A jovem Susi Korihana thëri em um igarapé, filme infravermelho. Catrimani, Roraima, 1972-1974. (Foto: Claudia Andujar)

Em São Paulo – Até o dia 7 de abril de 2019 poderá ser vista no IMS (Instituto Moreira Salles) Paulista a mostra “Claudia Andujar – A luta Yanomami”.

A retrospectiva da obra de Claudia Andujar dedicada aos Yanomami, povo indígena ameaçado de extinção, ocupa dois andares do IMS Paulista com aproximadamente 300 imagens e uma instalação da fotógrafa e ativista, além de livros e documentos sobre a trajetória da tribo em busca de sobrevivência.

O conjunto traça um amplo panorama do longo trabalho de Andujar junto aos Yanomami, retomando aspectos pouco conhecidos da luta da fotógrafa pela demarcação de terras indígenas, militância que a levou a unir sua arte à política.

A seleção do material exposto é resultado da pesquisa de muitos anos realizada pelo curador Thyago Nogueira, coordenador da área de fotografia contemporânea do IMS, no acervo de mais de 40 mil imagens da artista.

Jovem Wakatha u thëri, vítima de sarampo, é tratado por xamãs e paramédicos da missão católica do Catrimani, Roraima, 1976. (Foto: Claudia Andujar)

Claudia Andujar (1931) cresceu na Europa, na região da Transilvânia, de onde escapou para a Suíça durante a Segunda Guerra Mundial. Sua família paterna, de origem judaica, foi morta nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau. Emigrou da Suíça para os Estados Unidos e depois, em 1955, para o Brasil. Aqui, começou a fotografar e construiu uma carreira bem-sucedida no jornalismo. Em 1971, aos 40 anos, registrou os Yanomami pela primeira vez para a revista Realidade. O encontro mudou a vida da fotógrafa, que voltou numerosas vezes ao território para documentar aquela cultura ainda relativamente isolada.

O primeiro andar do IMS Paulista apresenta a fase inicial da carreira de Andujar, com fotografias produzidas entre 1971 e 1977 na região do Catrimani, em Roraima. São registros das atividades diárias na floresta e na maloca, dos rituais xamânicos, dos indivíduos. O mergulho entre os Yanomami foi possível graças a uma bolsa da Fundação John Simon Guggenheim. Segundo o curador Thyago Nogueira, “os anos de dedicação profunda fizeram com que Andujar transformasse o interesse jornalístico e antropológico em uma interpretação radicalmente original da cultura, feita com imagens”.

Ainda nessa parte da exposição, é possível acompanhar as primeiras viagens de Andujar ao território Yanomami, sua aproximação com a nova cultura e o amadurecimento do trabalho, conforme passava mais tempo na floresta. Com a ajuda do missionário Carlo Zacquini, que vivia há muito entre os Yanomami, ela pode aprofundar-se na rotina, acompanhar viagens, festas e expedições de caça: “É claro que cortar um animal é algo sangrento, mas não sei, acho que já me acostumei com isso, não me choca mais e nem acho estranho. É o jeito que as coisas são. Para falar a verdade, estou há tanto tempo com os índios que não acho mais nada estranho. Sempre olho e tento entender. As coisas são do jeito que são”, descreve ela em um áudio gravado na época em plena mata e disponível na exposição.

Um dos conjuntos mais impactantes do período é o registro das festas reahu, as complexas cerimônias funerárias e de aliança intercomunitária, marcadas por ritos específicos e pela fartura de comida. Para produzir as fotos, tentando relacionar o que via com a dimensão mística presente nos rituais, Andujar desenvolveu experimentos fotográficos em São Paulo, com flashes, lamparinas e filmes infravermelhos, que depois aplicou na mata. As imagens traduzem o universo espiritual, dando forma concreta a um mundo abstrato. “Ao interpretar com imagens, e não palavras, como faziam a antropologia e o jornalismo, Andujar também oferecia uma nova camada de significados”, afirma Nogueira.

Entre 1974 e 1976, Andujar ainda produziu centenas de retratos dos Yanomami que conheceu, formando um conjunto de rostos de crianças, jovens e adultos emergindo de um fundo negro. O conjunto, presente na mostra em 48 retratos, revela fisionomias e elementos culturais, como a tanga feminina ou o cordão cintural dos rapazes. As fotos foram feitas utilizando apenas a luz natural que penetrava nas malocas, e cada sessão consumiu um filme inteiro, medida necessária para criar intimidade.

Depois de algum tempo, a aproximação com os Yanomami também levou a fotógrafa a propor que eles próprios representassem seu universo. Em 1974, com a ajuda de Zacquini, levou ao Catrimani papéis e canetas hidrográficas e deu início a um projeto de desenho, ampliado dois anos depois com uma bolsa da Fapesp. Cerca de 30 desenhos originais de mitos e cenas do cotidiano Yanomami serão apresentados na mostra. Em 1977, Andujar foi expulsa e impedida de voltar à área indígena pela Funai.

O segundo andar da exposição concentra-se no contato radical da civilização branca com a indígena, e na história de luta empreendida pela fotógrafa para proteger o povo que adotara como família. Entre os anos 1970 e 1980, o garimpo e os planos de desenvolvimento da Amazônia durante o governo militar introduziram um rastro de doenças, violência e poluição que aniquilou comunidades indígenas inteiras, despreparadas para enfrentá-lo.

Diante da tragédia, Andujar cria com o missionário Carlo Zacquini e o antropólogo Bruce Albert a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY) em 1978. Durante 13 anos a CCPY travou uma batalha incansável pela demarcação contínua da terra indígena, vista como a única maneira de garantir a sobrevivência dos Yanomami e de seu ecossistema. Contra forças econômicas poderosas, finalmente, em 1992, a terra foi homologada às vésperas da conferência-geral da ONU sobre o clima (Rio-92), tornando-se um dos mais bem-sucedidos exemplos de luta política.

Durante a campanha, Andujar mobilizou organizações nacionais e estrangeiras, levantou fundos, escreveu manifestos e correu o mundo para denunciar o descalabro. Sua fotografia passou a instrumentalizar a mobilização política. Também desenvolveu programas de saúde e educação, com os quais percorreu toda a extensão da terra indígena.

Em uma de suas séries mais conhecidas, fotografou Yanomami de várias regiões para identificar os cadastros de saúde e vacinação. As fotos numeradas se transformaram na série Marcados, exibidas na 27ª Bienal de Arte de São Paulo e no exterior. A retrospectiva no IMS Paulista apresenta novos conjuntos dessa série, com uma contextualização sobre os lugares onde os retratos foram feitos.

Maloca próxima à missão católica do rio Catrimani, Roraima, filme infravermelho, 1976. (Foto: Claudia Andujar)

Esses retratos numerados evocam momentos sombrios da história do século XX, como o Holocausto, associado à trajetória da própria artista. “Criamos uma nova identidade para eles, sem dúvida, um sistema alheio à sua cultura. São as circunstâncias desse trabalho que pretendo mostrar por meio destas imagens feitas na época. Não se trata de justificar a marca colocada em seu peito, mas de explicitar que ela se refere a um terreno sensível, ambíguo, que pode suscitar constrangimento e dor”, afirma a fotógrafa.

Outro destaque da mostra é uma nova versão da instalação Genocídio do Yanomami: morte do Brasil (1989/ 2018), manifesto audiovisual em 16 telas. A obra foi exibida pela primeira vez em 1989 como reação aos decretos assinados pelo então presidente da República, José Sarney, que demarcavam a terra indígena em 19 “ilhas” isoladas. Feita com fotos do arquivo de Andujar, refotografadas com luzes e filtros, a projeção conduz o espectador por um mundo em harmonia, paulatinamente destruído pelo progresso da civilização branca. A compositora Marlui Miranda criou a trilha sonora que combina música instrumental americana, japonesa e cantos Yanomami. A instalação apresenta uma retrospectiva do trabalho de Andujar, incluindo fotos tiradas entre 1972 e 1984.

A mostra no IMS Paulista reúne também livros, documentos e um mapa detalhado do território Yanomami no Brasil. A exposição retoma a trajetória da ativista e sua luta constante pela proteção de povos que, ainda hoje, permanecem em risco. Uma das maiores artistas vivas, Andujar rompeu os limites entre arte e política para não abrir mão de seu compromisso ético com a vida. “Estou ligada ao índio, à terra, à luta primária. Tudo isso me comove profundamente. Tudo parece essencial. Talvez sempre procurei a resposta à razão da vida nessa essencialidade. E fui levada para lá, na mata amazônica, por isso. Foi instintivo. À procura de me encontrar”, afirma a artista.

Mais informações no SITE do IMS Paulista. (Carta Campinas com informações de divulgação)