.Por Ricardo Alexandre Corrêa.
Não venho armado de verdades decisivas
− Frantz Fanon
No ano passado, a discussão racial ocupou grande parte dos meios de comunicação e provocou debates em diferentes espaços da sociedade. Ainda que esse movimento tenha acontecido, tardiamente, existem razões para que o tema continue repercutindo.
O racismo estrutural impõe obstáculos à sobrevivência dos negros, e não encontra políticas de Estado que o enfrente radicalmente; as consequências são devastadoras, produzindo um elenco de cidadanias mutiladas na vida da população negra (SANTOS, 1996/1997). Por exemplo: o preterimento nas seleções para as melhores oportunidades de emprego, exceto em atividades que ofertam baixa remuneração e maior exploração humana; estabelecimento de moradias em locais com alta vulnerabilidade social; principais vítimas de encarceramentos e assassinatos nas abordagens policiais. Milton Santos, doutor em geografia, escreveu, há mais de vinte anos, a seguinte reflexão “o que dizer também do comportamento da polícia e da justiça, que escolhem como tratar as pessoas em função do que elas parecem ser” (1996/1997). Infelizmente, nada mudou.
Com os recorrentes debates, as pessoas que nunca olharam criticamente para a vida dos negros, tiveram a impressão de que vivenciávamos uma situação inédita na sociedade, dado que o racismo estava sendo pautado como estrutural. Isso aconteceu, porque, por muito tempo, as classes dominantes emplacaram uma narrativa que examinava o racismo do ponto de vista moral (ofensas, injúrias e desvio de personalidade). Mas a narrativa ocultava os complexos mecanismos racistas, articulados nas estruturas sociais, que ainda impedem os negros de participarem dos espaços de poder, ao mesmo tempo em que conservam os privilégios da branquitude1.
Das pessoas brancas que conheço, algumas ousaram confidenciar-me que estavam cansadas de ouvirem falar sobre racismo estrutural. Obviamente, muitas delas são racistas, estão somente preocupadas com os próprios privilégios e ignoram que a “carne mais barata do mercado” continua sendo a carne negra.
Outro fator a destacar, é a visão de mundo que atribui à responsabilidade de cada pessoa pelo próprio destino. Esse pensamento, reiterado através dos aparelhos educacionais e midiáticos, considera que a história da formação da sociedade brasileira, e a sua relação com o contemporâneo, não tem validade. Dessa maneira, os séculos de escravidão se tornaram sem importância, a naturalização da violência ocupou as subjetividades, o mito da democracia racial obscureceu a gênese dos privilégios simbólicos e materiais dos brancos, e como disse a psicóloga Maria Lúcia da Silva (2017) “As representações negativas estão enraizadas no imaginário social, e os golpes sofridos no dia a dia por negros e não brancos frequentemente caem na condição da não existência”.
Aliás, os discursos de combate ao racismo necessitam de novos parâmetros no processo de denúncia e conscientização. Os privilégios dos brancos devem ser explicitados nos noticiários e discussões, da mesma maneira que a violência contra os negros. Estamos percebendo que, ao focalizar as mazelas dos negros, estimulamos sentimentos solidários, culpabilização das vítimas e naturalização das condições degradantes de sobrevivência, mas nenhum constrangimento que provoque práticas antirracistas efetivas. A reflexão da Maria Aparecida Silva Bento, doutora em psicologia social, amplia o entendimento “este silêncio e cegueira permitem não prestar contas, não compensar, não indenizar os negros: no final das contas, são interesses econômicos em jogo. Por essa razão, políticas compensatórias ou de ação afirmativa são taxadas de protecionistas, cuja meta é premiar a incompetência negra etc”.
Mudemos a orientação das abordagens, responsabilizemos os brancos e realcemos o capital econômico e simbólico monopolizado por esse grupo. Se eles estão cansados, imagine quem sente o racismo na pele. Apenas cuidemos para não cairmos na ingenuidade, e acreditarmos que o antirracismo se resolverá somente com narrativas. A revolução estrutural está no horizonte, desde que consigamos práticas concretas (individual, coletiva e institucional) em diferentes campos da sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGENCIA FIOCRUZ. Pesquisadora explica conceito de branquitude como privilégio estrutural. Disponível em: <https://agencia.fiocruz.br/pesquisadora-explica-conceito-de-branquitude-como-privilegio-estrutural>. Acesso em: 10 jan. 2021
BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil. CEERT PUBLICAÇÕES, CEERT, n. 36, p. 01-31, jan. 2002. Disponível em: <http://www.media.ceert.
org.br/portal-3/pdf/publicacoes/branqueamento-e-branquitude-no-brasil.pdf >. Acesso em: 11 jan. 2021.
BRASIL DE FATO. Entrevista da psicanalista Maria Lúcia da Silva. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2017/07/31/impactos-do-racismo-nao-sao-reconhecid
os-pela-psicanalise-afirma-psicologa>. Acesso em: 10 jan. 2021.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.
SANTOS, Milton. Cidadanias mutiladas. In: LERNER, Julio (Ed.). O preconceito. São Paulo: IMESP, 1996/1997, p. 133-144.
1 Segundo Lia Vainer Schucman, doutora em psicologia social, “A branquitude é sempre um lugar de vantagem estrutural do branco em sociedades estruturadas pelo racismo, ou seja, todas aquelas colonizadas pelos europeus, porque a ideia de superioridade surge ali e se espalha via colonização. Dessa forma, colocam as definições vindas da branquitude como se fossem universais.”