.Por Helena Lima.

Nossa sofrida e complicada existência, na prática, apoia-se em três pilares: tempo, espaço, zelo pessoal. Como lidamos com nosso tempo? Como nos deslocamos pelo espaço físico? Que espaços virtuais criamos e orbitamos? Como cuidamos de nós mesmos? Nessas tarefas todas, como nos sentimos?

Em 1984, foi lançado o filme Um Rapaz Solitário (The Lonely Guy), de Arthur Hiller). Classificado como “comédia romântica”, ele traz, na forma de humor, cenas e situações absolutamente dolorosas para quem já viveu ou se sentiu solitário. Por exemplo: quando o protagonista (interpretado por Steve Martin) chega a um restaurante e pede “mesa para um”, todos do recinto ficam em choque. Um holofote ilumina apenas o rosto do ator enquanto o maître, estupefato, responde: “Mas… só pra um?”. Outra cena tragicômica acontece durante uma “festa”: o solitário protagonista aumenta o som da música e preenche a sala com grandes bonecos de papelão – todos voltados para a janela, contra a luz, de tal modo que as pessoas da rua, ao olhar para a janela, enxergam o que parece ser uma animada festa.

É fácil identificar-se com tais cenas, personagens e situações. No entanto, existe uma diferença entre estar numa multidão, numa relação a dois, num grupo, numa viagem, ou mesmo numa festa, e sentir-se sozinho e angustiado (“Angústia é o afeto que não engana”, disse o psicanalista Jacques Lacan), e estar em casa, lendo, escrevendo, planejando um passeio, ou mesmo viajando, mas se sentindo bem, disponível para si mesmo e para o mundo. Essa é a diferença entre a solidão (dolorosa) e a solitude (serena).

A solidão angustiante é marcada pelo tédio. Não importa onde, com quem, fazendo o quê. Aquele sentimento bate e não tem nome ou sobrenome. Está ali. Implacável. Alguns recorrem à geladeira, outros ao bar ou às redes sociais. O movimento, quase desesperado, é de sair daquele estado de espírito e se ocupar, ou melhor, preencher “um buraco”. Em geral, o efeito de satisfação dura pouco e dá-se início a uma nova busca. O tédio é a matriz de todas as más decisões que se toma na vida. É o tédio, em geral, que provoca as separações e os afastamentos.

Já a solitude, ou a alegria de cuidar de si, a possibilidade de estar com alguém em especial, ou com os outros, a vontade e a disposição para ir e vir, tem outra cor. Posso morar sozinho, não ter um carro, mas me deslocar pela cidade, pelo país e pelo mundo, aberto às possibilidades. Posso estar em boa companhia, posso ouvir música. Solitude é poder, enquanto solidão é dever. E, em geral, solidão é estar sempre em dívida.

A ESCOLHA É SUA

Curiosamente, solitude não é uma palavra muito popular. Quase não a lemos ou ouvimos. É uma palavra silenciosa. A tarefa de cuidar de si é, sem dúvida, a tarefa mais complicada que precisamos realizar na vida. Cuidar do corpo, da alimentação, da limpeza, do que vestimos, das alterações que percebemos. Cuidar das dores visíveis e das invisíveis. Trabalhar, estudar, produzir, construir. Dar conta das atividades, dos projetos inacabados. No entanto, no atual contexto, tornou-se imperativo executar todas essas ações de maneira feliz e ainda ser bem-sucedido no trabalho, nas amizades e nas relações amorosas.

Ou seja, resta pouco espaço ao sofrimento, ao “estar só”, à angústia da solidão. Até porque, nos mínimos espaços em que os sentimentos difíceis aparecem, sempre há um “remedinho”, uma compra a fazer, um dízimo a pagar, alguma coisa “a ser feita”. Viver é trabalhoso. Ou melhor: dá trabalho cuidar de si mesmo.
E como não há curso que nos ensine isso, em geral, atribuímos a outros essa árdua tarefa. Terceirizam-se especialistas, remédios e líderes religiosos. Se der certo, comemora-se. Mas, se der errado, a culpa é sempre do outro. Então, como sair desse círculo vicioso? O psicanalista Sigmund Freud tinha uma frase: “Qual sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?”. Ou seja, nesse buraco onde você entrou e de onde você se vê, qual foi sua participação para cavá-lo? Porque a solidão pode ser a contrapartida de uma aposta que deu errado.

PERDAS E GANHOS

Sentir-se só junto a alguém com quem se dividem lençóis pode ser uma das piores experiências do ser humano. Fica fácil culpar o outro: “Fiz tudo por ele ou por ela”. Fazer tudo pelo outro pode ser uma forma de querer enganar a solidão. Responder por seus atos e escolhas parece tarefa simples, mas não é. Muito mais fácil atribuir ao outro, ao demônio, à inflação, ao país.

Estar só implica sentir-se capaz, livre, em movimento. Dono da possibilidade de estar aqui e ali, com ou sem outras pessoas. A solidão é a armadilha de uma prisão cujas grades foram também erguidas por escolhas e apostas. Sair da solidão e construir sua própria solitude é estar só e bem. Depende de autoconhecimento, de alguma dose de humor e alegria. Acima de tudo, depende de saber de si e de não delegar essa tarefa a outros.

ESTAR SÓ IMPLICA SENTIR-SE CAPAZ, LIVRE, EM MOVIMENTO. DONO DA POSSIBILIDADE DE ESTAR AQUI E ALI, COM OU SEM OUTRAS PESSOAS

Quando perdemos alguém que amamos muito, por separação ou por morte, nem sempre ficamos solitários. Porém, há que se ficar consigo para poder elaborar o luto, cuidar das feridas e seguir em frente. Estar consigo pode ser uma experiência de solidão insuportável, como também pode ser usufruir da melhor companhia.

Como psicanalista, acompanhei muitas pessoas em sofrimento agudo: diagnósticos de doenças graves, mortes de pessoas amadas, separações, perdas de emprego. Em geral, chegavam (e chegam) com tanta dor que mal conseguem dar nome ao que sentem. Como paciente, também já me deparei com meus próprios sofrimentos.

Nessas situações, há um esforço para identificar possibilidades de integração do sofrimento, de redes de apoio e de suporte. Sem aguardar uma resolução mágica, nem culpar outros pelo que se está passando, mas enxergando sua responsabilidade em jogo. A boa companhia estimula um autocuidado e ela pode ser a gente mesmo. Reconhecer a cada dia o próprio estado de espírito já é um grande passo para o zelo pessoal.(Da Revista E)

Helena Lima é psicanalista, bióloga e psicóloga, consultora da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) nas áreas de Aids, drogas e tuberculose. Autora de Nem Tudo É Doença (Iglu Editora, 2010), entre outros livros.