Por Luis Fernando Praga

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Quando ele tatuou ela no braço, idealizou de tal modo aquela imagem e de tão perfeita que ela era, quis tê-la sempre inseparável dele. Ela era jovem, linda, inteligente. Trabalhava educando crianças, tinha um humor gentil e diferente, e a paixão dele por ela era tão grande que ele prometeu, é, prometeu amá-la eternamente.

Ela nascera 25 anos antes e sua mãe deu todo o amor materno. Seu pai a viu crescer cheio de orgulho. Ela fez tão felizes a seus pais que eles queriam tê-la sempre juntinho deles. Pai e mãe ensinaram o que eles haviam aprendido e também a procurar aprender por outros meios. Ela aprendia fácil, tinha boa índole, mas questionava as coisas questionáveis, e seus pais, humanos e ignorantes, diziam muitas vezes “eu não sei” quando não sabiam responder e ela os amava como eles eram.

Então ela o amou e se entregou a ele. Achou um pouco muito aquela tatuagem. Juntaram suas coisas e ela deixou a casa de seus pais. Foram felizes, se amaram, se completaram, riram juntos e ela até pensou em tê-lo em tatuagem. Até que chegaram as eleições.

Ela procurou relevar o fato de que ele tinha opiniões políticas diferentes das suas. Procurou ouvir seus argumentos e motivações, mas não conseguiam considerar plausíveis os argumentos um do outro.

Ele teve um choque e não pode assimilar. Passou a mostrar a ela traços de sua personalidade até então reservados a quem ele não amava. Fazia indiretas que ligavam atitudes de políticos do partido que ela defendia ao caráter dela.

Ela entendia que a política exaltava os ânimos e ânimos exaltados geram decisões equivocadas.

Ele tentou convertê-la, mas ela disse que eles eram dois e que era natural que duas pessoas tivessem pensamentos distintos sobre um monte de coisas, e que, apesar disso, o respeito continuava sendo essencial para se manter um bom relacionamento.

Ela havia lapidado seus conceitos políticos a partir de inúmeras influências, leituras, escola, amigos, seu próprio raciocínio dedutivo, conversas com seu avô, seu pai e sua mãe. Ele desprezava todo esse histórico e ridicularizava sua ideologia, fazia apartes jocosos e olhava para ela com ares de superioridade.

Ela buscou entender o que motivava tanto ódio em seu companheiro. Imaginou que ele, como ela, tivesse passado por uma série de influências, de pais, amigos, parentes e leituras, por certo muito diferentes das dela e que o haviam moldado daquela forma. Então tentou ser empática. Admitiu vários problemas com os políticos e o partido que defendia, assim como pontos positivos em políticos e no partido defendidos por ele.

Não bastou. Ele tinha a necessidade de transformá-la e não via necessidade alguma de mudar nada em si próprio. Ele dizia que não gostava de gente teimosa nem de gente que pensava a política como ela. As ofensas ficaram mais frequentes e passou a trata-la por burra, ladra, vaca, mau caráter e corrupta.

Ela sentia o desrespeito a todas as influências que formaram o que ela era. Corruptos, ladrões e maus caracteres eram ofensas que estendiam ao seu avô, seu pai, sua mãe, seus grandes amigos e uma série de pessoas a quem ela admirava, além dela própria. Mas ela sabia o que ela era e o que não era. Confiando mais em si do que nas palavras cruéis dele, preferiu deixar de ser o para raio de uma energia tão negativa. Mudou-se, afastou-se dele e procurou ouvir o que a fizesse bem.

Ele não acreditou que ela pudesse partir, mas ela nunca voltou.

Em sua nova vida, ela não ligava de ter suas ideias confrontadas, gostava de questionar, de ser questionada e de pensar, mas não se dobraria a nenhuma ideia imposta. Dessa forma ela pode se ocupar menos de se defender de ofensas e se reerguer de desilusões e mais de aprender, pois considerava que o ser humano ainda era muito imperfeito para ter tantas e tão conflitantes certezas absolutas.

Ele manteve-se rancoroso e justificava a partida da antiga amada por sua ausência de princípios, falta de berço e inteligência limitada. Continuou a odiando, mas secretamente a desejava muito.

Ela continuou o amando, mas preferindo distância do que não fazia bem. Nutria por ele um amor de querer bem, de desejar que ele deixasse de odiar, de sofrer, de ter medo e que encontrasse razões maiores do que as partidárias para dar sentido a sua vida. Ela nunca voltou a deseja-lo.

Livre da opressão que limitava sua liberdade de pensar e imbuída de transformar aquela experiência tão marcante em aprendizado, ela viu intolerância por toda parte. Notou que a intolerância era, em regra, reflexo de um medo e este que gerava reações agressivas e violentas. Quem não tolerava os homossexuais temia que estes pudessem transformar a todos em homossexuais e que em breve a humanidade seria gay. Quem não tolerava o nordestino temia que os nordestinos invadissem seu espaço, ocupassem seus postos de trabalho e em breve a humanidade seria nordestina. Quem não tolerava a diversidade religiosa temia que uma crença diferente da sua pudesse recrutar mais fiéis e criar um mundo crente em outro Deus. Quem odiava a direita temia que aumentassem as desigualdades sociais, surgisse um mundo de senhores e escravizados e que uma cruel ditadura passasse a governar.  Quem odiava a esquerda temia que suas posses e conquistas fossem divididas com preguiçosos e acomodados e que uma cruel ditadura passasse a governar.

Ela via a ignorância por trás de todos os tipos de intolerância, nunca razão ou bom senso.

Conhecia histórias de ditaduras cruéis e sanguinárias protagonizadas por governos de esquerda e de direita e conhecia casos de corrupção em ambos os lados do front. Ela via, quase com humor, que nenhum político, da direita ou da esquerda, jamais conseguia cumprir todas as promessas de campanha. Prometiam resolver todos os problemas, educação, segurança, economia, saúde, futebol, tudo. Todos, sem exceção, prometiam ser a cura e desde sempre a sociedade considerava que devia acreditar em algum deles. Quem conseguisse convencer o maior número de eleitores ganhava, mas sabia que não cumpriria as promessas. Sabia que não conseguiria, que forças maiores não permitiriam e que nem sequer desejaria cumprir tudo o que prometera, mas ganhava a chance de ter um poder incalculável que inebriava a vaidade humana. Para manter esse poder e alimentar essa vaidade, se corrompiam. Deixavam de lado o bem comum, porque eram indivíduos criados no mundo que adora o poder e a posse.

Ela condenava a intolerância e também a corrupção, mas seria necessário odiar os corruptos para pôr fim à corrupção? Quem eram, afinal, os corruptos?

Ela enxergou que a corrupção não era prerrogativa apenas dos políticos. Quem vive na ilusão de que o sucesso é fruto da competição e que depende do fracasso alheio relega a segundo plano o valor da vida. Se ele vê coisas mais valiosas do que vidas, em algum momento, por algum montante, ele irá se corromper. Alguns se corrompem estacionando o carro em vaga de idosos, alguns sonegam impostos, alguns exploram seus funcionários, alguns mentem a fim de vender inutilidades, alguns compram coisas produzidas com trabalho escravo, outros escravizam, alguns fazem gato de T.V. a cabo, alguns subornam o guarda, alguém compra um juiz federal, este aprende a chantagear para continuar se vendendo, alguns vendem seus votos, alguns vendem seus filhos, outros compram e revendem, alguns vendem o céu por 10%. Tudo isso é corrupção, é inversão de valores, são meios de tirar vantagens do prejuízo do outro, a quem nunca vem ao caso. É subestimar o valor da vida, da possibilidade de se viver em paz e liberdade, para superestimar o valor das coisas que a vida nos permitiu criar. A hipocrisia faz com que só se veja a corrupção (que é sinônimo de podridão) alheia.

O político, outro ser humano vítima desse sistema, mas cuja influência atinge milhões de pessoas, pratica, nas regras do seu jogo, uma corrupção de alta monta, sistemática e institucionalizada, que atinge de forma nefasta a toda a sociedade.

Ela teorizou que enquanto não elevarmos a vida de cada ser humano ao patamar de bem mais valioso, continuaremos corruptos. Enquanto não percebermos que jamais possuímos nada, que morremos sem levar o que acreditávamos ser nosso e deixamos às gerações futuras um legado árido e sombrio, fruto de nossa passagem gananciosa pela vida, continuaremos sendo corruptos. Enquanto tivermos desprezo pela vida de outro ser humano e apego a coisas e ao poder, estaremos invertendo valores e seremos potencialmente corruptos.

Enquanto formos potencialmente corruptos, é altamente temerário atribuir poderes e imunidades absurdas como atribuímos aos políticos. Não podemos delegar a pessoas potencialmente corruptas o poder de criar leis em benefício próprio e ditar o destino de nossas vidas. Quando aprendermos que sucesso é viver num ambiente justo, seguro e sustentável, onde se valorize a vida e a evolução de todos indistintamente, nenhum homem desejará ter o poder que um político tem hoje.

Hoje ela entende que isso depende de transformações pessoais e sociais extremas, as quais grande parte dos indivíduos teme e não está disposto a intentar. Hoje ela entende que o melhor político é o que promete menos milagres, o que luta pela reforma política e pela redução de seus próprios privilégios.

Hoje ele se rói de raiva, pensa transformar aquela tatuagem que ele tem no braço, a tatuagem da culpada que o enganou. Ele não percebe que antes daquela, já haviam gravado nele uma série de tatuagens, difíceis de se ver e de se remover, mas que fizeram dele o que ele é.

Abrir mão de supostas vantagens em prol de um novo modelo de vida é difícil no mundo do consumismo, com uma mídia que nos impele maciçamente a ter, a competir e a odiar e com estruturas criadas para tatuar, de forma permanente nas entranhas das pessoas, falsas certezas (O caminho é a direita! Meu Deus é a salvação, o deles nem existe!), preconceitos ignorantes (A esquerda só quer implantar a ditadura!), rótulos mentirosos (Pobre preguiçoso! Viado safado! Preto bandido! Ativista vadia!) e inibir nossa capacidade de questionar e de pensar além.

Hoje há exploradores colossais, além dos políticos, que oprimem milhões ao mesmo tempo, detendo um poder que dá direito a tudo, poda as liberdades e alimenta o monstro da vaidade. Esperar que a iniciativa da transformação parta de quem mais está contaminado por esse modelo viciante é eximir-se da responsabilidade da mudança. Culpar alguém por suas insatisfações, é deixar de se ocupar com sua transformação pessoal, sempre essencial e incompleta. É alimentar a hipocrisia e deixar de enxergar o quanto está em nossas mãos tornar a vida menos angustiante.

Ela entende que a responsabilidade de cada um é dizer não aos impulsos do consumismo, não se vender, mas se entregar à vida, não desejar ter poder sobre ninguém e não se submeter ao poder vigente. Não cultivar o ódio, alimentar o amor e a solidariedade. As coisas para se mudar no mundo não devem ser mais prioritárias do que mudar si próprio. É um processo difícil e lento, mas parece ser mais difícil continuar vivendo num mundo corrupto e belicoso que vê seres humanos como mercadorias.

Ela tem esperança de que, como várias ideias e inventos surgiram ao mesmo tempo em lugares diferentes do globo, a percepção de que caminhamos um caminho enganoso atinja e transforme várias pessoas por todo o mundo e que as pessoas transformadas se tornem insubordinadas às ordens vigentes e deixem de ser moedas de troca, respeitem suas diferenças e criem ao seu redor uma nova concepção de sociedade. A revolução do amor não é uma revolução menor, é a única da qual realmente dependemos.