Miró da Muribeca (foto ohana chagas – reprod. facebook de miro da muribeca)

.Por Christian Ribeiro.

Ah, os poetas e essa estranha mania essa de fazer do seu ofício a arte de buscar reinterpretar o mundo em versos. Em um país de cada vez menos sonhos e ilusões, recitar os mais belos devaneios. Declamar o impossível, mirar o inconcebível e, absurdo dos absurdos, rescrever o amor em todos os seus sentidos.

Dessa estirpe de sonhadores era (é) Miró, poeta de ruas e becos, dos bares e boemias, para longe do arcaísmo das academias e gabinetes… Poeta que dá cores aos saberes que as sarjetas só segredam aos que se deixam aprender ante os segredos da vida!

Vida a quem nunca deixou de abraçar e amar loucamente, sem medo ou pudores! Mesmo quando não se fazia tão bem tratado por ela, mesmo em suas dores, nunca a renegou, nem por um instante. De seus versos e performances só juras e mais juras a sua grande musa chamada vida, a quem sempre procurou louvar em suas poéticas.

Semeador de obra ímpar, faz da periferia de Muribeca no Recife o seu lugar-mundo, de onde teceu suas palavras em versos e mais versos, para alçar os céus do mundo e aos corações de quem é envolvido pelo impacto de sua poesia.

Carnaval

Deus largado pelas ruas de Recifenão sabe se dança frevoou vai atrás do maracatu

será que Deus também tem dúvidas?

nas ruasigrejas e povoDeus deixa beijarusar a roupa que quiser

são quatro diasque Deus não tá nem aí

aí, na quarta-feira de cinzaDeus de ressacaperdoa quase todo mundo

Poema do livro aDeus (Mariposa Cartonera) 

Nunca foi poeta das comodidades ou facilidades, muito menos de acordos e mediocridades – por vezes nada incomum ao mundo das letras – por isso ficando para muitos como um desconhecido, como aquela surpresa que assola uma tela até então em branco, que dali em diante se fará tomada por cores e possibilidades até então desconhecidas!

Poeta que apresenta o impossível como cotidiano em seus versos, levando a quem se deixa envolver por suas maestrias, para longe das mediocridades do cotidiano.

Se optasse por ser mais um da multidão que não mais sonha, poderia hoje ter seus livros e versos reproduzidos em trilhas de programas descolados, pretensamente intelectuais, como que emoldurados em retrato preto em branco de nossas aspirações, ou seriam frustações, burguesas. Mas tudo isso seria tão cinza, tão triste, para um poeta de cores vivas e alegres.

Alegria libertadora e revolucionária, de amar a si próprio radicalmente e livremente. Amando ao outro tão profundamente quanto. Buscando – não – dar sentido à vida a partir do ato de amar ao outro plenamente, a vida, até o último instante e além! Quem disse que não se aprende a dialética pela poesia? Quem afirma isso nunca teve o prazer de se deixar encantar pela arte de Miró da Muribeca

Dizem as más línguas que Miró tornou-se encantando nas terras de sua Recife no domingo de 31/07/22, que não mais abrirá seus lábios e olhos. Que se calou em voz e corpo para todo sempre… Ah, como os de alma pequena nada sabem… Povo triste e infeliz, pois não concebem que poetas nunca se calam e muito menos se aquietam! Nada sabem que poetas não morrem, mas sim, só se tornam nos sonhos que sempre recitaram!

Miró se tornou o que sempre teceu e viveu. Amor extremo e incontido em forma de poesia! Tudo que for dito em contrário é falso e nada mais que falso! Mentira de invejosos e de almas pequenas!

Autor independente por princípio e ofício, não aceita em ser regido por regras e padrões… Assim é sua poesia, assim é sua vida, assim ele é… Nada afeito a hábitos esnobes ou estrelismos, homem de chamegos e abraços, de vivências e experiências que não se podiam restringir em métricas parnasianas ou nos limites de uma folha A4. É poeta que se faz no afeto, na paixão, no tesão em fúria e fogo que desperta nas pessoas. Nas cores que seus versos transmitem e recebem nas trocas de vidas, de perspectivas que gera entre autor e público.

A minha poesia é da rua, porque me apresentava na rua. Quem me lê não precisa ir buscar no [dicionário] Aurélio. O gari, o engenheiro civil, a enfermeira, o dono de bar entendem a minha poesia. Ela está aqui, na tua cara, na tua frente, na avenida. (Murió da Muribeca, 01/08/2021)

Obra que nunca foi gerada para mofar em prateleiras de uma estante fria. Para ficar protegida e intocável em gabinetes. É liberdade que ventila pelo mundo, para se fazer chegar de supetão e nunca mais deixar a mediocridade reinar sozinha.

A poesia de Miró da Muribeca é o louco desvairar dos descontentes que não desistem da estranha sina de buscar e louvar o amor enquanto felicidade suprema! Fruto de um romântico dos trópicos, artesão das palavras que não se deixa entristecer pelas agruras do cotidiano. E que sempre recebe dos seus o amor mais puro que existe, como uma louvação por suas travessuras inspiradoras que a tantos encanta! Vivo e intenso, amor puro e verdadeiro, sem limites ou vergonhas! Pode haver reconhecimento maior do que esse? Miró sempre teve esse amor que não se mede como uma constância de seu público fiel. Quantos notórios e laureados sempre correram por esse tipo de amor/reconhecimento e nunca o terão? Pois, é…

Nascido Flávio Cordeiro da Silva, Miró da Muribeca foi menino que queria ser jogador de futebol para encantar o mundo e ser feliz! Mas que acabou de fazer da poética a sua própria arte de buscar os afagos protetores da felicidade. Poeta que já era, mas ainda não sabia, fez de uma abordagem policial violenta de meados dos anos 1980 os primeiros de seus encantos poéticos intitulado “Quatro horas e um minuto”, que faz parte de seu primeiro livro “Quem descobriu o azul?”.

Quatro horas e um minuto

Quatro horas
Quatro ônibus levando vinte e quatro pessoas
Tristonhas e solitárias
Quatro horas e um minuto
Acendi um cigarro e a cidade pegou fogo.
Cinco horas
Cinco soldados espancando cinco pivetes
Filhos sem pai
E órfãos de pão
Cinco horas e um minuto
Urinei na ponte e inundei a cidade
Seis horas
O Recife reza
E eu voando pra ver Maria

Do ódio deu vazão ao amor, não em sentido de negação da realidade que o cercava, mas em rebeldia de não ser derrotado e limitado por ela, buscaria e recitaria o amor como celebração a vida que historicamente sempre se fez negar no Brasil aos iguais a ele. Homem negro, urbano periférico, arretado para além das margens do mundo, nunca foi um alienado, mas sim um romântico inveterado revolucionário que sempre procurou recitar o amor, viver o amor, louvar o amor e encantar-se em amor para todo sempre nos primeiros versos de uma manhã de domingo… Voando nas asas de sua imaginação para finalmente encontrar Maria…

Esse foi (é) Miró da Muribeca, agora em eternidade, continuando a nos encantar! Viveu como quis, encantou-se como quis! Foi poeta como quis! Recitando a toda hora e momento o amor pelas ruas e esquinas do mundo, em que se cruzam os apaixonados por essa loucura que não se explica, chamada vida!

Miró não morreu, virou poema! Não é momento para tristezas, mas sim de recitá-lo!

Ontem, hoje e sempre, VIVA MIRÓ DA MURIBECA!

Referência Bibliográfica:

MURIBECA, Murió. Cronista lírico [Entrevista]. Quatro cinco um: a revista dos livros [01/08/2021]. In: www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/literatura-brasileira/cronista-lirico, acessado em 31/07/2021.

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Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.