O sal da água: a crônica de uma farsa

.Por Sandro Ari Andrade de Miranda.

Meu Deus, meu Deus / Setembro passou / Outubro e novembro Já tamo em dezembro /Meus Deus, que é de nós[…]” (Luiz Gonzaga e Patativa do Assaré, A Triste Partida)

Não é necessário viajar muito no tempo, basta buscar as manchetes de jornais e programas de televisão de 20 anos atrás, para encontrarmos reportagens narrando a tragédia da seca do Nordeste.

(foto: ministerio do meio ambiente divulgação)

Durante quase meio milênio a indústria da seca e do desrespeito sistemático da dignidade da população do interior da região rendeu votos, poder e dinheiro, muito dinheiro, para as oligarquias regionais. Os “donos” da água simplesmente cobravam pedágio para oferecer água barrenta e semi-poluída a um povo sedento de tudo, especialmente de respeito.

A grande mudança de perspectiva na distribuição de água veio por meio da ação coordenada entre políticas públicas executadas pelo Governo Federal, instituições de pesquisa e sociedade civil organizada. A resposta foi mais adequada foi sempre a simplicidade e o aproveitamento de tecnologias criadas há séculos pela humanidade ou pela inovação recente da ciência. Falo de duas ações baratas implantadas no país, o Programa de Cisternas e o Programa Água Doce, ambos iniciados em 2004, no primeiro mandato do Presidente Lula (PT).

As cisternas são reservatórios para armazenamento de água, utilizados nos desertos Africanos e da Península Arábica ainda na época das pirâmides que, surpreendentemente, foram ignoradas pelos governos nacionais por mais de 500 anos. Hoje representa reconhecimento do país, já tendo beneficiado mais de 1 milhão de famílias, rendendo a medalha de prata na Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação.

O Programa Água Doce, por sua vez, é resultado da pesquisa desenvolvidas por universidades brasileiras e pela EMBRAPA. A ação executada pelo Ministério do Meio Ambiente em articulação com a sociedade civil é realizada “in locu”, é barata e já construiu cerca de 1.000 unidades de tratamento, em 170 Municípios, de 9 estados e ilhas oceânicas.

Assim como as “cisternas”, também possui reconhecimento, tendo sido premiado pela Associação Internacional de Dessalinização (IDA), ainda em 2018. Além disso, a pesquisadora Nadia Ayad, egressa do Instituto Militar de Engenharia – IME, foi premiada em 2016 no Global Graphene Challenge Competition, pela utilização de grafeno, derivado de carbono, para a dessalinização de água, o que também represente barateamento no processo de tratamento. Cobiçado por vários países, o projeto é ignorado pelo governo brasileiro.

Portanto, sem considerar a Transposição do Rio São Francisco, que está em fase de finalização, por que o Brasil vai importar uma tecnologia cara e desnecessária de Israel para fazer aquilo que o já é feito há 15 anos com estratégias muito mais baratas, eficientes e reconhecidas no cenário internacional de combate à seca e à desertificação?

Para quem não acompanha o debate sobre mudanças climáticas, o modelo tecnológico de Israel é muito criticado pela ineficácia, pelo custo, elitização e, principalmente, por contribuir para o aumento da emissão de gases-estufa. Sim, exatamente, a dessalinização israelense retira parte do sal da água mas contribui para o aumento da temperatura da Terra por um motivo óbvio: o uso de combustíveis fósseis.

O processo consiste na captação da água do mar que depois é levado para grandes usinas por meio de navios, onde a água é destilada, condensada e resfriada, para depois sofrer a dessalinização e termina aí. Posteriormente, será necessária a construção de grandes redes de armazenamento e de distribuição, o que encarece sobremaneira a tecnologia que já possui custos elevados. É exatamente por isto que a Organização das Nações Unidas, em seu Relatório Sobre Água e Energia, considera o projeto impróprio para regiões pobres, especialmente para a utilização em larga escala, como na agricultura.

O gasto de tempo e energia torna o projeto inviável para países com a dimensão do Brasil, onde as distâncias são muito maiores do que nos diminutos Israel e Emirados Árabes.

Mas a situação ainda pode ser mais grave. Segundo o relatório Key Issues in Seawater Desalination in Califórnia: Marine Impacts, o Pacific Institute tece severas críticas ao modelo israelense, instalado nas baías de São Francisco e Monterrey na Califórnia, especialmente pelos impactos na biodiversidade. Conforme o relatório, a água residual saída das usinas apresenta um volume de concentração de sal muito superior ao natural, elevando a toxidade dos pontos de descarte e ainda recebe a contribuição dos metais derivados da corrosão dos encanamentos.

Portanto, no momento em que o país e o mundo seguem mergulhados dentro de uma crise financeira pesada, com o agravamento das mudanças climáticas e a necessidade urgente da população, não existe nenhuma justificativa lógica, racional, razoável ou financeira para investir em projeto que levará anos para ser implementado e cujos resultados demonstram ser absolutamente questionáveis, notadamente se consideramos que o Brasil já tem a disposição ações de reconhecido sucesso, mais eficientes e baratas.

Tudo indica que estamos retornando ao tempo do cercamento de açudes, onde a água deixa de se um bem pública para ser transformada em instrumento de poder e manipulação política.