.Por Ricardo Corrêa.

O acesso a história de homens e mulheres negros que lutaram contra o sistema sempre foi um desafio, pois o racismo procura não dar visibilidade aos revolucionários para que não provoquem inspiração e sirva de exemplo aos movimentos negros. No entanto, como somos incansáveis e não nos rendemos ao conhecimento cedido pela branquitude, seguimos descobrindo através de pesquisas e difundindo as experiências dos que nos antecederam.

(imagem reprodução)

João Cândido Felisberto, o “Almirante Negro”, é um exemplo desses revolucionários ausentes na educação institucional (escolas e universidades).  Nasceu no município de Encruzilhada do Sul (RS), no dia 24 de junho de 1880. Ainda adolescente, iniciou na carreira militar onde passou pelo Arsenal de Guerra do Exército, Escola de Aprendizes de Marinheiro e 16ª Companhia da Marinha; no geral, foram quinze anos de altos e baixos na carreira. Naquela época, inúmeros negros eram marujos, e por conta da recente abolição da escravidão, a mentalidade escravagista estava presente. Exemplo disso eram os tratamentos dispensados aos negros: alimentação precária, múltiplos castigos, incluindo as chibatadas, entre outras coisas. A violência institucionalizada dava o tom das relações, entre superiores e subalternos.

O Almirante Negro, mesmo com todas as dificuldades, construiu um repertório invejável de conhecimentos a partir das navegações pelos litorais e continentes, adquirindo admiração e respeito por muitos dos seus pares. O escritor Álvaro Pereira do Nascimento escreveu “João Cândido estava pronto para atuar em navios movidos à vela, a vapor e mistos. Tinha experiência em batalhas, na logística de municiamento e deslocamento de tropas. Era especializado em artilharia e faltava-lhe a formação de timoneiro”.

No entanto, as constantes violências fomentaram o sentimento de revolta nos marinheiros. O estopim ocorreu no dia 16 de novembro de 1910, depois que o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi condenado a 250 chibatadas. Sob a liderança de João Cândido, dois mil e trezentos marinheiros organizaram um motim no dia 22 de novembro. Destemidos e estratégicos, assumiram quatro navios de guerra e apontaram os canhões para a capital do Brasil, na época o Rio de Janeiro. A exigência era de que a Marinha não aplicasse as chibatadas como punição, exigiam o aumento dos soldos e implantação de um plano de carreira, mas caso não fossem atendidos bombardeariam a capital. Abaixo, um trecho da carta dos marinheiros endereçada ao presidente  Hermes da Fonseca (1855-1923):

Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira, a falta de proteção que a Pátria nos dá; e até então não nos chegou; rompemos o negro véu, que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo. Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os oficiais, os quais, tem sido os causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da Pátria, mandamos esta honrada mensagem para que V. Excia. Faça aos Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilita, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha Brasileira (…)1

Temeroso pelo que poderia ocorrer naquele momento, o governo cedeu às exigências em 27 de novembro. Entretanto, exceto a abolição da chibata, o presidente descumpriu o acordo e assinou um decreto que permitia à exclusão da Armada caso a presença de qualquer indivíduo fosse vista como inconveniente. Isso resultou em retaliação aos marinheiros: expulsões, prisões, trabalho escravo etc. Para se ter uma ideia, ocorreu 1216 expulsões da Marinha, quase a metade dos que se insurgiram. Esse episódio ficou conhecido como Revolta da Chibata. Depois disso, João Cândido ficou preso em condições degradantes no Batalhão Naval, na Ilha das Cobras, em seguida o consideraram louco. Foi internado no Hospital Nacional dos Alienados, e, posteriormente, o mandaram novamente para a prisão. No dia 30 de novembro de 2012, conquistou a liberdade, mas também a expulsão dos quadros da Marinha. Outras dificuldades, econômicas e sociais, impuseram-se no restante de sua vida. Em 06 de novembro de 1969, internado no Hospital Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, um câncer no intestino o conduziu à morte.

De todo o seu legado, compreendemos que injustiças devem ser enfrentadas coletivamente, com estratégia e organização. Nesse sentido, não faltam motivos para nos rebelarmos, uma vez que o racismo continua impondo a violência contra a população negra, aumentando o número de injustiças sociais e empilhando corpos negros nas prisões e cemitérios. Lembremos das palavras de Malcolm X “não estamos em menor número, estamos desorganizados”. Agora, só depende de nós.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MOREL, Marco. João Cândido e a luta pelos direitos humanos. Livro fotobiográfico. Brasília: Fundação Banco do Brasil, 2008. v. 1.

NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. João Cândido, o mestre sala dos mares. Rio de Janeiro. 2020.

1 As negociações e o desfecho da Revolta

Disponível em: < http://200.144.6.120/exposicao_chibata/as_negociacoes_e_o_desfecho_da_revolta.

php#:~:text=N%C3%B3s%2C%20marinheiros%2C%20cidad%C3%A3os%20brasileiros%20e,do%20patri%C3%B3tico%20e%20enganado%20povo.>. Acesso em: 21 jun. 22