.Por Christian Ribeiro.

A confirmação pela Organização das Nações Unidas, através de estudo referente aos anos de 2019-2021, de que o Brasil voltou ao mapa da fome, é a famosa notícia que oficializa o que todos já sabiam, o que todos já percebiam…

(foto andréa farias -ccl)

O país do agronegócio, das monoculturas e campos informatizados, das plantações para exportação, do rural como campo de reprodução de nosso capital especulativo, tornou-se exemplo de uma agricultura que não semeia para o desenvolvimento da nação, mas para fomentar uma concentração de renda e riquezas que aumenta cada vez mais a miserabilidade e morte de seu próprio povo!

É o sucesso do desmonte dos conjuntos de políticas públicas que o Estado brasileiro, bem ou mal, vinha desenvolvendo desde o governo de Itamar Franco – que se consolida nos governos tucanos e sofre uma radicalização e ampliação nos governos petistas de Lula e Dilma – com a diminuição dos investimentos e da capacidade de planejamento para a distribuição de alimentos as populações mais carentes, com políticas diretas de combate a fome, iniciada com a crise política do último mandato do governo Dilma em 2016, motivado pela crise econômica mundial e política que minava a sua gestão, abriu caminho para uma discursiva de que era necessária uma “mudança” nos caminhos gestores do país.

Uma opção política economicista de cunho neoliberal, em que toda forma de planejamento ou ação de cunho estatal voltado a atender as necessidades das populações mais carentes, passa a ser visto como causa da crise econômica do Brasil. “Menos Estado na economia”, maior “liberdade econômica”, “mais empreendedorismo”, que tudo iria melhorar, pela regulação natural do mercado e pelo aumento direto da renda dos menos favorecidos.
E essa lógica se mostra cada vez mais falaciosa e cruel, com o aumento dos índices de exportação e venda do setor agropecuário nacional, recordes de produção e lucro em todas as suas áreas ao mesmo tempo em que os índices sociais gerais do país diminuíam ano após ano! Uma realidade perceptível a quem não tampou seus olhos ou ignorou a sua sensibilidade ante as cenas e notícias cotidianas que nos rondam. Estimulada por um projeto político – vitorioso nas eleições presidenciais de 2018 – que pouco se importa com o bem-estar dos socialmente menos favorecidos, que age com desdém, quando não ódio e desprezo, ante aqueles aos quais não nutre nenhuma empatia e muito menos respeito em relação aos direitos sociais mais básicos destes.
Exclusão social e econômica que se tornou mais explícita com o advento da pandemia COVID-19 e a inércia do governo federal em desenvolver políticas macros e articuladas com as demais esferas administrativas estatais e setores produtivos, visando interferência efetiva, no sentido de melhoria, a milhões e milhões de famílias brasileiras. Em vez disso, um executivo nacional que se negava a falar sobre a fome no país, procurando atacar e desacreditar toda contestação que se desse em contrário à sua “lógica” perversa e distorcida de realidade. Que festeja e celebre a potência do agronegócio, da influência cada vez maior que esse ramo da economia acaba alcançando em vários setores da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que se condena as produções agrícolas de cunho familiar ou de cooperativas, que objetivam na construção de uma outra relação comercial, menos agressiva e mais inclusiva, que não se baseie no aumento de seus lucros e dividendos, sem se importar com o mundo a sua volta!
São 60 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, atingidos pela sina da fome, largados a própria sorte, ao próprio destino… Como demonstra a pesquisa, pobreza e fome são fenômenos sociais diferentes, mas intimamente relacionados. Quanto mais aumenta a pobreza, mais aumenta o número de famélicos e mais nos afundamos enquanto nação, enlaçados por nossas diferenças sociais que parecem ser insuperáveis.

Sociedade perdida – ou iludida? – em propagandas ou reportagens laudatórias sobre sermos uma potência em que “tudo é agro” e cabendo a você, por seu esforço próprio e força de vontade, conseguir desfrutar das riquezas que estão postas a quem corre atrás delas! Com isso, eu retiro do governo qualquer responsabilidade pelas mazelas sociais que assolam o país! E ainda reforço o ideário da meritocracia, para de forma sutil, infligir a percepção de que a fome só atinge a quem fica esperando as coisas a “cair do céu” ou que esperam sobreviver à custa do Estado. Dessa forma mascarando e anulando toda crítica que possa vir a ser direcionada aos grupos econômicos e políticos que sustentam e legitimam a atual gestão presidencial.

E enquanto isso, dia a dia, a fome se torna uma constante em nossa sociedade. Comerciais em que a comida parece querer pular das telas, de tão fartas e abundantes, para a realidade das panelas vazias e sem gás das periferias – geográficas/urbanísticas e sociais – brasileiras.
Onde existe fome, ocorre miséria, dor e morte! Se reproduz a desesperança e a perca da fé em dias melhores. Só existindo o conformismo e pessimismo. Não há mais força ou perspectiva por alteridades e mudanças, mas só esperar e torcer para tudo não ser tão ruim ao seu final…
País que possuí uma elite que não investe em políticas públicas, que despreza políticas sociais, que demoniza o papel desenvolvimentista e construtor de políticas de combate às desigualdades e miséria do Estado, acaba ficando refém dos ventos do destino. Que comumente nunca assopram favoravelmente para as populações mais carentes ou oprimidas.
Não sendo por isso surpresa o que hoje vivemos, dias de miséria visível, palpável a qualquer canto do país, a qualquer hora e momento do dia! Qual a lógica em você ter uma produção agropecuária que sozinha daria para alimentar o mundo sozinha, mas que nem se interessa com a segurança alimentar de seu próprio povo? É o lucro desmedido e sem pudores, acima de todos e qualquer coisa? É essa a noção de progresso e modernidade prometida ao país? Ou é a consequência do golpe implementado em 2016 e de sua demonização ao que era definido como práticas de assistencialismo barato, de “bolsas esmolas” que inibiam liberdade empreendedora do povo brasileiro, que tinha como exemplo a ser seguido o sucesso do agronegócio como forma de sucesso do espírito trabalhador de nossa população? A visão elitista, racista e discriminatória de nossa sociedade imposta, via grandes mídias, para legitimar a diminuição do alcance estatal e assim abrir caminho para o desmantelamento de seu papel de agente universal e provedor de direitos, inclusive de garantir comida na mesa do povo! Algo tão básico e fundamental, mas que em nossa falsa res pública acaba parecendo algo tão revolucionário e absurdo! No Brasil de 2022, lutar e reivindicar por comida no prato para todos, em especial aos mais pobres, virou coisa de comunista! Quando na verdade é atestado de civilidade, cidadania e, acima de tudo, humanidade!
Mas como humanismo passa longe dos que hoje estão no poder, parece que só nos resta o desespero ante o absurdo de termos a fome como algo recorrente, normalizado e naturalizado aos cotidianos de nossas relações sociais. Sendo essa a tragédia que nos abate e cobra o seu preço, minando em nosso presente as chances de construção de um outro futuro, de um outro país! Em que a fome e suas dores não nos sejam marcas a cortar em ferro quente nossas carnes, nossas almas!

Uma sociedade tão surreal em suas práticas de normalizar o inaceitável, que parece que mesmo com 15 milhões de pessoas passando fome, sendo que 4,1 milhões sofrendo de fome crônica, nada disso importa! Pois o que vale é o Brasil ser agro! E o agro é pop! Se fartando em seus royalties e opulência, ao som de Gustavo Lima, enquanto a fome abraça cada vez mais forte e tenazmente o seu povo1, num acalento, numa espiral de morte sem fim!

O agro é pop e pouco se importa com você! Ele sussurrou em seus ouvidos a lorota de que no novo Brasil você seria convidado de honra de banquetes e mais banquetes, que iria se empanturrar de tantas comidas e delícias. Sendo que na verdade, lhe fizeram de palhaço, nem permitem que você adentre a sala de jantar para catar os farelos que sujam o chão…
Para eterna alegria e deleite dos sinhôs e sinhás dessa Casa-grande chamada Brasil, que nunca se importaram, e continuam a não se importar, com a fome nas senzalas! Por que haveria agora de ser diferente?

Referências Bibliográficas:
Brasil volta ao Mapa da Fome das Nações Unidas. In: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/07/06/brasil-volta-ao-mapa-da-fome-das-nacoes-unidas.ghtm, acessado em 06/07/2022.


Christian Ribeiro mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.