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Xingoterapia de grupo

Xingoterapia de Grupo

Gosto de relembrar o passado quase todos os dias. É gosto pela nostalgia, sou um saudosista assumido. Mas também, é analisar os fatores que, numa combinação única, me fizeram ser como sou hoje.

Fico pensando que brincar de esconde-esconde, pega-pega, polícia e ladrão e bater bola no portão da casa da avó, era mais gostoso que ficar brincado só com os olhos e os dedos. Também penso que naquele tempo, se fazia mais músicas boas e menos músicas ruins do que fazem agora.

Lembro-me do futebol de um jeito diferente, no final dos anos 70 e início dos 80. Das quartas-feiras à noite e dos domingos à tarde em que meu pai levava a mim e meu irmão para vermos a saudosa Francana, no Estádio Municipal José Lancha Filho, o Lanchão. A Francana ainda existe, mas não aquela, a saudosa, que era capaz de derrotar as maiores equipes do futebol paulista. Ser capaz, não quer dizer que ela as derrotasse, mas não vem ao caso.

O futebol era muito mais que vencer partidas. Futebol era o concreto duro em que nos sentávamos apertados, eram os cheiros do amendoim, da pipoca, de gente, rojão, churrasquinho, grama e picolé. Era o vento frio da noite, o Sol que ardia e cegava de tarde, a chuva que fingíamos evitar com sacos plásticos na cabeça e eram os perdigotos que sempre acompanhavam os xingamentos mais exaltados. Em campo, eu via jogadores pobres que sabiam falar igual e jogar melhor que os ricos de hoje. Ouvia o barulho da bola chutada, dela rolando no gramado e dela beijando a rede.

No Lanchão, aprendi as ofensas mais cabeludas, algumas das quais, faço uso até hoje. Até criei meu próprio e muito pesado insulto, quando, lá pelos 7 – 8 anos, xinguei um juiz careca de “pirulito”. Essa afronta, não uso mais. Naquele tempo eu via que as pessoas iam ao estádio para exercitar um pouquinho a liberdade que vive presa dentro de nós e não nos damos conta. Iam a fim de sentir, que juntos e em uníssono, tinham uma força capaz de mudar resultados. Iam para se sentir melhor, lá dentro, do que aqui fora.

Faz tempo que não vou a um estádio, e parece que algumas coisas mudaram, como a conta bancária dos jogadores e técnicos, o substrato onde se acomodam os glúteos da torcida e o preço dos ingressos, mas creio que o maior prazer em se ir ao estádio, ainda seja o de degustar o inigualável sentimento de ser livre, por aqueles 105 minutos. Ver o humor brotando da sua fonte mais simples, socializar de uma forma diferente, extravasar as tensões geradas naquela sociedade de fora do estádio, alicerçada em valores ilusórios, no desperdício de vidas em troca de papel.

Xingar o juiz de “filho da P…”, mais do que tentar ofender o homem de preto, ou convencê-lo de que sua mãe exerce mesmo aquela antiga profissão, tem o nobre intuito de fazer com que nos sintamos livres e leves. Assim como solicitar que o auxiliar de arbitragem “enfie a bandeira na B…” nunca gerou, em ninguém, a expectativa de que o bandeirinha fosse mesmo introduzir ali seu instrumento. Num estádio, ninguém deve se ofender ao ouvir essas barbaridades. Quando ditos em coro, então, os xingamentos têm um efeito de meditação de grupo, um chá de descarrego coletivo e um recado de que a união faz a força e de que a vida, do lado de fora, não está tão boa como querem que engulamos.

Qualquer autoridade que coloca os pés num estádio, claro, sempre é pra torcer. Não! Não pelo futebol! Torcem para serem ovacionados e cobertos de glória e torcem contra os apupos. Mas sabem que pode dar zebra e o achincalhamento pesado pode sobrepujar os aplausos. Sabem também que quando a fase não é boa, não adianta sorte e nem fé em Deus, que o xingamento e a vaia vêm mesmo.

Dona Dilma, por exemplo, tirou de letra. Tenho quase certeza de que estava preparada e não se viu forçada a “tomar no C…”, só para atender aos clamores do povo. Nem todos os presidentes foram vaiados ou xingados em estádios, apenas os que foram a estádios, e todos sobreviveram a isso. Fico feliz que tenham sobrevivido, pois a revolta popular, apesar de não se ter plena consciência disso, não é contra pessoas, é contra a estrutura sufocante em que vemos inseridas nossas vidas.

Pessoas cheias de poder, como os chefes de estado, representam a perpetuação dessa estrutura e pagam o pato, ouvindo xingamentos, enquanto nós os trocamos, nome após nome, xingamos um após o outro, eleição após eleição. Pagamos por suas regalias, nos sujeitamos a viver sob suas regras sem sentido e esperamos por um salvador que não virá. A revolta é contra uma estrutura social e política que nos domesticou e escravizou, para que continuemos a mover suas engrenagens.

Sempre haverá tensão e polarização inútil, enquanto houver uma hierarquia que reprima nossos direitos mais básicos, que monopolize recursos e manipule informações e que suprima a nossa hierarquia sobre nós mesmos. Temos mais poder sobre nós, do que qualquer polícia ou chefe de estado, mas aprendemos a acreditar que não.

A reação indignada é para que possamos sentir aquele gostinho de 105 minutos de liberdade, pelo máximo de tempo possível. Um gosto que me faz recordar, como se tivesse sido um sonho, daquela infância, que apesar de situada num tempo de brutal ditadura, cheirava à liberdade. Um gosto que me faz esperar por um futuro, como se não fosse utópico, totalmente livre para a humanidade. Um futuro onde as crianças se tornem adultos que sintam mais prazer em admirar, do que em xingar seus semelhantes.

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