamada uberização.
Diante dessas mudanças, o movimento sindical já não é capaz de representar esse conjunto heterogêneo das classes trabalhadoras. “Mesmo em conquistas importantes, vemos a dificuldade de ampliação delas. Temos direitos que são conquistados por algumas categorias, mas que outras com menor poder de organização não conseguem, criando uma segmentação cada vez mais forte entre as categorias”, afirmou.
Assim, para Dari, um dos grandes desafios do movimento sindical é ampliar suas formas de organização para ser capaz de representar as classes trabalhadores heterogêneas da atualidade. E isso exige mudanças profundas de organização e abordagem das questões do trabalho. “Como, por exemplo, juntar as nossas lutas de professores às lutas dos entregadores ou de outras categorias? Como conquistar os corações e as mentes dessa classe trabalhadora tão heterogênea?”, perguntou ele.
Para Dari, a resposta a essas questões só é possível com a criação de uma agenda ampla, de caráter universal, capaz de unificar as lutas e reivindicações do mundo do trabalho. “Uma agenda capaz de extrapolar os limites das categorias e tratar de direitos fundamentais de classe”. E isso, neste momento no Brasil, passa necessariamente pela garantia ao emprego, pela luta por políticas econômicas que garantam emprego, que sejam capazes também de incorporar os jovens ao mundo do trabalho. “Enfim, construir uma agenda com capacidade de diálogo entre as categorias, com caráter mais geral universal”.
E, para o professor, embora sejam desafios difíceis, se tornam cada mais possíveis no mundo atual, quando após mais de 40 anos de “desconstrução neoliberal”, os modelos de organização de trabalho e social apregoados pelo neoliberalismo começam a perder legitimidade diante da sociedade. “Vemos isso crescer, aos poucos, em países da Europa e nos EUA, entre outros”, apontou o professor. (Da ADunicamp)
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