A ação jornalística de “ouvir o outro lado” parece, a princípio, algo inquestionável, ético e correto por parte do jornalista. A recomendação dos manuais de redação de meios de comunicação com concessão pública (emissoras de TV e rádio) e das grande empresas do setor é sempre tentar ouvir as pessoas que sofreram algum tipo de acusação em uma reportagem. Teoricamente é perfeito e ético, visto que sempre pode haver equívocos e excessos em uma acusação ou citação.

(foto divulgação – globo)

No entanto, essa prática jornalística pode e é desvirtuada de várias formas, além de, em princípio, poder ser danosa para a sociedade. A primeira forma de desvirtuar o “ouvir o outro lado” é dar um espaço excessivo para um sujeito reconhecidamente corrupto, com histórico, longa ficha desonesta, agressiva ou mesmo criminal. Ou seja, fere-se um princípio ético para se manter o potencial ético do “ouvir o outro lado”.

Um dos problemas éticos mais graves do “ouvir o outro lado” é igualar os desiguais. Muitas vezes essas ações são movidas por interesses político-econômicos dos grandes grupos de mídia. Um sujeito com histórico ético e íntegro, por exemplo, recebe o mesmo tratamento que recebe outro com histórico criminoso, mesmo comprovadamente criminoso. Ou seja, essa ação pode estabelecer, via espaço jornalístico, um reconhecimento da legitimidade de ser desonesto, visto que o espaço no debate público está garantido em igualdade de posição.

Não se está falando aqui do que o jornalista pensa sobre ética e honestidade, mas de uma posição fundada em fatos apurados, por exemplo, histórico de denúncias, agressividades, acusações de corrupção, condenações, práticas ilícitas, antiéticas etc. Isso são dados factuais que, por exemplo, o jornalista usa para definir a confiabilidade das fontes.

Apesar de ser uma prática válida, a ação de “ouvir o outro lado” contém, intrinsecamente, um potencial favorecimento à desonestidade. Vale lembrar que se trata de Jornalismo e não de Direito, onde há o local correto para se permitir o amplo direito de defesa. O amplo direito ao “outro lado” no jornalismo é fundamentado em outras premissas, que equivalem a fatos culturais, éticos, históricos e sociais, exceto se for amparado por decisão com o devido processo legal. Além disso, há casos em que um conjunto probatório garante a inocência de uma pessoa com algum tipo de acusação. Fora isso, ou incluindo isso, todo arcabouço proveniente da experiência e investigação jornalística deve ser o dosador da ação de “ouvir o outro lado”.

Nessa reflexão não se está levando em conta práticas desonestas, também comuns no jornalismo brasileiro, conhecidas como ‘assassinatos de reputação’, mas uma prática equilibrada e bem apurada.

Uma outra forma de desvirtuar o “ouvir o outro lado” é sobrecarregá-lo de tal forma que, no resultado final, o discurso do “outro lado” se torna a pauta principal do processo jornalístico. E foi isso que as emissoras de TV, principalmente a Rede Globo, fizeram durante os anos de 2014 e 2015, até culminar com o golpe parlamentar de 2016. Não precisa de muito esforço de pesquisa para verificar como foi a cobertura dos telejornais da Globo e outros na preparação e articulação para a derrubada do governo. O “ouvir o outro lado” foi fundamental para o golpe.

Durante esses anos, todas as notícias sobre decisões do governo Dilma Roussef (PT) eram enriquecidas com o “outro lado”. Uma das formas era dar a notícia da decisão do governo em 15 ou 30 segundos e soltar, por exemplo, 5 ou 10 minutos de “outro lado”. Um verdadeiro massacre. Nesses 5 ou 10 minutos do “outro lado” se tinha toda a forma de ataque contra o governo. Ou seja, o “outro lado” tornou-se o único lado, bastando aumentar a dose, o número e o tom dos entrevistados de forma avassaladora. Esse procedimento contínuo das emissoras de TV e grandes meios de comunicação possibilitaram criar um clima de ingovernabilidade, que propiciou a derrubada do governo. Todas as decisões do governo estavam sendo deslegitimadas diuturnamente pela mídia.

Ao mesmo tempo que hipervalorizavam o “outro lado” quando o tema era massacrar as decisões sobre notícias do governo, havia também o apagamento do “outro lado”, quando a notícia favorecia a oposição ao golpe parlamentar de 2016. Isso acontecia na mesma edição do telejornal, ou mesmo, no mesmo bloco de notícias. 10 minutos para a notícia e 10 segundos para o “outro lado”.

Por exemplo, durante esses anos, em nenhum momento as emissoras fizeram reportagens em que a origem da pauta estava justamente nas atitudes suspeitas do ex-juiz Sérgio Moro e do procurador Deltan Dallagnol. Na cobertura da Lava Jato, o procedimento era o oposto das notícias em relação ao governo Dilma. Aqui a notícia ganhava 10 ou 15 minutos e o direito de resposta, o “ouvir o outro lado”, era atrofiado, resumindo-se ao necessário. Nem mesmo quando uma vice-procuradora relatou os inúmeros abusos da Lava Jato. (LINK)

No caso da Lava Jato, uma outra estratégia, bem malandra, diga-se de passagem, era dar um espaço maior ao “ouvir o outro lado” uma ou duas vezes por mês, o que garantia um ar de equilíbrio jornalístico depois de duas semanas de massacre. Uma regra antiga da medicina é que diz que o que faz o veneno é a dose. O “ouvir o outro lado” serve para isso também, fabricar veneno. E não há como negar que a sociedade brasileira saiu envenenada do golpe de 2016!

Esses são apenas alguns exemplos mais gritantes dos últimos anos, mas esse procedimento se tornou padrão na cobertura cotidiana. Veja por exemplo a cobertura sobre a Reforma da Previdência. Simplesmente não existe o outro lado. Sim, não há o outro lado.

Não é que os jornalistas são maus. É que o jornalismo é uma prática política, que deve ser pautada pela ética, mas também pela justiça social, pela defesa da população. Mas, muitas vezes, está a serviço dos interesses de grupos econômicos.