.Por Allan Yzumizawa.

Waldemar Zaidler

Waldemar Zaidler é um dos pioneiros do graffiti no Brasil. Nessa entrevista, ele relata o seu início com Alex Vallauri e Carlos Matuck, sua inserção no sistema da arte e o que ele acha dos novos artistas grafiteiros, além de pensar a questão do graffiti na sociedade contemporânea e sua expansão nas últimas décadas, chegando até às galerias.

Para Zaidler, o objeto da galeria é autônomo, mas o mesmo objeto na rua faz parte de um ambiente. “Quando estamos na rua nós estamos falando de outra coisa, de um objeto que se relaciona e que se modifica pela interação com fenômenos da cidade”, diz. Veja abaixo a entrevista completa ao curador Allan Yzumizawa.


Allan Yzumizawa:
Waldemar, gostaria de iniciar a nossa conversa fazendo uma pergunta básica: Quando você começou a fazer graffiti e o que te fez despertar o interesse nessa prática?
Waldemar Zaidler: Eu comecei a me interessar por essa prática em 1979, quando vi algumas produções do Alex Vallauri. Eu estava no terceiro ano da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) e cursava uma disciplina optativa sobre “programação visual”. Naquela época, era proibido atividades comunitárias e estavam começando a retomar as atividades democráticas – junto com isso, a retomada das associações de bairros. Então, o professor da disciplina, Sylvio de Ulchoa Cintra, deu como exercício fazermos uma proposta de comunicação visual para uma dessas associações de bairros.
Escolhi a palavra Itaim. Criei uma figura de um apresentador apontando para a palavra e uma multidão de pessoas de costas olhando – esse foi o resultado da minha imagem. Tempos depois fui muito copiado nas capas de discos… Normal, quando tá na rua, tá na rua… Transcendeu o papel e pôs uma perna no design ambiental.
A gente usava o stencil, que é muito interessante pois você vai criando um repertório imagético, uma narrativa, ambiência, ambientes… E eu ia pensando em várias questões, como as interferências do caminhar das pessoas através das imagens: experimentava fazer coisas muito pequenas para observar o andar do transeunte, que se transformava de um andar paralelo ao meio-fio para um andar em zig-zag, ao tentar se aproximar e observar o desenho que estava na parede. Algo nada demais, mas que eu achava interessante e via que acontecia.

AY: Você já respondeu uma das perguntas que eu ia te fazer, que era: como vocês pensavam o espaço? Por exemplo, o elemento do caminhar das pessoas, os automóveis, as calçadas…
WZ: Nós pensávamos de várias maneiras. Tinha a situação física do espaço como localização, visibilidade, circulação – às vezes era um lugar com circulação zero, mas aí oferecia outras características como conservação. Outro elemento, é a carga simbólica do imóvel – isso era muito importante. É muito diferente você pichar uma escola, uma cadeia ou um prostíbulo.

AY: Como era repressão na época?
WZ: Na época, vivenciávamos a ditadura. Matava-se por muito pouco… A repressão era um negócio muito forte, por outro lado, ninguém sabia o que estávamos fazendo – não existia uma classificação como existe hoje. Das poucas vezes em que deixamo-nos flagrar, falávamos que era um trabalho da universidade. Garotos, de classe média, carro novo, universitários… Essas características faziam os policiais pensarem duas vezes antes de nos abordar ou reprimir. E também dizíamos: Olha, essa parede não está muito mais bonita? E iam embora. Apesar de ser um momento de repressão política, tinham esse aspecto de ser uma coisa não classificada.

AY: E hoje, os muros autorizados…
WZ: Não, isso é uma piada.

AY: O que você acha disso?
WZ:  Olha, eu acho o seguinte: Isso é fruto de uma confusão muito perversa e que começou a se dar no começo dos anos 1980. Essa confusão foi gerada de propósito, e não se difere de nada do sistema de absorção das manifestações culturais pelo sistema. Aconteceu com o rock, com o samba e com o graffiti… e se tiver alguma manifestação que ainda não foi cooptada pelo sistema, vai ser. A partir do momento que você precisa atribuir valor de mercado, a primeira coisa que precisa se estabelecer é se ela é legal ou ilegal. A partir do momento em que o graffiti se torna um fenômeno de dimensão midiática a propaganda viu nele potencialidade, principalmente por ser imagem e não mais só texto – o espectro da propaganda se amplia para o campo imagético, para o que chamamos também de moda. Em 1979 – 1980 em São Paulo foi instaurado esse embrião, e para se tornar legal precisou-se fazer algo, agora me responda o que foi?

AY: Institucionalização?
WZ: Isso aconteceu em 1982…. Antes disso?

AY: Publicidade?
WZ:  Transforma-se em arte! Pronto. Está tudo resolvido. O graffiti vira arte, e aí temos a confusão: vai para as galerias, bienais… Na minha opinião, Allan, não teria nenhum mal nisso tudo se não fosse a utilização dessa ideia para se reforçar a exclusão social. Porque, diante disso, temos a seguinte situação: uma grande quantidade de livros que querem separar graffiti de pichação, classificando o graffiti como arte, como algo bonito e colorido. Agora, se é escrito, é vandalismo, é caso de polícia. São coisas que vão orientando políticas públicas de distribuição de dinheiro para os bonitos e ferro e chumbo para os feios… A gente podia simplesmente reconhecer que do graffiti derivaram-se práticas ou ramificações interessantes, outras maneiras de fazer, outras relações com a arquitetura da cidade. Eu era um dos grafiteiros que estavam sendo absorvidos pelo sistema, e reclamava tanto que não aguentei por muito tempo. Eu, o Matuck e o Vallauri já vinhamos desde 1980 fazendo exposições. Uma bem notável foi quando o MAM nos convidou para fazer uma pintura, um mural em sua parede externa. Aí é que a análise começa a ficar interessante. Era mural, era graffiti? Era mural… Pouco tempo depois, em 1982 fomos convidados para fazer uma exposição na Galeria São Paulo. Foi a primeira exposição de graffiti no Brasil. Eu descordava e reclamava. Não queria que colocasse graffiti como denominação e insisti para que se chamasse de mural-graffiti. A palavra “mural” foi impressa apenas no convite para a abertura da exposição e literalmente ignorada em tudo: jornais, releases, catálogos… em tudo.

AY: Tirando o aspecto fora/dentro, quais as diferenças que você enxergava da sua produção no museu e na rua?
WZ: A diferença do cubo branco é que nele você tem um objeto focado e a pior coisa que pode acontecer é alguém passar na sua frente, atrapalhando a observação do trabalho exposto. Por outro lado, na rua, a melhor coisa que pode acontecer é alguém passar na sua frente, porque existe essa relação da imagem com o ambiente e com a ambiência; o passante se insere na paisagem e, ao inserir-se, passa a pertencer à essa paisagem também. O objeto da galeria é autônomo, e quando estamos na rua nós estamos falando de outra coisa, de um objeto que se relaciona e que se modifica pela interação com fenômenos da cidade. Uma das coisas que eu gostava de fazer era a figura de um preso pintada nos muros. O interessante não era o desenho mas o lugar onde eu o pintava (prendia). Havia muitas casas antigas que tinham porão com umas janelinhas ao rés da calçada: eu adorava pintar o preso entre elas. “Prendia” também nas escolas, nos muros das cadeias, “prendia” em vários lugares que modificavam o significado da imagem.

AY: Será que o grande problema não está na confusão dos termos? Quando um artista faz uma coisa na rua e pinta esse mesmo motivo na tela chamando de graffiti?
WZ: Mas é claro que sim. É exatamente isso que estou te falando.

AY: Mas vamos chamar de graffiti, simplesmente porque vende.
WZ: Exato. Tem um parentesco técnico, imagético etc. que poderiam ser bem utilizados. Um exemplo que gosto de dar é do Matilha Cultural. Eu vi no jornal o seguinte anúncio: alguns artista tatuadores resolveram pegar seus motivos, pintá-los em tela e exibi-los numa exposição. Achei muito interessante essa ideia. Entretanto, não houve nenhuma vez na imprensa alguém falando que eles “tatuaram” telas, enquanto todos falavam que telas eram “grafitadas… É aí que eu queria que você observasse a perversidade. Em 1986 propuseram no buraco da paulista, grafitar grandes obras da pintura brasileira: Di Calvalcante, Portinari, Anita Malfati… e o argumento era o seguinte: isso ia aproximar o povo das grandes obras da pintura brasileira… Ou seja, da mesma forma que você me perguntou se tem diferença da imagem na rua e dentro da galeria, eu te respondo se tem alguma diferença do quadro do Di Cavalcanti no museu e ele pintado na rua por alguém. Seria muito mais interessante propor uma releitura desses artistas, não uma cópia. Você acha que tem alguma chance de acontecer? É necessário pensar numa política pública, senão ficaremos dependendo desses editais desestruturados conceitualmente. Isso tudo seria bem diferente se assumissem que graffiti é graffiti, que isso sempre existiu e que provavelmente sempre vai existir.

AY: Bom, pra finalizar: Já que chegamos numa problemática, numa análise crítica, eu gostaria de perguntar quais as formas de graffiti que você acha interessante e quais artista de instigam?
WZ: Eu não consigo falar em formas de graffiti. Eu não gosto do nome “arte de rua” – não consegui propor nada melhor – mas ainda acho melhor do que o termo graffiti para referir manifestações culturais percebidas como artísticas. O termo “arte de rua” designa uma manifestação artística que não tem a ver com arte pública, mas se dá na mesma esfera, do lado de fora, público. Prefiro chamar de práticas derivadas do graffiti e que engloba alguns fazeres: os fazeres gráficos, fazeres da pintura, da escultura… quando se fala pra qualquer um “arte de rua”, logo já se pensa em grafitti. Temos que fazer o contrário, temos que evitar essa palavra.

Na minha opinião, essa pergunta que você fez – “formas de graffiti” – é um caminho para o abismo; acho que essas formas devem ser tratadas como manifestações culturais. Algumas conseguem de fato migrar para o mundo da arte, serem percebidas como arte. Adoro as manifestações culturais anônimas relacionadas ao graffiti, muito mais do que esses murais dos Gêmeos. Eu gosto quando eles picham, pois quando isso acontece, se aproxima muito mais de uma manifestação cultural.

Olhe aquele picho bem em cima do prédio, está vendo? (aponta para um picho num prédio na Sé, São Paulo) Aquilo transforma o meu olhar urbano. Esse olhar urbano é composto por tudo que está em nossa volta e nele se inscreve. Me faz pensar como aquela imagem chegou no topo do prédio e, desse modo, faz percorrer esse meu olhar por locais que eu nunca olharia. Trata-se de um recurso de transformar a própria cidade em arte, não utilizá-la como suporte. Convidar as pessoas a criar territórios poéticos, sair desse território da rigidez e objetividade e ir para um território poético. Por isso fica muito difícil definir tipos e formas de graffiti.

AY: Eu te perguntei pois cheguei num impasse. O nome da minha pesquisa acadêmica tem a palavra graffiti. Mas no livro Trespass você olha e vê performances, happenings e isso me deixou angustiado… Não é graffiti.
WZ: Se você concluir isso, ponto para você. Mas aí, tem que se atentar… por exemplo, o Matta Clark não é propriamente da manifestação cultural como o picho, mas algo pertencente à esfera da arte. O graffti está em todos os lugares e em todos os tempos. Dessa manifestação escapam-se práticas que aproximam dos fazeres artísticos, que trazem junto características comuns: non-sense, arbitrariedade, transgressão, efemeridade. Por exemplo, o trabalho de saco de lixo. Aquilo causa estranhamento, você não sabe o que é pois traz uma novidade que não tem nenhuma etiqueta, e isso é incrível. Acho que não tem problema nenhum você ter o graffiti no nome da pesquisa, mas no fim assumir e chegar a conclusão de que não é, de que não se trata somente disso. O graffiti é uma performance que deixa um sinal. O encantamento desse sinal é pelo o que ele evoca, pois a pessoa que observa esse sinal gostaria muito de ter vivenciado aquela performance. Deixa de ser exclusivamente visual, muda de esfera. Acho que é uma coisa a ser pensada.