.Por Sandro Ari Andrade de Miranda.

Epicuro, refletindo sobre o mundo em que vivia, afirmou certa vez que “a justiça é a vingança do homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem”. Na prática, o mestre do materialismo grego lança, nesta assertiva, uma das bases do nosso direito penal. Se não é mais admissível a ação humana própria para vingar um ato injurioso, toma esta ação do indivíduo a sociedade e, de forma racional, com o uso da força pelo estado, executa a vingança com base no seu aparato no normativo.

Mas seria tão somente isto a justiça? Um ato de vingança? Uma penalização? Uma condenação? Bacon reproduz Epicuro, ao afirmar que a “vingança é uma espécie de justiça selvagem”. Mas o que fazer com todos aqueles e aquelas que clamam por justiça indo além da mera vingança? Seriam estes iludidos pela sociedade?

Na verdade, a expressão latina justitia tem muito mais a ver com equidade do quem com vingança. O ato racional-legal executado pelo estado não é justiça, e sim o direito. Portanto, quando falamos em justiça, não estamos abordando o julgamento processado por juízes-funcionários, e sim o equilíbrio entre direitos e deveres. Justiça, em termos reais, é um conceito muito mais próximo de distribuição do que de vingança: distribuição do direito, dos bens, da renda, da igualdade, das opções de vida. Talvez por isto, o próprio Epicuro se manifeste de forma brilhante ao dizer que “a serenidade espiritual é o fruto máximo da justiça”. Portanto, ele mesmo tem uma leitura mais ampla sobre o seu significado do que a de uma simples vingança.

A confusão que muitos fazem entre justiça e direito é derivada da presença de um ato comum a ambas: o julgamento. Quem define o que é justiça é quem a julga? No sistema de direito racional-legal, isto é simples, cabe ao juiz aplicar ar normas vigentes. Mas se estas normas sirvam exatamente para proteger um status de desigualdade e sejam maculadas por injustiças gritantes, como a escravidão, a proteção de privilégios, a opressão dos que não possuem direitos, racismos, sexismos, etc.? Nestes casos, o julgamento torna-se ampliado e cabe à própria sociedade julgar o fundamento do seu direito ou, nas palavras do advogado e revolucionário francês Pierre Vergniaud, “quando a justiça fala, a humanidade deve ter a sua oportunidade”.

Desta forma, a justiça não é um atributo do direito, mas uma das suas condições possíveis, pois ela, justiça, é um conceito aberto, condicionado pelos anseios de equidade presentes na sociedade. Assim, não há justiça efetiva se milhões de indivíduos são excluídos do acesso aos benefícios produzidos pela humanidade e silenciar nestas situações, como já ressaltou Gandhi certa vez, é ser cúmplice de injusto.

Sandro Ari Andrade de Miranda é advogado e mestre em Ciências Sociais e mantém o blog Sustentabilidade e Democracia.