.Por Rafael Martarello.

São Paulo, dia primeiro de outubro de 1992 antecedia o dia da chacina ocorrida dentro do Complexo Prisional do Carandiru que vitimou em um único pavilhão 111 detentos, e até hoje não se tem estatística do número total de feridos. A figura de linguagem “banho de sangue” nunca foi tão adequada para um acontecimento, o sangue cobria o piso e escorria andares abaixo.

(art rafael martarello)

Passado 30 anos, nenhum dos policiais diretamente envolvidos puxou cadeia, isto é, não foram punidos. Nem mesmo as autoridades que orquestraram o massacre. Na gíria prisional, estouraram no norte. Isto é reflexo da verdadeira impunidade no Brasil, a policial, onde militares cometem crimes e no máximo ficam alguns meses em funções administrativas, para depois retornam à rua e prosseguirem suas práticas criminosas.

Para problematizar essa questão, trago uma das músicas mais famosas dos Racionais MC’s, Diário de um Detento composto pelo Josemir Prado e pelo Mano Brown, que faz uma narração crítica deste universo dividida em dois momentos temporais: vida em situação de cárcere e o período durante o massacre.

Diário de um detento
A música inicia com a apresentação de quem é o eu lírico, um detento. Nesse ambiente há outro sujeito, caracterizado como sanguinário, aqui o detento esboça uma consciência ampliada, não só pelo prelúdio daquilo que a PM viria a cometer depois, mas por entender que este vigia que o mantém naquela situação, o faz a serviço do Estado e tem a função de estraçalhar detento.

Com o andar da canção, o detento fornece alguns detalhes de como pensa um detento: seus desejos; moral carcerária; inquietações religiosas; apreensão processual; pensamento não reduzido aos muros; acerto de conta, pois “Estuprador é diferente, né?” com detalhes específicos do Carandiru “e sangra até morrer na rua 10”.

De forma reflexiva, o detento começa a pensar sobre diversas questões que permeiam o universo prisional, a começar pela formação para entrar no mundo do crime “Cada sentença um motivo, uma história de lágrima, sangue, vidas inglórias, abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo. Misture bem essa química, pronto, eis um novo detento”.

No verso anterior se operou uma mudança do pensamento individual para o coletivo, agora, se soma ao seu lamento o lamento coletivo que ocorre “no corredor, na cela, no pátio ao redor do campo, em todos os cantos”.

A música deixa claro que no sistema prisional “não tem santo”, não é necessário esse tipo de colocação para argumentar que isso não justifica o futuro massacre, no Romão Gomes (presídio militar) também não tem santo, e ninguém vai lá praticar uma chacina. Ou para sensibilizar por meio de um falseamento, ao contrário ao dizer por meio dos diversos versos que relatam como é a prisão, exibe que o encarceramento em massa no Brasil se dá em condições degradantes, precárias, insalubres e abaixo de qualquer padrão humanitário estabelecido, ao ponto do Lucifer (que não é santo) “que veio do inferno com moral um dia, no Carandiru não, ele é só mais um comendo rango azedo com pneumonia”.

Outro ponto marcante no texto são as articulações de sanções disciplinares aplicadas aos presos (“Hoje não tem visita, não tem futebol”) que causa tédio e esse fazem os detentos arrumarem brigas entre si (quiaca). Esta é uma colocação científica, associação do tédio à impulsividade e à agressividade (CAO e AN, 2020; VAN TILBURG, 2021) e ao sadismo (PFATTHEICHER et al., 2021). Recentemente escrevi um texto, apoiado na literatura científica, sobre como cada uma das sanções disciplinares (espécie de tortura) violam direitos humanos e fundamentais dos presos.

Todo esse contexto é dado para chegarmos ao segundo momento temporal. Ele, o contexto da desumana vida no cárcere, é o fator explicativo para a ocorrência de rebeliões. A operação em Outubro de 1992 no Carandiru com 400 policiais teve como primeiro batalhão a adentrar o pavilhão a ROTA e depois vieram os demais agrupamentos policiais. Como diz o rap “Era a brecha que o sistema queria. Avise o IML, chegou o grande dia”.

A operação não focou em apenas controlar a rebelião, houve operação de rescaldo, é um termo usado para apagar focos remanescentes de conflito para que não voltem a se manifestar. Dessa ação policial, o eu lírico sobrevivente e testemunha ocular viu o sangue jorrar “como água, do ouvido, da boca e nariz” e se transformar “numa piscina de sangue”.

O saldo foi de 111 “cadáveres no poço, no pátio interno” “sem arma, sem socorro”, e incontáveis feridos. Mais uma ação da classe dirigente que mantém clara simpatia e conexões com o nazi-fascismo e que fazem “Adolf Hitler sorrir no inferno!”. Aqui, cabe mencionar que esse tipo de ação mostra “o ser humano é descartável no Brasil”, claro, os que não têm pedigree, como os rejeitados pelo sistema e que não tem apoio midiático, como a burguesia e os robocop do governo.

O narrador é um sobrevivente do massacre, é um traumatizado, cabe de ressaltar que o Ratatatá ecoa na sua mente desde o início da sua narrativa. Seu nível de consciente permanece ampliado, finaliza fazendo críticas sistemáticas ao governo e para quem este verdadeiramente está a serviço, também já sabe que o Judiciário não levaria esse caso a “quem vai acreditar no meu depoimento?”.

Fechamento
Após o massacre, a perícia só pode ir ao local cinco dias depois, após a cena ter sido limpa e completamente alterada pelos policiais. Projéteis da munição dos corpos sumiram do tribunal e não houve perícia balística (confronto entre arma e projéteis) o que fortaleceu a defesa dos PMs. Os próprios comandantes, inclusive da Rota, afirmaram que houve combinação de versão, traição entre forças policiais no inquérito e corrupção no julgamento (não é a melhor recomendação).
Nesse processo, teve despacho que levou seis anos para ocorrer, o primeiro julgamento ocorreu somente depois de 20 anos, e tem se estendido ao longo dos anos. O STF manteve esse ano a condenação, mas até o momento, nenhum dos 74 policiais foram efetivamente punidos. Além disso, nem 50% das famílias dos detentos foram indenizadas.

O comandante da operação, o coronel Ubiratan Guimarães (notícia da imagem de capa) foi absolvido e posteriormente se tornou deputado estampando orgulhosamente a identificação numérica de votação o número de mortos do Carandiru. Em 2006 ele foi assassinado, que o diabo o tenha, e até hoje a polícia não sabe por quem, infelizmente não posso personificar meu agradecimento.

Cabe lembrar que frutos desse massacre, e de uma política de administração penitenciária opressiva, além do extermínio nas ruas, surgiram facções criminosas, uma delas o PCC de amplitude de atuação continental, e que apaziguou grande parte das cadeias onde domina, não esta administração falida.

A impunidade é crescente, policiais dificilmente são expulsos, quando isso acontece, são reintegrados e mantém sua vida funcional tranquila, não sendo uma exclusividade da polícia paulista, havendo casos de promoção em decorrência do retorno após a expulsão. No caso do Massacre do Carandiru, aproximadamente 80% deles foram promovidos , houve até quem se tornou Secretário de Estado, dando razão ao verso “Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!.
Pelo fim da Polícia Militar!