.Por Christian Ribeiro.

Campinas, a última cidade em reconhecer a promulgação da chamada “Lei Áurea” que dava fim formal ao regime escravagista no país. Localidade que mantem viva a memória e o legado de Barão Geraldo de Resende (1847-1907), monarquista e um dos maiores senhores de escravizados do Brasil, em detrimento do legado e trajetória de seu contemporâneo, o republicano radical e líder abolicionista negro Francisco Glicério (1846-1916). Que tudo faz para esconder suas histórias de revoltas e resistências negras, das rebeliões escravas que tacavam fogo nas fazendas de engenho e café, quando não davam fim – literalmente – a vida de seus sinhôs e sinhás… A mesma Campinas que por sua crueldade em relação aos cativos, através da aplicação de uma série de torturas e flagelos consideradas repugnantes até mesmo para os padrões vigentes a época, era conhecida como a “Bastilha Negra”, sendo a simples menção de seu nome usada por todo país, como forma de ameaçar e aterrorizar aos negros considerados “rebeldes” ou “insolentes” (COM CIÊNCIA, 2003)!

(Imagem – reprodução/divulgação – ART)

Uma cidade de passado escravagista, senhorial e racista, que manteve tais características vividas e presentes ao longo de sua história. Não por acaso tendo em seus processos de reformulação (modernização) urbanística do final do século XIX e meados dos séculos XX, serem pautados e desenvolvidos por um gerenciamento de viés e recorte discriminatório de viés racial e social, sendo possível – ainda hoje – você realizar uma análise da divisão racial da cidade através das ocupações urbanas-geográficas que cada grupo étnico-racial habita na pólis. Situação de tensão racial constante por toda sua trajetória histórica e social, com disputas e conflitos geradas pelos inúmeros processos de resistências afro-brasileiras, como por exemplo, em não aceitar ou se deixar mediar por estes padrões hegemônicos de dominação e opressão.

Realidade de conflitos e periculosidade ante aos poderes estabelecidos que sempre fez as elites locais utilizarem as forças públicas de segurança – em suas várias denominações e estruturas ao longo dos séculos – enquanto instrumentos de controle e violência direta contra os “outros”, aos desumanizados, aos “inferiores”, aqueles que aos olhos dos socialmente dominantes, devem ser sempre sistematizados e vigiados para manutenção e reprodução da ordem social vigente.

Não por acaso, tendo essa cidade por possuir uma série de ações policiais de cunho racista ao longo do tempo, desde perseguição sistêmica as manifestações culturais de origem afro como os batuques, o jongo, o samba, o rap e, mais recentemente, ao funk. Como também aos jogos de futebol envolvendo preferencialmente aos torcedores da Associação Atlética Ponte Preta, em sua secular representação de cidadania e rebeldia negra na cidade. Ou o exercício cotidiano de ações extremadas contra cidadãos negros, pelo simples fato de serem “naturalmente suspeitos”. O que nos revela a ocorrência de uma cultura de excessos, intolerâncias e preconceitos que acaba por naturalizar o inaceitável, que acaba por legitimar o absurdo, que são as práticas racistas que nos formam e caracterizam culturalmente e estruturalmente enquanto uma sociedade racista. Campinas, portanto, não foge dessa realidade nacional, pelo contrário, parece ter um prazer quase mórbido – ou seria mesmo patológico? – em abraçar e se embrenhar nos tentáculos da nossa besta fera nacional civilizatória que é o racismo que não existe, mas que marca e mata, exatamente á aqueles que diz não perseguir ou discriminar.

Essa hipocrisia assassina campinense, de sanha voraz e nada contida, ganhou um novo capítulo quando em 04/06/22, Thalles de Oliveira Silva, um jovem motoboy, negro e urbano periférico, em meio a uma roda de entregadores de aplicativos a espera de novos pedidos, as margens da Rodovia Dom Pedro I, foram abordados por uma operação policial (TEIXEIRA & INSELSPERGER, 06/06/2022). Uma situação de verificação que apesar de desconfortável e constrangedora – pois ninguém gosta de ser revistado – é uma situação constitucionalmente assegurada, inerente ao nosso sistema de segurança pública. Que exatamente por isso, deve ser executada sempre em acordo ao que rege nossa constituição e aos seus protocolos, assim visando a segurança de todos os envolvidos e a dignidade do cidadão comum. Ou seja, há regras constitucionais e institucionais que regem como se deve dar a interação direta entre um representante oficial do aparelho estatal de repressão com a população em geral. Sendo que em nenhuma delas esta prevista ou autorizada a manifestação de uma série de ofensas ou agressões, como houve em relação ao jovem motoboy, por ele ter tentado evadir do local por estar sem a documentação devida de sua moto. Nesse sentido, não se está aqui querendo isentar Thalles de seu erro duplo, de estar sem documentação veicular e tentar fugir do local, mas nada – enfatizo NADA – justifica a atitude desmedida perpetrada pelo representante legal, que estava ali enquanto um agente de segurança pública e não enquanto juiz e executor. Sendo que práticas de violência física são exemplos de torturas que legalmente não são reconhecidas e muito menos permitidas – ao menos legalmente – em solo nacional. E os que culpabilizam a vítima por tudo que aconteceu, deve-se sempre ponderar tais fatos e destacar que tal situação não ocorreria se fosse em relação a uma roda de motos nas zonas nobres da cidade, em que o perfil racial e social dos envolvidos fossem outros. Ou alguém, sinceramente, dúvida disso?

Tal situação de violência e abuso de poder, de reprodução de nosso racismo estrutural e de sua discriminação social inerente, ganhou aspecto mais absurdo e repugnante com o tiro que se fez disparar, acidentalmente ou não, da arma policial – quando o seu portador estava atingindo Thalles entre tapas e coronhadas – com a bala atingindo-o diretamente a boca. O que levou a todos os presentes a um estado de torpor, de incredibilidade, diante do que ali havia ocorrido. Circunstância aterradora que só se fez conhecer pela divulgação direta dos fatos, pelas mídias sociais que os motoboys estavam gravando em seus celulares, diante de todo processo, de toda sequência de violência que já se encontrava em andamento. Em que mais um jovem negro foi alvejado como animal – por dias internado e agora em recuperação domiciliar, mas traumatizado, sem saber se conseguirá voltar a ter uma vida normal – por sua condição humana de ser uma pessoa negra, descendente de africanos, nascida em diáspora, em um país que diz ser o racismo inexistente ou, no máximo mimimi, numa sociedade historicamente estruturada e desenvolvida a partir do processo sistêmico de genocídio imposto em relação a sua população negra. E é a isso que esse caso nos fala e demonstra nitidamente, é a esta maldita realidade que tal situação nos situa e nos coloca adiante. Querer negar, ou se manter indiferente a isso, é no mínimo ser conivente com essa tragédia de dor e morte que parece ser eterna nas terras brasilis, e que em Campinas tem um de seus principais palcos.

Um tiro disparado na boca, um balaço de desprezo e ódio. Esculpido em aço frio de racismo e preconceito, atingindo em cheio o seu alvo, como que simbolicamente silenciando toda voz, toda e qualquer manifestação que possa contradizer sua lógica perversa de abusos e atrocidades.

Não aguentamos mais temer pelos nossos… Não aguentamos mais chorar pelos nossos… Não aguentamos mais…

As lutas e resistências existem e persistem, não se omitem ou se prostam ante aos que vivem para nos matar. Ante aqueles que se alimentam e fortalecem com a nossa dor e desespero. Os tensionamentos sociais e práxis políticas pelo fim dessas inequidades se dão através de inúmeras formas e manifestações. E por mais que tais renovem nosso ímpeto em continuar na persistência em se buscar erguer novos tempos e sociabilidades, mais justos e humanos em suas convivências, no fundo sempre acabamos assolados pelo amargor da certeza de que no país em que um jovem negro morre, violentamente, a cada 23 minutos, representando 77% do total das vítimas de homicídio de nossa sociedade (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2021), a realidade que nos assola e flagela, é a mais pura das desesperanças.

Uma realidade que acaba por gerar uma sensação de revolta, mas também de triste amargor… Muito menos pela indignação do que aconteceu. Mas, muito mais, pela certeza de que em instantes, a qualquer momento, talvez nesse exato momento, mais um jovem negro esteja sendo vitimado pelo – insistimos – simples fato de ser um afrodescendente em míticas e falaciosas terras de democracia racial. De que apesar das promessas das autoridades referente a realização de investigação devida e idônea sobre o caso e das reações indignadas que o mesmo gerou pelas mídias sociais, fica a sensação constante, quase mórbida, de que nada ao seu final mudará, que tudo continuará como está, como sempre foi…

Como se só pudéssemos, só nos restasse perguntar-esperar quem será o próximo jovem negro a ser tombado pelo racismo nosso de cada dia?

Referências:

ATLAS DA VIOLÊNCIA – 2021.In: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes, acessado em 06/06/2021.

COM CIÊNCIA. Livro inédito sobre escravidão deve ser lançado no próximo ano. Brasil negro. (10/11/2003). In: https://comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/negros/10.shtml, acessado em 06/06/2022.

TEIXEIRA, Patrícia & INSELSPERGER. PM concentra investigação sobre tiro na boca de motoboy e apura crime militar; categoria faz protesto em Campinas.(06/06/2022) In: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2022/06/06/06/pm-concentra-investiagacao-sobre-tiro-na-boca-de-motoboy-e-apura-crime-militar-categoria-faz-motociata-em-campinas.ghtml, acessado em 06/06/2022.

Christian Ribeiro mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.