Do BdF/ Fernanda Paixão

A recente aprovação do Projeto de Lei 6.299/2002, conhecido como Pacote do Veneno, tem gerado preocupação entre cientistas e ambientalistas que, desde 2003, alertam sobre as consequências de uma legislação mais flexível aos agrotóxicos. O passo definitivo será dado no Senado, mas sua aprovação na Câmara dos Deputados já aponta para uma tendência observada em todo o mundo: as leis mais permissivas e os incentivos para a entrada de agroquímicos nos campos do sul global e as restrições, por outro lado, no norte global.

(imagem rostichep – pbl)

Com clima predominantemente tropical e subtropical, os países da América Latina e do continente africano são os mais afetados com a aplicação de agroquímicos em seus cultivos. São países onde o debate sobre a proibição e o risco dos agrotóxicos costuma ser bem menos incidente do que nos países do norte global, os fabricantes desses produtos.

Só o Reino Unido exportou para países como Brasil, México, Índia e Indonésia 21,2 mil toneladas de misturas com o paraquate, herbicida altamente tóxico fabricado na cidade de Huddersfield – e, claro, proibido para uso na União Europeia.

Em 2017, o Atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia já revelava a desigualdade entre as regiões em relação ao uso dos pesticidas para os cultivos. Dos 100 agrotóxicos utilizados até então para o cultivo do arroz, base da alimentação brasileira, 25 são proibidos na União Europeia (UE).

Mas também os europeus consomem do seu veneno, mesmo restringindo o uso localmente. Em 2016, foram mais de 17 mil toneladas de arroz exportados do Brasil para a UE.

A desigualdade também se reflete nos níveis de resíduo permitidos por lei: o limite de presença do inseticida malationa no feijão no Brasil chega a 400 vezes mais do que o permitido pela UE. Na soja, o mesmo se repete com 200 vezes mais permissão para resíduos de glifosato, agroquímico altamente cancerígeno. A água potável no Brasil pode ter 5 mil vezes mais resíduos desse herbicida em relação ao bloco europeu.

Autora da pesquisa, a doutora em Geografia Larissa Bombardi teve que deixar o Brasil com seus filhos após a publicação do seu trabalho.

Europeus se surpreendem com dados

Para países do sul global que sofrem diretamente os efeitos da fumigação de pesticidas, como é o caso do Brasil, fazer passar iniciativas como o Projeto Nacional de Redução de Agrotóxicos é especialmente desafiador. Relator do projeto de lei na comissão especial de 2018, o deputado Nilto Tatto (PT) esteve na apresentação que Bombardi fez do Atlas no Parlamento Europeu. O parlamentar destaca a surpresa de muitos europeus diante dos dados.

“Os venenos são proibidos lá, mas voltam nas sementes e nas carnes que os países importam do Brasil, da Argentina, do Paraguai, do Uruguai. É importante destacar isso no processo de pressão internacional a esse modelo de agricultura que temos”, disse o deputado ao Brasil de Fato, afirmando que a produção de conhecimento é fundamental para a conscientização social.

“As informações mobilizam as pessoas que não querem comer veneno e cuidar do meio ambiente. Por isso, o próprio agronegócio e os países importantes na produção de alimentos precisam rever esse modelo de agricultura dependente de agroquímicos, porque pode perder mercado no futuro”, diz Tatto. “A liberação de mais agrotóxicos parece ser um tiro no próprio pé do agronegócio”, considera.

Portas abertas para um modelo em decadência

Em tempos de emergência climática e de eventos voltados para possíveis soluções globais como a COP26, o que se observa é um aprofundamento do modelo agroindustrial. Aparentemente melhorados no norte global, os efeitos nocivos são transportados, cada vez mais, ao sul global, como observa a engenheira agrônoma Francileia Paula de Castro, coordenadora nacional da Campanha Contra os agrotóxicos e Pela Vida.

“As propostas de medidas mitigadoras têm se dado principalmente em países como Estados Unidos, União Europeia, China, grandes potências mundiais.

A União Europeia tem um plano de reduzir 25% de agrotóxicos nos próximos anos. Mas fica a pergunta: isso significa que a União Europeia vai deixar de importar os produtos tóxicos para outros países do sul global?”, questiona.

“A externalidade de recursos ecossociais tem sido terceirizada [para países] como Chile, Paraguai, Brasil, México e países africanos, tanto para questão dos agrotóxicos como para a imposição dos transgênicos.”

Manipulação genética

A alteração genética das sementes é parte do pacote que faz os agrotóxicos serem essenciais para o cultivo no modelo agroindustrial. Quanto mais uniformes e simplificadas, as plantações podem receber os inseticidas, herbicidas e todo tipo de agroquímico fabricado para matar as plantas e pragas indesejadas nos cultivos. A manipulação genética segue de mão dadas com os agroquímicos, lançando sementes no mercado que são resistentes a novos e mais tóxicos agroquímicos.

“O agravante desse cenário é que nossos sistemas agrícolas foram moldados ao longo do século 20 em vários princípios da agronomia”, ressalta o geneticista Rubens Nodari, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Focando em apenas dois desses princípios fundamentais: um é a maximização do rendimento, e o outro é a uniformidade. Os agricultores foram convencidos pelos agrônomos e pela indústria de alimentos que temos que ter padrão, os grãos têm que ser iguais, tamanho, cor”, critica.

Nodari destaca como esses próprios princípios geram um cenário contraproducente para um modelo extremamente focado na produtividade e no lucro.

“Quando a gente compara o que existe na natureza, dificilmente encontramos plantas mortas por fungos ou insetos, porque ela não tem uniformidade ou uma única variedade. Quando há uniformidade genética, criamos uma vulnerabilidade”, afirma Nodari. “Se um fungo pode atacar uma planta, pode atacar todas, em 5 mil hectares com uma mesma variedade. É de uma estupidez sem limite”, pontua.

Agrotóxicos trazem mais agrotóxicos

Não há um cenário em que a introdução desses produtos não gere o aumento exponencial de sua aplicação. Portanto, a aprovação de novos agrotóxicos significa, em poucos anos, uma quantidade muito maior de resíduos nos alimentos do que a que, muitas vezes, é prometida inicialmente nas propostas e nos debates sobre os supostos benefícios desses produtos nos campos.

A Argentina tem uma experiência de longa data com o glifosato, como aponta o engenheiro agrônomo Patricio Vértiz, do Coletivo Socioambiental do Instituto Tricontinental.

“Na Argentina, há estimativas que mostram essa evolução de consumo de agroquímicos. Nos anos 1990, foram aplicados entre 35 e 40 milhões de litros de agroquímicos. Em 2018, de acordo com fontes de distintas câmaras que revelam a quantidade de produtos vendidos, supera os 525 milhões de litros”, pontua.

Para o engenheiro agrônomo, a solução implica olhar para os modelos econômicos dos países do sul global que, majoritariamente, dependem do setor primário.

“​Nos nossos países, onde a produção agropecuária é uma atividade central das nossas economias e de entrada de divisas, certas mudanças devem ser pensadas em outras esferas. [Deve-se] pensar em como fazer para não depender tanto da produção primária e apontar a um desenvolvimento produtivo em todas as áreas​”, afirma, destacando a necessidade de se incentivar a agricultura orgânica e gerar mecanismos sustentáveis para que seja uma base possível de uma economia. “Primeiro, deve haver um debate público instalado e medidas de políticas públicas para favorecer a diminuição de agroquímicos”, pontua. (Do BdF)