Por Christian Ribeiro

Nos momentos finais do primeiro tempo do jogo entre Criciúma (SC) e Ponte Preta (SP), disputada na cidade catarinense no último sábado (16/07/2022), os jogadores reservas do time paulista se dirigiram para iniciar processo de aquecimento, como é de praxe em qualquer partida. Sendo que como as arquibancadas do estádio “Heriberto Hülse” são estruturadas diretamente ao campo, não há os chamados poços ou corredores que distanciam, ou separam, o campo de jogo com o público.

(imagem site ponte preta – div)

Desse modo havendo um contato direto entre os jogadores adversários e a torcida local. Um espaço de interação sem distanciamento, que acaba por expor a todos ali em situações potencialmente constrangedoras ou perigosas, ainda mais levando em conta as paixões que envolvem os jogos de futebol no Brasil. Sendo que ali, entre provocações e impropérios dirigidos aos jogadores pontepretanos, se deu uma ação preconceituosa, de cunho racista em relação ao jogador Da Silva, em que este foi chamado de “macaco” por um torcedor-agressor. O que gerou sua reação imediata de indignação e revolta, levando a arbitragem, ao tomar ciência do ocorrido, solicitar a presença da Polícia Militar que ao se dirigir ao local do fato, constatou, com o testemunho dos torcedores ali presentes que houve o ato em si, mas que o autor da agressão fugiu ao perceber que sua ação não havia sido denunciada.

Um fato por si só lamentável, triste e revoltante. Que muito nos revela acerca da podridão de caráter que guiam certas pessoas. Não sendo por acaso que desde o primeiro momento, tal caso gerou uma enorme onda de indignação e repulsa, de solidariedade, de combate pública ao racismo. Atitudes minimamente condizentes a qualquer pessoa que não procura minimizar a dor do outro, que não procura justificar o injustificável. Pois há situações em que não existe a isenção ou imparcialidade, e manifestar-se, colocar-se publicamente contra o racismo, assim como qualquer forma de preconceito e discriminação, é uma delas!

Mas qual não é a surpresa ante ao absurdo, quando após nota oficial da Associação Atlética Ponte Preta divulgada no domingo a noite, dando informes sobre o andamento da caso, além de repudiar o ocorrido e solidarizar-se com o seu atleta, é perceptível nos comentários do post, haver uma ação coordenada de perfis fakes, na sua maioria citados como localizados no Sul do país, ironizando o ocorrido, tripudiando dos fatos e classificando a situação como mimimi. Sem pudor algum, agindo de maneira jocosa ante a dor de um ser humano e diante da ocorrência flagrada de uma situação criminosa. Sendo que ao ter seus comentários rebatidos, apelaram para as grosserias típicas de quem não possuem argumentação, partindo para ofensas pessoais, na pura e simples difamação. Mas não antes de citar de que “xingar é normal no futebol” querendo naturalizar um absurdo a partir daquilo que ele acha ser normal. Sim, é fato que ocorrem xingamentos dos mais variados em um jogo de futebol, faz parte de nossa cultura, até mesmo de uma tradição do jogo. Mesmo assim, isso é correto? Por isso devemos nos calar ante tudo que ocorre, que envolve um jogo de futebol? Racionalmente, é justificado agir assim, guiados pela pulsão de seus instintos mais básicos? Isso não pode significar, nem justificar que por causa dessa tradição de xingamentos que qualquer pessoa possa exercer livremente agressões racistas e discriminatórias! Em nenhuma situação se deve procurar relativizar ou referendar uma atitude preconceituosa, pois racismo você não contemporiza, mas, sim, denúncia e combate, sem tréguas ou descanso!

E quando você realiza uma pesquisa mais profunda dos perfis que defendem a normalidade de você chamar outra pessoa de “macaco”, se descobre que são usuários que abriram as suas respectivas páginas num mesmo período e que divulgam as mesmas notícias ou temáticas. Divulgam “informações” acerca de “racismo reverso”, vitimismo, mimimi, revisionismo histórico sobre escravidão moderna, antivacinas, homofobia, machismo, com nítido conteúdo de intolerância, de discurso de ódio! Repassando conteúdo de sites e fontes pseudo-históricas que são comumente denunciados por seu conteúdo mentiroso e discriminatório. Uma sensação de que agem como grupo organizado que se torna mais evidente quando é visto que as postagens de seus comentários ocorreram ao mesmo tempo e as suas reações ante as críticas sofridas, também se deram de forma conjunta e uniformizada.

O que nos leva a questionar, qual o motivo, que faz com que pessoas ajam dessa maneira? Numa, total, falta de empatia, ridicularizando as dores de outras pessoas? Propagando e divulgando ódios e preconceitos contra outros grupos humanos? Com justificativas tão frágeis quanto um castelo de areia na beira da praia… Acreditamos que tal postura se dá primeiramente pela certeza da impunidade dos aplicativos sociais que promulgam um “combate incessante contra qualquer forma de discriminação e preconceito”, mas não coíbem os usuários e as páginas destes, com seus conteúdos de mentiras e ódio. Um padrão de conivência que cada vez se faz mais nítido entre essas plataformas com os discursos de intolerância que circulam e se reproduzem em nossos cotidianos. Outra situação que colocamos é a percepção de que no futebol tudo se pode, como se fosse um mundo a parte, não regido pelos nossos conjuntos de leis ou padrões morais, uma área de livre expressão e manifestação de ódios reprimidos, de homofobia, sexismo, intolerância religiosas e racismo. Mais uma característica de numa sociedade em que promulga “não existir racismo no Brasil” ou de que “racista é sempre o outro”, a de se escolher quando se pode ser preconceituoso, quando se pode exercer discriminação sem pudor ou temor algum…

Absurdos que se tornam naturalizados, em especial no futebol! Uma situação que se revela esquizofrênica, pois quando se dá envolvendo racismo sofrido por jogadores e torcedores brasileiros em jogos internacionais, existe todo um discurso, até mesmo em relação a entidades governamentais, reivindicando a tomada de medidas incisivas e imediatas para se combater o racismo, situando o mesmo enquanto um absurdo, em todos os sentidos, por suas sucessivas ocorrências em pleno século XXI. Mas quando tais fatos se dão em território nacional, e em especial, quando ele se dá a partir de meu time, aí tudo muda! O que antes era intolerável, se torna “algo que não se pode generalizar”, “veja, bem, não foi tudo isso”, “não é para tanto barulho”, “é muito vitimismo por coisa à toa”, “é tudo brincadeira, é só um jogo de futebol” … Exemplo que nos remonta a sempre lembramos, que a hipocrisia também é um dos elementos de reprodução e perpetuação do racismo em nossa sociedade.

O futebol não se dá fora da sociedade em que ele se manifesta, muito pelo contrário, ele reproduz exatamente as contradições, os conflitos e características de seu lugar de origem! Ela não é algo de fora da sociedade, mas o seu mais perfeito reflexo! Não sendo por acaso ser possível realizar análise das mais variadas – culturais, econômicas, históricas, políticas, sociológicas… – sobre a sociedade brasileira, através do futebol e das relações sociais que o envolvem e o caracterizam enquanto modelo de nossa identidade, daquilo que melhor nos define, para o bem e para o mal, enquanto conjunto social. E ver nos últimos tempos, cada vez mais casos de racismo, num esporte eminentemente popular, que se desenvolveu e se consolidou enquanto tal a partir da inserção massiva das populações negras tanto quanto jogadores, como torcedores, é de uma dor sem tamanho. De uma tristeza sem fim, mas que identificamos como consequência de um processo, nem tão lento, contínuo de elitização desse que ainda é o esporte mais popular no país! Reflexo de nossa contemporaneidade em que esse esporte, de espelho da alma brasileira, se tornou local para que nossas elites, ou aqueles que se acham elite, exteriorizarem aquilo que sempre pensaram, sempre defenderam sobre aqueles que não consideram enquanto os seus iguais em diretos e humanidade. Uma área fora de qualquer “controle social”, em que podem exercer sua “liberdade de expressão”, como forma de expor seus preconceitos e discriminações, em que podem exercer seu racismo sem restrição moral alguma. Não por acaso estas manifestações, virtuais ou físicas, sempre se dão em grupos, em bandos! Situações que não nos espanta quando cada vez mais pesquisas apontam o aumento dos casos de racismo, e violência, no Brasil, ano após ano, mesmo com as atuações constantes, presentes dos movimentos negros espalhados pelo país, além da constituição de inúmeras campanhas educativas antirracistas. E mesmo assim os casos de racismo não param de acontecer… É a toda hora e momento, é todo dia, é em qualquer lugar…

E sempre manifestações racistas pautadas pela falta de preocupação com os efeitos que ele causa em suas vítimas! Ou alguém nessa situação parou para pensar como se sentiu o Da Silva? Sendo exposto naquela situação para – literalmente – todo o mundo? Desumanizado, reduzido a uma associação animalesca primitiva, por estar exercendo a sua profissão de jogador profissional? Vocês já pararam para pensar que toda pessoa negra que passa por racismo ou injúria racial, ela é vitimada duas vezes? Uma quando do ato em si, outra quando ela, sendo vítima, tem que provar a ocorrência do fato, tendo que alinhavar toda uma sequência lógica para ser avaliada e validada por outra pessoa que irá comprovar se aquilo que você sentiu/passou, que lhe marcou a própria alma, realmente foi racismo ou não. Isso quando não se mostra uma preocupação muito maior, ou exclusivamente, com o autor da ação criminosa do que com que sofreu pelos seus atos! Sabe a história de que a culpa é sempre da vítima? Pois, é! No Brasil, os casos de racismo se pautam pelo fato de que a vítima tem que provar que é vítima, uma cultura de proteção que procura dar afeto e suporte aos algozes e não os que por ele são vitimados.

Que a investigação prossiga do modo indevido e sem ingerências, que os fatos já expostos de que houve racismo de fato não se percam, de que não ocorra tentativas de se amenizar o que já está, bem, posto! Mas que não se perca a noção de que isso não é um fato isolado, mas reflexo da nossa sociedade estruturalmente racista, discriminatória e preconceituosa! Dentro ou fora do campo, o racismo no futebol é o racismo do Brasil! Mas principalmente, de todo o meu coração, que esse artigo se faça enquanto meu abraço e solidariedade ao Da Silva, e que ele saiba que sozinho não está, em nenhuma hora ou momento!

E, se depois de tudo aqui exposto, você ainda querer procurar justificar o injustificável, só me revela que nessa peleja que vale chamada vida, eu já sei em qual time você joga! E não é no meu…

Racismo não é mimimi! Que não haja dúvidas quanto a isso, racismo não é mimimi!

Da Silva, fica bem! Se cuide e pra cima deles! Tamo junto!

Referências Audiovisuais e Bibliográficas:

ATLAS DA VIOLÊNCIA: ASSASSINATOS DE NEGROS CRESCEM 11,5% EM 10 ANOS. In: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-08/atlas-da-violencia-assassinatos-de-negros-crescem-115-em-10-anos, acessado em 18/07/2022.

Ponte Preta relatou o ato de racismo contra o atacante Da Silva. In: www.futebolinterior.com.br/ponte-registra-noticia-de-infracao-disciplinbar-no-stjd-apos-ato-racista-em-criciuma/, acessado em 18/07/2022.

Caso de racismo mancha confronto entre Criciúma e Ponte Preta. In: https://globopaly.globo.com/v/10764497/, acessado em 18/07/2022.

Racismo e agressões em Criciúma: Ponte registra Notícia de Infração Disciplinar no STJD. In: https://pontepreta.com.br/racismo-e-agressoes-em-criciuma-ponte-registra-noticia-de-infracao-disciplinar-no-stjd, acessado em 18/07/2022.

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Christian Ribeiro mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.