.Por Luís Fernando Praga.
Há pouco mais de cinco anos escrevi, nesta coluna, “O Dia do Veterinário”, e, agora, 09 de Setembro passado, decidi escrever esta sequência, com um enfoque muito diferente do texto original, nascido da reflexão sobre a frase abaixo, que alguém disse a respeito dessa, que é a minha profissão:
“A Medicina é a parte da Veterinária que estuda o ser humano”.
Pois é, segundo a ciência, a gente também é bicho.
Somos classificados, zoologicamente, da seguinte forma resumida: Reino: Animal (como a lombriga); Filo: Chordata (como a serpente); Subfilo: Vertebrados (como o urubu); Classe: Mamíferos (como o jumento); Ordem: Primatas (como o lêmure); Família: Hominídeos (como o orangotango); Gênero: Homo; Espécie: sapiens…
Apesar do “sapiens” (detentor da sabedoria), nossa espécie é, de longe, a mais cruel com outras espécies, a que mais destrói a Natureza e a única que mata a troco de um tênis, de uma rusga no trânsito, de um soldo, de uma diferença cultural, de um concorrente a menos no mercado e por inúmeros motivos torpes, pelos quais os animais de outras espécies não consideram conveniente matar.
Há também, entre nós, os sapiens, certos exemplares que não aceitam essa classificação científica, pois não se veem como animais, mas como as crias sagradas de uma entidade mística, onipotente, onipresente e onisciente, capaz de realizar milagres jamais vistos, e que os protege, mas não protege a todos, pois nem todos merecem tal proteção, e aí podem ser tratados como bichos.
Como veterinário, sou obrigado a informar que nenhum ser místico nos protege dos perigos que ameaçam nossa espécie, assim como não protege a zebra do leão, o passarinho do gavião, a foca do tubarão, o rato da serpente, nem a serpente da gente, nem a gente da serpente: para isso é preciso prudência e soro antiofídico.
Funciona assim: para estarem protegidos, os animais de hábitos solitários (cobras, a maioria dos felinos, rinocerontes, moluscos…) precisam se camuflar, se esconder em tocas, estar saudáveis, atentos e rápidos para a fuga. Já, os animais sociáveis, como os primatas, ovelhas, cães, abelhas e roedores, dependem de uma boa estrutura social, um bando, um grupo que os torne mais fortes e aptos a se protegerem dentro da coletividade do que se estivessem solitários.
Todos os animais, exceto alguns seres humanos, sabem instintivamente, que, se não se cuidarem, nenhuma proteção cairá do céu; e disso depende sua sobrevivência.
Uma de nossas muitas imperfeições é esse apego a crenças que diminuem nossas chances de sobreviver, que nos segregam enquanto seres sociáveis e que nos levam a subestimar o valor de outras vidas, mas temos , também, características positivas que ainda não nos permitiram chegar à ruína da extinção.
Um de nossos trunfos, do qual muitos de nós preferem abrir mão, é a consciência de nossa ampla ignorância. Isso se mede a partir de tudo o que nos falta para deixarmos de ignorar, como os grandes mistérios inexplicados, a origem do universo, suas dimensões, as doenças incuráveis e as guerras, em que seguimos nos matando, sem qualquer justificativa histórica que avalize tanto ódio e tantas mortes como ações dignas de uma espécie “tão evoluída”.
Na verdade, somos tão ignorantes que demos, a nós mesmos, a prepotente alcunha de “animais racionais”, o que, a bem da verdade, é um apelido nada racional, só um apego à egocêntrica ideia de que somos superiores aos demais.
Muitos dos “animais racionais” que não se entendem como primatas, mas como filhos únicos do Divino, ungidos por uma graça inalcançável aos que são “só filhos de gente”, se alimentam da ilusão de poder e proteção conferida por seu Criador superpoderoso. Esses nossos irmãos vivem de uma forma antinatural, que não é vista em qualquer outra espécie: presos ao medo de desagradarem o Pai, limitados por dogmas inventados por alguém de antigamente, escorados por suposições improváveis, sem qualquer respaldo científico (biológico, histórico, antropológico ou sociológico).
Essas pessoas, como todos os bichos do Planeta, também morrem no final, como a zebra morre e como o leão morre; mas, diferente de todos os outros bichos, essas pessoas vivem na certeza de que seu Pai lhes reserva, para depois da morte, o melhor lugar possível! Outra certeza é a de que quem não se comportar conforme a vontade de seu Deus irá para o inferno, o pior lugar possível.
Quando afirmo que tais pessoas “vivem a certeza”, é exatamente isso. Mesmo que não haja qualquer comprovação a respeito de suas crenças (muito pelo contrário, há inúmeras comprovações de charlatanismo e manipulação humana através da exploração da fé), isso pouco importa: seus cérebros colocam suas suposições mais absurdas na mesma “gaveta” das certezas, de onde, na maioria das vezes, elas jamais serão removidas.
O problema é que há, no mundo, milhões de deuses (e certezas) conflitantes, criados pela imaginação humana, adorados e defendidos de formas diferentes, por pessoas diferentes, cada um com sua “vontade própria”.
A crença num pai superpoderoso, capaz de mandar as almas de nossos inimigos para o inferno e as nossas almas para o paraíso, cria seres humanos totalmente descomprometidos com o desenvolvimento social, mas muito comprometidos com a vontade do seu pastor, que é quem dita a vontade do deus.
A prerrogativa de ser filho de uma figura tão poderosa e protetora tem criado gente acomodada no misticismo e totalmente alheia às reais necessidades do ser humano, uma espécie sociável, dependente do bem estar social. Isso tem se mostrado uma barreira quase intransponível para a compreensão e aceitação da natureza humana. Falta-nos humildade para aceitarmo-nos como semelhantes, como meros bichos em evolução, sem qualquer conotação pejorativa.
O “filhinho do Papai” nunca é humilde! Seu pai é sempre o melhor pai; e ele, sempre o melhor filho. Ele sempre pode tudo e não tem mais nada a aprender, já lhe bastam sua fé na providência divina e a certeza de que quem não segue a mesma fé é menos digno, é o anti Deus, o inimigo a serviço do demônio, a afronta à moral, o espírito atrasado e pecador, o adversário que deve ser combatido em vida, em nome de Deus, para que siga logo para as profundezas do inferno e deixe em paz o bem-aventurado rebanho do Senhor. E o filhinho do Papai virou um fanático…
O advento de deuses superpoderosos, repletos de filhos fiéis, orgulhosos e intransigentes, mas com vontades e interesses diversos, tem gerado desavenças brutais dentro da espécie humana, ódio, segregação e guerras por motivos que não sensibilizam nenhuma outra espécie a lutar, matar ou morrer.
Mas somos nós os racionais…
Odiamo-nos por motivos econômicos, religiosos, políticos, culturais e sexuais, tudo porque uns poucos exercem o poder da manipulação sobre legiões de “fiéis”, incitando à repulsa, à não aceitação das diferenças e à necessidade de se conter e destruir o “inimigo”, mas, jamais sugerindo a tolerância.
Tornamo-nos insensíveis e indiferentes aos tormentos da miséria, da injustiça social e da violência, desde que eles não recaiam diretamente sobre nós, quando passamos a aceitar que tudo está nas mãos de Deus; e, se está nas mãos de Deus e alguém está sofrendo, Deus sabe o que faz: o infeliz mereceu.
A ignorância quanto à (primata) natureza humana, a ignorância científica (e a História também é uma ciência) é o que permite a fácil manipulação de um público, seja num show de mágicas, seja num exorcismo no “templo de Salomão”, seja no convencimento de que se deve lutar até a morte pelos generais, seja no Jornal Nacional, seja num golpe de estado contra toda uma nação.
Logo, aquele que depende de muitos submissos para concretizar seus planos depende é de gente ignorante, que questione pouco, que repila a ciência e que aceite o improvável; gente que perdeu o trem da história, gente alheia e equivocada, mas cheia de certezas. Resumindo, ele precisa de fanáticos dispostos a tudo, dispostos a “vestir a camisa” do absurdo até as últimas consequências, sem jamais se darem conta.
Na política, o líder disposto a formar um exército de alienados precisa cultivar a ignorância nas escolas e nas igrejas, precisa de indivíduos orgulhosos do pouco que têm, certos de que já sabem tudo o de que precisam saber, certos de que Deus está com eles, mas não com os outros. Precisa criar uma sociedade avessa ao conhecimento, apegada aos dogmas e orgulhosa de ser ignorante.
Nenhum deus deveriam nos cegar para nossas necessidades sociais, como não segou ao Papa, a Martin Luther King, a Jesus e a tantos humanos capazes de crer em Deus e também na justiça social a partir da luta de classes.
Nenhum homem e nenhum deus, tampouco o deus dinheiro ou o deus poder, deveriam ser motivo para que nos voltássemos contra nossos semelhantes, pois a consciência de espécie mostra que isso é lutar contra si próprio, contra a evolução, contra a sobrevivência da humanidade… É irracional, é suicídio.
Afirmo, finalmente, que, como veterinário, lidando diariamente com o bicho homem, sempre me deparo com quem se orgulha em dizer que gosta mais de bicho que de gente. Já tive o desprazer de ouvir, da boca de um notório “protetor de animais”, que “o marginalzinho não valia a bala que a polícia usou pra matar.” Um caso doloroso e claro de uma certeza ignorante e assassina.
Então, como amante dos animais e da profissão que me mantém apaixonado há mais de 25 anos, alerto que, se você é daquela gente que gosta mais de bicho que de gente, você é só outra vítima de uma de nossas mais cruéis ignorâncias. Toda gente é bicho, é animal, e todo animal merece respeito, até os mais ignorantes, vítimas da má educação, do desmonte da ciência, da informação falsa e maliciosa.
É preciso que fique claro: não somos melhores que nenhuma outra espécie, somos apenas outros, naturalmente diferentes, figurando num patamar evolutivo que está longe de ser um limite e que muito já evoluímos graças ás lutas por conquistas sociais.
Entretanto, deve estar claro, também, que, aqueles que semeiam a discórdia dentro da própria espécie, pregam a violência, servem a líderes odiosos, que apegam-se à manutenção das coisas como estão, os avessos à ciência, os temerosos de que possamos, um dia, enxergar verdades que ainda não enxergamos, e acovardados diante da possibilidade de que tais verdade possam mudar radicalmente o nosso modo ver a nós mesmos, de conviver em sociedade e de interagir com o planeta, esses, sim, estão entre os seres menos evoluídos e mais perniciosos de nossa espécie.