.Por Ricardo Corrêa.
Na história do continente africano surgiram diversas vozes que se levantaram contra o colonialismo e variadas formas de opressão presentes nos países que o compõe. Thomas Sankara, Patrice Lumumba, Léopold Sédar Senghor, Steve Biko e tantos outros deixaram ensinamentos que não envelhecem, mesmo havendo sido elaborados num outro contexto.
Amílcar Lopes Cabral (foto) é uma dessas vozes, nasceu em 1924, na cidade de Bafatá, Guiné-Bissau. E foi brutalmente assassinado por alguns dos seus companheiros no dia 20 de janeiro de 1973, em Guiné – Conacri, apoiados pela PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado. Este recorte biográfico situa-se no reconhecimento da contribuição de Cabral aos movimentos de libertação africanos, especialmente, em Cabo Verde e Guiné-Bissau.
Cabral era filho de cabo-verdianos e passou a infância em São Vicente, Cabo Verde. Por causa do elevado desempenho escolar, aos 21 anos, foi contemplado com uma bolsa de estudos para cursar Engenharia Agrônoma no Instituto Superior de Agronomia – ISA, em Lisboa. Nesse período, frequentou a Casa dos Estudantes do Império e a Casa da África, ambientes onde desenvolveu atividades artísticas focalizando a identidade negra, designadas por ele como “reafricanização dos espíritos”. Concorrente a essas atividades, conheceu alguns estudantes que expressavam a preocupação com a colonização europeia em África e a urgência da manutenção dos valores africanos, desse ponto, diversos encontros envolvendo debates políticos tornaram-se uma constante; Cabral, Agostinho Neto, Mário de Andrade, Marcelino dos Santos e Francisco José Tenreiro fundaram clandestinamente o Centro de Estudos Africanos, contudo a PIDE o fechou em 1951.
Naquela época, a situação dos países de colonização portuguesa era demasiadamente complexa, pois Portugal estava sob a truculência de Salazar – considerado o ditador mais violento da história do país e totalmente contrário à descolonização. Em 1952, Cabral, concluiu o curso de agronomia e retornou para Guiné-Bissau, passando a assumir o cargo de diretor do Posto Agrícola Experimental de Pessubé, ocasião em que ficou responsável pela realização do primeiro recenseamento agrícola do país. Essa oportunidade lhe permitiu conhecer de perto a realidade da população guineense.
A criação do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde – PAIGC, em 1956, deu início ao período substancial na vitoriosa luta pela independência conquistada em 1974 (Guiné-Bissau) e 1975 (Cabo Verde). O PAIGC foi uma organização revolucionária que chegou a lançar mão das armas como instrumentos de combate.
Cabral, além de co-fundador, consagrou-se como a principal liderança. Era a favor do diálogo, não instigava o ódio e acusava os colonizadores de serem os culpados pelo uso das armas. O Massacre de Pidjiguiti, ocorrido em 1959, reforça essa proposição de Cabral. Os trabalhadores do porto de Bissau ao protestarem por melhorias nas condições de trabalho foram repreendidos violentamente, resultando em inúmeras mortes e feridos. Ou seja, os colonialistas não deram ao PAIGC uma outra alternativa que não fosse pela luta armada.
Um dos eixos centrais dos questionamentos quanto à colonização portuguesa era decorrente do esvaziamento da cultura africana, sem perder de vista a usurpação das riquezas e a opressão racial. Nesse sentido, a reflexão de Cabral (1978) pode nos levar a compreender o que estava ocorrendo nas colônias:
“Toda a educação portuguesa deprecia a cultura e a civilização do africano. As línguas africanas estão proibidas nas escolas. O homem branco é sempre apresentado como um ser superior e o africano como um ser inferior. Os conquistadores coloniais são descritos como santos e heróis. As crianças adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola primária. Aprendem a temer o homem branco e a ter vergonha de serem africanos […]”
Esse obstáculo demonstrava para Cabral que a cultura inserida em toda a complexidade do binômio – colonizado e colonizador – seria o arrimo do povo e que a sua destruição endossaria o argumento para a espoliação dos colonizados. Assim, para suplantar a colonização seria necessário o fortalecimento, a conscientização, e a defesa da cultura africana. Sendo – até – muito mais importante, no primeiro momento, do que a independência política. Sob essa ótica, não adiantaria expulsar os colonizadores se o imaginário da população continuasse com os referenciais alheios.
Cabral era um intelectual marxista, e sempre esteve comprometido com o pensamento crítico, assegurando que a organização da luta não era fruto da própria cabeça, mas situava-se em concordância com a realidade concreta da terra. Advogava pela educação como aporte para a emancipação do povo, nas reuniões da organização explanava com uma linguagem simples e didática, oferecia exemplos místicos, da física, agronomia e tudo que facilitasse a compreensão das ideias e dialogassem com a vivência dos militantes.
Outro fator de destaque foi o nível de conscientização política e humana defendida por Cabral a se incorporar no PAIGC. Ele desconstruiu, por exemplo, o papel secundário relegado as mulheres na maioria das nações e mostrou aos militantes a importância delas no processo revolucionário. Muitas foram comandantes, comissárias e combatentes na frente da guerra. A lucidez e o brilhantismo de Cabral despertaram, inclusive, a admiração do educador Paulo Freire que o chamou de “Pedagogo da Revolução”.
Em Amílcar Cabral ainda há muito a ser explorado. No entanto, o recorte biográfico intencionou sublinhar um intelectual por vezes não tão evidenciado, mas que deixou um importante arcabouço teórico. Aos negros que lutam pela igualdade em direitos e emancipação econômica, contra a estigmatização e os estereótipos, o legado de Cabral poderá subsidiá-los com lições em que a defesa da cultura do negro, no Brasil, deverá ser a premissa. Dessa maneira, facilitando o combate ao racismo herdado do mesmo colonialismo que o “Pedagogo da Revolução” e o PAIGC, outrora, enfrentaram.
Referências:
CABRAL, Amílcar. Unidade e Luta I. A Arma da Teoria. Textos coordenados por Mário Pinto de Andrade, Lisboa: Seara Nova, 1978.
CABRAL, Amílcar . Guiné-Bissau – nação africana forjada na luta. Lisboa. Nova Aurora, 1974.
ROMÃO, José Eustáquio; GADOTTI, Moacir. Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descolonização das mentes. São Paulo: Editora e livraria Instituto Paulo Freire, 2012.