Mapa do golpe eleitoral

.Por Alexandre Oliva.

A causa fundamental do problema é que no mundo moderno os estúpidos estão cheios de certeza, enquanto os inteligentes estão cheios de dúvida.
— Bertrand Russell

Falta transparência e fiscalizabilidade a diversos processos eleitorais, o que, conforme a ciência, dá espaço a fraudes em escala, não comprováveis e com pouquíssimos cúmplices internos. A própria tese de que nunca houve comprovação de fraude é falaciosa, e temos sido com ela vacinados para aceitar quaisquer resultados das urnas, absurdos e inesperados que sejam, mesmo não nos sendo dada a possibilidade de fiscalização e verificação independente de diversos processos críticos. Não é saudável fechar os olhos para a ciência.

(imagem antonio augusto – ascom -tse- div)

Outro dia, li um gênio da comunicação chamar atenção para os qualificadores usados à exaustão como meio de promover uma narrativa, a linha atribuída a Goebbels da mentira repetida mil vezes acabar sendo aceita como verdade. Noam Chomsky falava de outro assunto, mas aplico o mesmo pensamento à ladainha sobre nossa urna eletrônica, tida como inquestionavelmente confiável por jamais ter havido qualquer comprovação de fraude, enquanto meios importantes de comprovação de fraude silenciosa, maciça e invisível foram removidos ou bloqueados e os disponíveis estão longe de serem suficientes. É como se, ao ter nossos olhos vendados, tomássemos a impossibilidade de enxergar como evidência de que nada há para ver.

Veja bem, não é que eu queira dar ouvidos ou razão a mitos descolados da ciência, mas até um relógio que marcasse as horas como que voltando ao passado às vezes pareceria marcar a hora certa. Para um relógio assim, o acerto é periódico, e pode ser calculado, demonstrado e comprovado através da ciência; no caso, a lógica, a matemática. Para pessoas, não há tal previsibilidade, e acertos podem até ser obra do acaso. Meu receio é que o acerto quanto à falibilidade da urna não seja casual, mas por conhecimento de causa, e que a confissão-denúncia seja parte de uma dança midiática coreografada, muitíssimo perigosa, com a finalidade de tornar inquestionáveis os resultados futuros das urnas, mesmo que venham a ser inacreditavelmente surpreendentes e claramente fraudados em larga escala, como viabiliza o uso exclusivo de meios eletrônicos para registro e contagem dos votos.

A ausência da evidência não significa evidência da ausência.
— popularizada por Carl Sagan

A ciência já comprovou que não há sistema eleitoral que consiga garantir, a um só tempo, o sigilo e a contagem de todos os votos legítimos, sem a existência de registro dos votos em meio físico permanente, verificável manualmente por qualquer parte interessada. Parte do problema dos meios eletrônicos exclusivos é que memórias de computadores, da RAM ao disco rígido, podem ser modificadas (adulteradas) sem deixar vestígio. Outra parte do problema é que o que acontece dentro do computador é sempre um processo obscuro, sem transparência: mesmo que nos fosse permitido a todos auditar os programas que deveriam controlar as urnas, não há possibilidade de qualquer fiscal ou interessado se certificar de que os programas que uma urna executa são de fato os que deveriam estar lá: a urna é lacrada com os programas dentro. Eles até são assinados digitalmente, mas como poderia um fiscal verificar se a urna não aceitaria programas assinados com uma chave alternativa? Não uma chave qualquer, por suposto, mas uma chave específica, como uma porta dos fundos secreta, que só o fabricante ou pessoal interno conheceria e utilizaria para fins legítimos e específicos (configuração da urna, habilitação de programas de demonstração), mas que um fraudador interno poderia abusar para habilitar a execução de um programa fraudador na urna.

Não afirmo a existência de tal porta dos fundos, nem de fraudadores internos, pessoas ou programas. Não é esse o ponto. O ponto é que, num sistema puramente eletrônico, sem registro verificável manualmente em meio físico permanente, há partes críticas do processo que não são fiscalizáveis, que portanto requerem confiança cega em anjos que praticam atos invisíveis e se presumem desinteressados do resultado da eleição. Mas não temos anjos ocupando esses cargos, só humanos falíveis. Um sistema eleitoral robusto e confiável não pode conter tais processos obscuros, muito menos burláveis por pessoas em posições privilegiadas. Não pode prometer o que a ciência comprova que não tem como cumprir. Não pode desqualificar questionamentos legítimos sobre a necessidade de depositar confiança cega em agentes humanos nem em processos obscuros. Não pode se sentir ofendida, nem qualificar como inimigo da democracia, muito menos condenar por litigância de má-fé quem ouse questionar a necessidade de tal confiança cega, ou mesmo quem se recuse a depositá-la sem transparência plena e fundamentação cientificamente robusta. Confiança não se exige nem impõe: tentativas de imposição pedem desconfiança, por serem perigosamente autoritárias.

Esse tipo de atitude cética e questionadora da ciência, do “não aceite o que a autoridade lhe diz”, é também quase idêntica à atitude mental necessária para uma democracia funcional. Ciência e democracia têm valores e abordagens muito consoantes e não acho que se possa ter uma sem a outra.
— Carl Sagan

Questionar é a base da ciência. O que não se pode questionar, que não se pode submeter a um teste que confirme ou rejeite uma tese, é por definição não-científico. Mas se me assusta ver autoridades eleitorais, a grande imprensa e várias lideranças políticas respeitáveis embarcando no ufanismo da inquestionável (palavra com duplo sentido intencional) inviolabilidade do nosso processo eleitoral e endossando o negacionismo científico, além da ferocidade com a qual se têm suprimido questionamentos com fundamentação científica, apavora-me ver impérios coloniais, unidos na perseguição ao jornalismo digno do nome, pouco após admissão pública de apoio a golpes e tomadas ilegítimas de poder em vários países, inclusive o nosso, reforçarem publicamente a tese rejeitada pela ciência e por seus próprios processos eleitorais, quase ao mesmo tempo em que elites econômicas lançam um manifesto com lindas e importantíssimas palavras em defesa da democracia, misturadas com a promoção de um consenso forçado em torno da confiança cega num sistema eleitoral que desafia a ciência de forma autoritária, obscura e anti-democrática: vedando e punindo o questionamento, sonegando informação sobre processos notadamente obscuros, recusando medidas que viabilizariam fiscalização plena e tornariam visível e comprovável qualquer tentativa de fraude em larga escala, hoje invisível, e ainda assim exigindo plena confiança.

É inegável a existência de diversos interesses que, tendo uma chance, não hesitariam em fraudar nossas eleições. Vamos supor que alguém em posição de extrema confiança no tribunal eleitoral estivesse disposto a cooperar com esses interesses. Alguém envolvido na cadeia de custódia do programa da urna, entre a assinatura cerimonial e a gravação em cartões de memória para as urnas. Nessa posição, pode-se substituir o programa por uma versão modificada para adulterar votos, desde que sejam tomados alguns cuidados:

  1. a urna supostamente exige que o programa esteja assinado, mas desenvolvedores do programa são capazes de instalar e executar versões de teste, presumivelmente usando chaves alternativas para assiná-las. O fraudador vai precisar conhecer essas chaves, ou saber como desativar a verificação de chaves nas urnas. Lembro bem da ocasião, muitos anos atrás, em que foram detectadas modificações inesperadas em componentes básicos do sistema operacional da urna; foi marcante, porque eu jamais esperava ver o Jornal Nacional mencionar hashes e nomes de arquivos da biblioteca GNU libc. Já aconteceu, mas parece ter sido devidamente abafado para não contar como evidência de fraude.
  2. após fazer seu trabalho sujo, o programa modificado deve gravar o programa original no cartão de memória, de modo a não deixar vestígios em eventual investigação posterior. Cartões que possam não vir a ser usados na eleição, e portanto possam não vir a ser regravados ao final, devem ser preparados já contendo o programa original, para que eventuais investigações não encontrem adulterações.
  3. o programa modificado não pode desviar votos no teste de eleição simulada. Ele deve perceber sua ativação em dia e hora diferentes da eleição real, bem como modificações do relógio interno da urna que possam ser feitas para dificultar a detecção da simulação. (Lembra quando adiavam o início do horário de verão para não precisar reprogramar a hora das urnas?) Caso detecte a possibilidade do teste, o programa fraudador deve adiantar a restauração do programa original, tanto no cartão de memória quanto no sistema em execução.

Este é apenas um exemplo de cenário relativamente simples de ataque, que permitiria fraude indetectável em larguíssima escala: só escapariam as urnas usadas nos testes de eleição simulada. Este cenário específico pode até já ser coibido por medidas existentes, desde que os agentes-anjos envolvidos cumpram seus papeis. Existindo ou não tais medidas, eis aí um processo obscuro e não fiscalizável, que exige confiança cega num agente presumivelmente interessado no resultado da eleição e que, caso se trate de um fraudador interno, pode viabilizar fraude maciça, invisível e indetectável, sem possibilidade de comprovação a posteriori.

Ao mesmo tempo em que registro meu apelo para que agentes cumpram seus papeis com atenção a detalhes, chamo atenção para a fragilidade da nossa situação, enquanto sociedade, por depender da boa vontade e honestidade de algumas pessoas em posições chave, para que tomem medidas obscuras e não transparentes a fim de evitar o comprometimento de nossos votos. Não podemos, nem eleitores nem mesários nem fiscais, verificar independentemente se os programas instalados e executando nas urnas correspodem aos programas assinados cerimonialmente. O procedimento de verificação existente envolve conferência de números (hashes) impressos nos boletins de urna, comportamento que um programa adulterado poderia facilmente emular para se passar por legítimo.

Nós vivemos numa sociedade absolutamente dependente da ciência e da tecnologia, e ainda assim espertamente arranjamos as coisas de modo que quase ninguém entenda ciência e tecnologia. Isso é uma clara receita para desastre.
— Carl Sagan

Exige-se confiança cega no processo. Não se permitem questionamentos. Espera-se que o eleitor, que não entende de computadores, confie cegamente que a urna, um computador que sabe quem é o eleitor ao registrar seu voto (não precisa nem deveria), não esteja rodando um programa alternativo, a mando do coronel ou milícia local, que tome nota sobre quem tentou votar contra e quem merece continuar vivo para votar nas próximas eleições. Mesmo que haja medidas que pretendam dificultar ou impedir tais programas alternativos, se não forem públicas, transparentes, fiscalizáveis e compreensíveis por leigos, não conseguem assegurar o eleitor da segurança de votar conforme sua consciência, o que por si só já cria distorções inaceitáveis.

Se bem que talvez nem sejam necessários programas alternativos. Lembra quando uma equipe da UnB conseguiu descobrir como violar o sigilo do voto desembaralhando os registros eletrônicos de votação, no teste público? Minimizaram e abafaram o problema, alegando que só conseguiram porque tiveram acesso ao código, e, acredite quem quiser, que nem era esse o embaralhador que se usava na eleição real. Ora, as autoridades eleitorais e diversas entidades fiscalizadores têm acesso ao código, então, da primeira narrativa, pode-se concluir que elas conseguiriam violar o sigilo do voto. Da segunda, que a suposta auditoria que ajudaria a assegurar a confiabilidade do programa é uma farsa, já que não se dá sobre a totalidade do programa que efetivamente se usa. Nenhuma das duas possibilidades me agrada e pode até ser que ambas tenham sido verdadeiras e que continuem até hoje.

Agora, vamos supor que os resultados de uma eleição sejam brutalmente divergentes das pesquisas. Como questionar, como investigar e eventualmente comprovar fraude, se o programa que registrou e desviou votos não deixou vestígios da fraude? Percebe como o argumento de que jamais se comprovou fraude é limitado? Com os olhos vendados, nada se consegue ver. Atrás de portas mantidas fechadas, nada se pode ver.

Toda unanimidade é burra.
Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.
— Nelson Rodrigues

Uma vez estabelecido como verdade absoluta e inquestionável o consenso forçado de que o processo é inviolável, como sequer ser levado a sério no questionamento dos resultados divergentes? Como evitar ser equiparado a um negacionista da ciência difusor de notícias falsas? Nesse sentido, a dança entre Bolsonaro, a grande imprensa, as elites econômicas locais e os impérios coloniais internacionais pode ser coreografia ensaiada para preparar o terreno para um resultado tão inacreditável quanto irrefutável, uma vez que os meios de comprovação de fraude mediante verificação independente foram eliminados, e agora até adversários que poderiam encontrar razões para questionar legitimamente resultados suspeitos têm sido induzidos a endossar a confiabilidade absoluta do processo, podando preemptivamente suas possibilidades de vir a questionar o processo e seus resultados, futuros e passados. Ora, se até uma aparente confissão de fraude, por quem a teria promovido em benefício próprio, e portanto dela saberia, ao invés de suscitar uma investigação, é hoje ridicularizada e desqualificada pelo consenso forçado, como por reflexo e sem reflexão, quais as chances de qualquer suspeita de fraude ser levada a sério enquanto tal consenso forçado imperar? Esse processo de vacinação ideológica contra questionamentos claramente “é uma cilada, Bino!”

Não é que o registro em meio permanente não possa ser fraudado. É que esse tipo de fraude se dá no varejo, voto a voto, exigindo muitos cúmplices para fazer diferença, enquanto a fraude eletrônica se daria no atacado, com pouquíssimos envolvidos e, se bem executada, sem deixar rastros nem possibilidade de comprovação. Muito se tem feito para promover a confiança nas urnas, mas não para alcançar a confiabilidade do processo. Se fossem investigar a fraude confessa na eleição de Bolsonaro, em vez de desqualificá-la, investigariam o quê? Ante a inviabilidade de comprovação, nega-se e ridiculariza-se a possibilidade de fraude! Caímos como um patinho amarelinho.


Quanto vale a recomendação de verificar os boletins de urna? É uma etapa indispensável de fiscalização, mas ante a impossibilidade de contagem independente e a inviabilidade de confirmação independente de que a urna é controlada pelo programa correto, ficam faltando elos essenciais para garantir a lisura do processo. Os boletins são impressos pelo próprio programa que, no momento da impressão, já teria desviado os votos. Ironicamente, depende da mesma impressora que o consenso forçado defende não ter como funcionar de maneira confiável.

Duvidar e questionar é preciso, até que as autoridades eleitorais deixem de insistir na confiança por decreto e no ufanismo acéfalo do negacionismo científico. Eleição sem registro em meio físico é fraudável de forma invisível e incomprovável. Lembre-se da frase de propaganda repetida à exaustão: nunca houve comprovação de fraude. Joseph Goebbels ficaria orgulhoso. Não podemos permitir que o desejo de rejeitar um questionamento mal fundamentado de um autoritário negacionista e desqualificado instale um consenso forçado quase geocentrista medieval em seu autoritarismo, negacionismo científico e ferocidade persecutória, tanto aos questionamentos legítimos quanto às demandas por registros permanentes que nos trariam confiabilidade fiscalizável e verificável contra fraude silenciosa em larga escala.

Falácias à parte, voto registrado em meio físico que não identifique o eleitor (papel impresso ou perfurado ou preenchido com caneta ou por máquina desconectada com uso livre não identificado, na segurança e privacidade do ambiente de votação; há várias possibilidades), em seguida depositado noutra máquina (a urna eletrônica) para leitura automática e confirmação (ou não) do voto, que uma vez confirmado fica registrado tanto no meio digital quanto retido na urna (para permitir recontagem manual real e para evitar uso como comprovante violador do sigilo), alia toda a praticidade e agilidade de apuração da nossa eleição com a possibilidade de contagem manual amostral para verificação estatística dos boletins de urna. Sem impressora, sem comprovante, sem atraso e, mais importante, sem processos obscuros, sem fraude e sem dúvida. Por que não? Por que tamanha oposição organizada a meios seguros? Por que tamanha insistência em tornar inquestionável o que a ciência reconhece como inviável? Não precisa confiar em mim. Basta pensar a respeito, questionar e debater livremente. A quem interessa que não seja assim e por que motivos?

O golpe das urnas inquestionavelmente infalíveis me parece praticamente já consumado; se algum outro golpe foi ou será levado a cabo através delas, não saberemos, pois não há meios para confirmar. Como então confiar cegamente no processo vulnerável a fraudes internas? Ainda mais agora, que é conduzido por magistrados que endossaram, defenderam e apoiaram a maior fraude eleitoral da história desse país, hoje reconhecida como LafaJuta? Ao vetarem o então favorito, efetivamente chocaram o ovo da serpente. Arrependeram-se, ou estão dispostos a repetir a dose? No balé coreografado para reforçar esse consenso, quem pode acabar dançando somos nós.

Há uma diferença muito grande entre saber e acreditar que se sabe.
Saber é ciência, acreditar que se sabe é ignorância.
Mas cuidado: saber mal não é ciência.
Saber mal pode ser muito pior que ignorar.
— Antônio Abujamra