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A suma lapidar da ideologia da classe dominante do Brasil

(foto zeca ribeiro – cam dep – div)

Lula e o desafio do atraso

Roberto Amaral*

 “Lembro a vocês que as eleições já ocorreram: os vitoriosos, como nós, estão no poder. O meu candidato, o candidato que apoiei, perdeu a eleição.”

Ouso afirmar que a característica nodal de nossa formação é o monolitismo do poder, impávido, insensível ao progresso social, arcaico e no entanto irremovível. Imune às transformações econômicas e sociais, às rebeliões, às insurreições massacradas, como às “revoluções” e aos golpes de Estado perpetrados pela classe dominante acionando seu braço armado. Assim, feitoria, colônia de exploração e extração (jamais projeto de povoamento), vice-reinado, império, república, passados 500 anos de tentativa de construção de uma nação, a cujo povo foi negado o papel de sujeito,  permanecemos presos ao projeto da casa-grande, senhora de baraço e cutelo desde a colônia: do engenho de açúcar à Avenida Paulista, conhecemos um só mando. 

Somos, na segunda década do terceiro milênio, ainda o que éramos no século XVI,  uma economia primário-exportadora: o 3º produtor mundial de alimentos em país no qual nada menos de 10 milhões de pessoas são classificadas pela FAO (ONU) como desnutridas, mais de 21 milhões não têm o que comer, e 70,3 milhões padecem insegurança alimentar.

Segundo dados da Oxfam, seis brasileiros detêm uma riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres. Os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda dos demais 95%. O 1% mais rico da população brasileira recebe, em média, mais de 25% de toda a renda nacional ).

Este, o Brasil legado pela casa-grande após cinco séculos de ininterrupta exploração da terra e de sua gente. Somos o que herdamos do passado, mas agravado pela história do presente.   
O grande capital monopolista internacional, com a inefável ajuda de seus agentes nativos, realiza o projeto do Alvará de D. Maria, a Rainha Louca, que determinou, em 1785, a abolição e extinção de todas as fábricas do Brasil, veto  mais tarde (1822)  reiterado pela Inglaterra.

Viver o país entre o atraso e a estagnação, enquanto sua classe dominante é uma das mais ricas do mundo, não é um acidente, chuva de verão, mas projeto essencial à hegemonia de classe, fonte de nosso descompasso histórico, reprodutor, na segunda década do terceiro milênio, da sociedade oligárquica denunciada por José Bonifácio, o Moço, em 1823: “Neste país, a pirâmide do poder assenta sobre o vértice e não sobre a base”. 

Naquele então, pelas mãos de uma conciliação inter-monárquica concertada pela diplomacia das belonaves inglesas (afinal, os Braganças governariam Portugal e a província desgarrada), iniciávamos a aventura de um Estado aspirante à independência. Ao livrar-se do cutelo português, todavia, o Brasil se perderia nas amarras do império britânico, de quem – foi este o preço cobrado pelas negociações de 1822 – nos tornávamos sua colônia na América que se chamara de portuguesa. O que se segue não caminha para além das consequências inevitáveis: a dependência econômica, política, militar e ideológica nos acompanharia até as primeiras décadas do século passado, quando a história registra a ascensão dos EUA.

À monarquia dos Braganças sucede a república tutelada dos latifundiários, dos militares e dos especuladores, que, como coletivo, atendem hoje pelo codinome de “mercado”. Se, naquele império que já nascera velho, o poder moderador era exercido pelo trono, na república importada por um golpe de Estado esse papel é assumido pelas forças armadas, nomeadamente pelo exército, atento, como no massacre dos camponeses de Canudos, aos reclamos da plutocracia rural, que só vai conhecer declínio a partir de 1930. 

Vivemos a disjuntiva entre um passado que resiste à sepultura e um presente que forceja por vir à luz; o futuro é permanentemente adiado porque o arcaico sobrevive – e podemos encontrar indicador mais contundente desse atraso do que a preeminência da caserna sobre a vida civil? –, nos pondo ao largo da contemporaneidade. Por isso mesmo, a vitória da conciliação sobre a ruptura que pode ameaçar o mando; ao invés da revolução, a ordem, que sufoca o progresso. Enfim, um país por ser, na síntese de Darcy Ribeiro.

 O texto que nos serve de epígrafe é a suma lapidar da ideologia da classe dominante. Louve-se o autor da pérola, mantido no anonimato. Foi escrito para o discurso lido pelo presidente da Câmara dos Deputados na noite do último 6 de julho, quando o antigo representante dos usineiros alagoanos (que já nos deram um presidente da república, com os custos conhecidos) foi à tribuna do plenário, de onde falam os deputados comuns, que são todos os demais, para encaminhar a votação da reforma tributária, com cujo sucesso anunciado já contava para a colheita dos frutos explícitos, prenda que a grande imprensa naturaliza como jogo de pesos e contrapesos da realpolitik.

O gerente do Centrão, agora oráculo do sistema e em seu nome fiador da governabilidade, se anuncia vitorioso e no poder, apesar de seu candidato haver perdido as eleições. Porque no capitalismo, e no periférico sobretudo, a hegemonia da classe dominante independe das eleições que ordena: ela pode, até, em determinadas e episódicas ocasiões, como recentemente em 2022, não eleger o presidente da república de seus sonhos, mas em hipótese alguma admite deixar escorrer-lhe pelos dedos o controle do poder, que, a partir do monopólio da economia, tudo manipula: ideologia, valores, política, e, ao fim e ao cabo, condiciona a governabilidade dos que permite governar, cobrando preço altíssimo à república. 

Assim, mesmo não logrando eleger o candidato pelo qual tanto se empenhou (louvados sejam, sempre, os engenhos dos deuses do Olimpo insondável), o Centrão conserva em suas mãos os cordéis do poder, imune ao veredito do segundo turno de 2022. É em face do império dessas circunstâncias que se deve compreender a dramaticidade do governo Lula, ainda tateante em seus primeiros passos, jungido entre a necessidade de transigir para salvar o mandato (conditio sine qua non para o que quer que seja) e o risco de sobreviver ao preço da ingovernabilidade política, entendida como a impossibilidade de governar nos termos do programa apresentado no processo eleitoral e referendado pela soberania popular. Aquele de que carece o país para salvar-se a si próprio. (Com a colaboração de Pedro Amaral)

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