.Por Rafael Martarello.

“Solteira sim, sozinha nunca, objetificada sempre” (Eliane Gamas Fernandes)

A Solidão da Mulher Negra é uma formulação conceitual proveniente do fenômeno de solidão de mulheres negras manifestada em suas experiências afetivas, sexuais, familiares (abandono parental) e de solidão étnica em determinados ambientes (laboral, escolar, midiático).

As bases para o entendimento acerca deste fenômeno permeiam a hierarquização de indivíduos pela sua etnia/cor (racismo), e a desigualdade e discriminação que o sexo feminino (machismo). Assim, tradicionalmente se concebe que este fenômeno é o racismo intersectado pelo machismo.

(imagens arquivo pessoal e divulgação: montagem rafael martarello)

No meu ponto de vista, não embutir como traço fundante a dominação colonial e seu prosseguimento por meio do controle monopolista pelos países imperialistas é destituir o fenômeno de seu aspecto histórico, espacial e econômico. Logo é também não realizar um combate efetivo contra os grupos que estrategicamente disseminam essas ideologias, e contra quem lucra e lucrou com esse sistema discriminatório.

O rap sobre a solidão da mulher negra

A música da rapper brasileira Mc Soffia intitulada Meu lugar de fala trata especificadamente do menosprezo/preterimento afetivo-conjugal-sexual que mulheres negras sofrem. O foco da canção é o menosprezo feito especificamente por homens negros, seus pares étnicos. Dessa forma, o rap já se inicia com a cobrança “faço questão de questionar no texto, quando que os pretos vai amar as pretas?”.

A bibliografia científica aponta que há mais casais inter-raciais formados por homens negros com mulheres brancas. A demografia também aponta que o comportamento seletivo em relação aos cônjuges: homens pretos escolhem mulheres pretas em menor percentual do que estas escolhem homens pretos.

Esse cenário deve ser visto dentro de uma sociedade com resquícios de teorias científicas racistas, de hiperssexualizaçao de pessoas negras, de escala valorativa de cor, de desvalorização da população negra, de desejo pela brancura e pela imposição do embranquecimento.

Dessa maneira, as mulheres negras são vistas como objeto de obtenção de prazer, para depois serem descartadas, ao mesmo tempo em que negros preferem parceiras brancas para relacionamentos estáveis. Fazendo valer a órbita do dito popular “branca para casar, mulata para fornicar e negra para trabalhar” de origem escravocrata-colonizadora profundamente problematizado por Lélia Gonzalez.

Uma das críticas específica mais interessantes trabalhadas pela música é sobre os famosos. A rapper diz “eu no show do irmão mais esperado na pista, como me convém, e os camarotes todos lotados procurando as pretas, não tem”. De fato, essa é uma crítica que permeia a black music. Também é possível perceber esse fenômeno nos camarins e nas laterais dos palcos dos artistas.

Nesse sentido, artistas tematizam a valorização da cultura afro-brasileira e africana, rasgam elogios em suas músicas para a mulher negra, mas denunciando que é para ganhar publicidade, a cantora coloca o verso mais potente da música “os cara fala de preta na música, pode falar que dá engajamento, nós é as preta foda do clipe, mas não é a que eles pede em casamento

A cantora faz as críticas munindo mulheres de argumentos sob a situação: “ele fala ‘as preta não me quer’”; “os cara vem “o amor não tem raça” na ponta da língua pra nos responder”; “que eu só quero os preto estiloso”. A cantora chama essas colocações de manipulação e migué, que na realidade, mulheres negras podem ter receio de chegar em homens por serem socialmente menosprezadas, que elas têm maior dificuldade em encontrar parceiros para relacionamentos longos, e que são menos amadas e cuidadas. A rapper deixa claro que isso também afeta “uma preta foda milionária”, até porque o dinheiro alivia, mas não extingue o racismo e o machismo. Poderia aqui incluir, o medo das monetariamente bem-sucedidas de alguém se encostar nelas.

Fechamento

Mulheres negras, 53 milhões de brasileiras, são as que mais sofrem violência doméstica, feminicídio e tráfico de mulheres. Também é o maior grupo abaixo da linha da pobreza e que sofre restrição de acesso a direitos. Ao mesmo tempo, são chefes de família e recebem metade do salário recebido por brancas.

O fenômeno de solidão da mulher negra é mais uma das faces do racismo. Nesta particular face é exibido em desfavor de mulheres negras o menosprezo afetivo- conjugal, o abandono familiar, conjugal (em situação de cárcere), a falta de cuidado com seus corpos, a supressão de sua humanidade, assim como a solidão em determinados ambientes.

Entretanto, não se deve atribuir culpa individualizada pela escolha, a rapper também tem este entendimento ao versar “Eu não quero atacar ninguém, mas sim aumentar a autoestima das pretas”. É uma colocação consciente de que há mecanismos que empurram para que mulheres negras sejam preteridas. Em geral, essa busca com bases racistas é uma busca por prestígio, existência e aceitação social ao figurar ou absorver a branquitude, desta maneira é necessário fazer um trabalho de denúncia, conscientização e de valorização étnica. Aliás, é preciso ainda buscar a emancipação econômica para o grupo e enterrar o capitalismo como modo de produção hegemônico.

Finalizo que este texto, por comentar sobre a abordagem da música, focou na manifestação do fenômeno por homens negros, mas claro, se fossemos fazer uma crítica ampliada o desprezo por corpos negros é criação da elite branca e rotineiramente praticado por pessoas brancas.

Confira a música