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Os sonhos que morreram em Orlando

Por Guilherme Boneto

A bandeira do arco-íris, símbolo do orgulho LGBT; nosso luto se transformará em luta

De todos os horrores que você vê diariamente pela vida, qual deles lhe tira o sono?

Não é assustador imaginar que a maldade se tornou absolutamente banal? Poucas coisas nos chocam a ponto de incomodar. E em meio às notícias ruins que surgem a todo instante, o atentado contra a boate gay em Orlando, ocorrido na madrugada do último domingo, ainda não me devolveu a tranquilidade.

A despeito de todos os defeitos que possam ter em seu sistema político, os Estados Unidos são um grande país. O sistema turístico criado pelos americanos é formidável, e graças a ele a cidade de Orlando é conhecida no mundo todo; lá se encontram os quatro parques da Disney e seus vários hotéis “onde os sonhos se realizam”, como anuncia o slogan disposto na rodovia que leva ao complexo. De fato Orlando é um local encantador, e por uma ironia do destino era exatamente lá que estava situada a boate Pulse.

O local do atentado é simbólico para a comunidade LGBT. Quando uma pessoa movida pelo ódio e fortemente armada entra num determinado local para matar, sonhos são rompidos. E quando isso ocorre num lugar como Orlando, na mesma Orlando que nos evoca à perfeição e à infância, aos simbolismos e aos sonhos, todo o Ocidente se questiona com muita razão onde estamos errando. É bem verdade que toda e qualquer chacina deveria nos aterrorizar, porque nenhuma vida humana vale mais do que outra. Mas na qualidade de potência econômica e cultural, os Estados Unidos nos influenciam diretamente e estão mais próximos da nossa realidade. É um caso que assusta, atemoriza e choca de forma profunda. Poderia ter sido na casa noturna que eu frequento. Poderia ter sido com um amigo, com um familiar, com um conhecido – ou com vários deles. Pode acontecer comigo e com você amanhã.

Omar Mateen, o atirador, era um jovem cidadão americano, muçulmano e descendente de afegãos, mas nem o Afeganistão e nem o Islã são por si só suficientes para explicar o ódio que o moveu. Há quem afirme que ele próprio era um frequentador eventual da boate Pulse e que mantinha um perfil em um aplicativo de encontros sexuais para homens gays. Seria ele, portanto, um jovem com inclinações homossexuais fortemente reprimidas? Não podemos afirmar com muita certeza. Há também quem aponte ligações do atirador com o Estado Islâmico – ele seria um “lobo solitário”, um admirador da organização terrorista disposto a atacar. Por enquanto, contudo, as autoridades não confirmam a teoria.

Parece muito claro, entretanto, que reprimir a própria sexualidade é um ato de consequências devastadoras para qualquer ser humano. O que nos importa saber é quem alimenta o ódio e a homofobia num país como os Estados Unidos da América, que se pretendem defensores da liberdade como princípio fundamental, um país cujo presidente se declara abertamente favorável aos direitos LGBT, uma nação que se encontra em constante transformação apesar de seus muitos problemas. Omar saiu de casa na madrugada de domingo com duas armas a acompanhá-lo, as armas que, nos Estados Unidos, ficam expostas na vitrine de qualquer supermercado como se fossem uma prateleira de queijos. Ao exterminar sem qualquer piedade 49 pessoas, ele tentava como uma última atitude extravasar seu ódio homofóbico. Executado pelos policiais responsáveis pela operação, o jovem talvez imaginasse que seu último ato tivesse inestimável valor. O que Omar conseguiu, porém, foi destruir muitos sonhos. O sonho da liberdade de amar e viver livremente e em paz a própria sexualidade, os sonhos de muitas vidas a serem vividas, de famílias que foram mutiladas, de uma sociedade com o desejo intrínseco de ser justa, igualitária, movida pela paz, pela convivência e pela compreensão. Temporariamente ou não, Omar Mateen nos tirou a paz.

Para a comunidade LGBT, fica um misto de péssimos sentimentos. Como uma casa noturna voltada ao público gay, a boate Pulse era um refúgio de tolerância, um local onde pessoas do mesmo sexo podiam se dar as mãos, demonstrar afetividade, conviver tranquilamente sem o risco de serem agredidas, de forma verbal ou física, como ocorre em qualquer outro local público. Há muitos espaços assim mundo afora. O afeto em público, tão banal para qualquer casal hétero, é proibido para pessoas LGBT sob pena de constrangimento, e há a necessidade da existência de locais como esse para que se viva a liberdade, ainda que como uma miragem. Havia, até sábado, a ilusão de que determinados locais seriam uma ilha na qual nós estaríamos a salvo. Omar Mateen matou essa ilusão em nós. Não há segurança, não há paz de espírito. Nos resta saber se há esperança.

Diante de tanta intolerância, de tanto obscurantismo religioso, tanta ignorância cá e lá, a comunidade LGBT precisa se lembrar que essas pessoas só se levantam em seu ódio porque nós nos levantamos em nossa busca por direitos. Lutamos pela cidadania plena, não por privilégios, e apesar de todas as dificuldades estamos tendo sucesso – é justamente esse sucesso que os move. A hora de lutar não pode ser postergada pelo medo. Todas as batalhas que nos trouxeram até aqui nos custaram muito. Pelos mais de 300 brasileiros mortos anualmente, pelas travestis discriminadas, agredidas e assassinadas, pelos homossexuais islâmicos jogados do alto de prédios, pelos que foram internados como loucos, pelos que foram expulsos de casa, pelos que perderam seus empregos, pelos que têm e tiveram medo, e especialmente pelos 49 de Orlando, lutamos e lutaremos.

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