.Por Christian Ribeiro.

A data é 1978, na chamada “noite brasileira” do “festival de Jazz de Montreux”, momento em que Gilberto Gil se encontrava no auge de sua efervescência criativa, mas também momento de encruzilhada e escolhas a serem feitas e trilhadas. Um ser humano em plena reestruturação de si, de reconexão as suas origens e referências ancestrais. Pessoa que através de sua arte (re)encontrava o seu lugar no mundo, ao descobrir as diferentes Áfricas que habitavam em si e o formavam em humanidade, saberes e potências, em meio aos processos de recepção de seu álbum “Refavela”, em que canta as suas negritudes imagéticas e estéticas, historicidades poéticas e sonoras, em meio a um país que oficialmente tinha como uma de suas doutrinas oficiais o não reconhecimento da existência do racismo em terras brasileiras, além de ir contra o ideário estimulado pelo regime ditatorial em vigência, de que vivemos em uma democracia racial.

(foto de vídeo -reprodução internet)

No momento em que os movimentos negros do país passavam por uma reconstrução de suas pautas sociais e referências históricas-políticas, que viriam a resultar na constituição de uma nova agenda política afro-brasileira, Gil se fazia enquanto membro ativo desse processo, tornando público o seu buscar artístico em questionar a sua realidade-mundo, assim como os diferentes sentidos da vida que se originam dessa indagação. Uma etapa que se faz iniciar em seu período de exílio em Londres, que toma forma e sentido através da concepção do que viria a ser chamado de “Trilogia Re”1, primeiramente no álbum “Refazenda” (1975), por um recorte mais introspectivo e sertanejo, dialogando com suas influências de infância, de suas lembranças do sertão nordestino, da Bahia rural, com seus forrobodós, rezas, ladainhas e Luiz Gonzaga (1912-1989). Processo que sofrerá uma maior visibilidade, através da publicação do já citado “Refavela” em 1977, em que (re)trabalha os conceitos de ancestralidades e contemporaneidades-modernidades afro enquanto influências tanto na sua formação pessoal, quanto na formação da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo que demanda ao público a sua própria reconstrução enquanto ser humano cioso e orgulhoso de sua matriz africana, para a partir de então exercer uma representação fonográfica e estética que artisticamente passa a ressignificar a imagética das populações africanas e seus descendentes ao longo dos séculos de nossa história.

Esse é o momento histórico e pessoal, de transição e transformação, que perpassava o ambiente da sua apresentação no festival suíço. Sem mencionar as situações de constrangimento e perseguições que esse álbum gerou tanto ao campo político mais progressista da nossa crítica cultural, quanto dos órgãos de repressão da ditadura civil-militar, por compreenderem que Gilberto Gil estava trazendo a realidade brasileira uma questão (racial-racismo) que não se fazia por sua ótica inerente aos conjuntos históricos e cotidianos de nossas relações sociais.

Um show que se dá, portanto, em uma etapa de cristalização do processo de redescoberta de Gil sobre suas origens afro, sobre a sua condição de homem negro afro diaspórico em suas construções e manifestações de resistências contra o racismo e preconceito de uma sociedade constituída sobre os esforços do trabalho escravizado das populações africanas e de seus descendentes. Num processo de apagamento de suas memórias e referências históricas-ancestrais e da negação do sentido de humanidade a estas populações, da desconstrução de qualquer sentido de virtudes e qualidades positivas aos seus, para assim reafirmar o arcaísmo social e discriminatório que nos caracteriza enquanto nação eternamente inconclusa, autoritária e racista.

Se em “Refavela” temos essa explosão pública de negritude, de consciência negra, quase que de uma maneira incontida no sentido até de uma “força bruta”, que ganhava sentido conceitual, artístico e político pelo trabalho musical e poético artesão de Gil, que dá forma e noção a um ideário popular de negritude, desenvolvido dentro do universo musical cultural brasileiro, no show de Montreux temos um artista pleno nos domínios e manifestações de sua arte afro-brasileira, livre dos limites impostos que buscavam pautar os artistas negros a uma concepção preconcebida e limitada – por vezes pautada pelos mais terríveis estereótipos – do que se considerava samba verdadeiro, em que não se aceitava a construção de perspectivas artísticas para os artista negros, além dessa realidade previamente imposta. Postura gilbertiana de não aceite a tal situação, que já se fazia inerente no início de sua carreira, quando executava uma misturava de ritmos nordestinos, com um estilo de samba influenciado tanto pela bossa nova, como pela vertente moderna do samba carioca dos anos 1960, sendo nesse sentido diretamente influenciado pela busca da liberdade artística e do conjunto da obra, já estabelecida, de Jorge Ben, que se faria acentuar e ganhar novas cores e alcances com o advento do Tropicalismo. O que nos leva, após “Refavela”, termos um artista em que exerce seu ofício de cantar para além dos padrões do cancioneiro popular nacional vigente até então, do intérprete de voz pausada, contida, melódico dentro dos limites das harmonias europeias, em que Gil distorce e reformula as notas musicais e melodias de acordo com as suas metas e buscas. Brincando e indo além dos limites impostos, remodelando e rompendo as harmonias das canções que compõe e interpreta a seu bel prazer. Ritmos e sons que leva em destaque para a linha de frente de suas músicas, de suas interpretações, situando as influências e heranças afros como base da modernidade de sua obra artística ao mesmo tempo que estabelece esse como reflexo e afirmação de sua condição humana. De homem negro que através de sua obra se coloca como opositor as manifestações racistas típicas e cotidianas de nossa sociedade. Erigindo um caminho do qual nunca mais irá se desviar, do qual nunca mais se desviará, ou deixará de trilhar!

Nesse sentido, tal qual um griot, Gil surge ao palco vestido de branco, com as cores de Oxalá, para dar início a grande gira que dará início em terras suíças. Esse show – gravado e disponibilizado (gratuitamente) em sua totalidade, mas aquém do quanto deveria ser lembrado, dado sua importância e significado – amplia o impacto que já se fazia sentir na audição de sua versão fonográfica, pois temos imagens da apresentação sem cortes ou edições, um show direto e cru, em que temos Gil longe da versão intimista voz, banquinho e violão, do artista contido… O que temos é a visão de um intérprete inquieto, que pulsa, dança, e se deixa levar pela energia que suas canções geram perante o público, atuando como um fio condutor que une a troca de energia que dali se manifesta entre sua banda e a plateia. Dando novos sentidos, outras percepções sobre o que seria um típico show de música popular, com sua música que é ao mesmo tempo samba, forró, xote, xaxado, maracatu, batuque, afoxés, rock and roll, rock, blues, soul, jazz, reggae, afrobeat, mas acima de tudo brasileira, tipicamente brasileiríssima no exercício de sua afrodescendência. O que não por acaso, explica sua apresentação começando com o percussionista Djalma Correia realizando um toque para Oxalá, a quem o show se faz dedicar… Sendo imediatamente seguido pelas primeiras notas de “Chuckberry Fields Forever” e o seu recontar da diáspora africana nas Américas através dos ritmos e sonoridades que aqui se deram por influência das culturas dos povos do continente negro que aqui foram forçosamente trazidos. Do mambo e da salsa, até o rock and roll, infinitudes sonoras, que perpassam toda uma série de histórias e saberes africanos que perpassam várias áreas dos conhecimentos humanos e que somos condicionados a não reconhecer como inerentes a estas populações. Além de nos lembrar acidamente de que toda a modernidade revolucionária da era rock, no fundo não passava de músicas de orixás, estabelecendo uma fina ironia provocativa, na dialética de estabelecer uma relação entre os denominados quatro cavaleiros do após Calypso citados na canção, tanto em sentido de revelar essa influência afro inconteste aos quatro fantásticos de Liverpool, como ao mesmo tempo referendar a magnitude dos quatro pais fundadores negros do rock que são Chuck Berry (1926-2017), Little Richard (1932-2020), Fats Domino (1928-2017) e Bo Diddley (1928-2008). O que nos explica e amplia o sentido do título da canção que mistura o nome de Chuck Berry com a canção que dá início a fase psicodélica dos Beatles, para muito além do que um simples trocadilho linguístico.

A partir desse momento inicial do show, temos o delinear de que estamos diante uma experiência que tomará forma nada usual, para longe de qualquer expectativa, mesmo para um dos artífices da Tropicália. Gil, em apenas uma canção já nos oferece uma perspectiva outra sobre as influências afros na construção não só do continente americano, mas de toda a modernidade do chamado mundo ocidental. Uma potência criativa dessa apresentação que se fará ampliar de canção em canção, até o seu momento de êxtase ao final do espetáculo. Pondo em xeque, dessa maneira, o formalismo de nosso academicismo intelectual com suas teorias tão distantes das realidades e historicidades das populações negras no Brasil e que ainda ignoravam os estudos e as perspectivas das negritudes e narrativas afro diaspóricas que já se davam e circulavam em nosso país. Um conjunto de insurgências intelectuais, culturais e políticas que daria forma ao que se identificaria enquanto novo movimento negro brasileiro, com autorias sociais e políticas, com agendas e perspectivas de se discutir e problematizar nossa formação civilizatória, nossos dilemas e contradições sociais, até mesmo nossa noção de povo e brasilidade por um viés e recorte negro e popular. Uma verdadeira revolução de sentidos e práticas, cujo impactos sentimos até hoje, que teve em Gilberto Gil um de seus principais referenciais e agentes transformadores. E que tão bem se faz sintetizar no seu show de Montreux.

Em cada canção executada, a cada ritmo alargado e recosturado, melodicamente recomposto de acordo com a maestria sublime de Gil, temos uma plateia levada a vivenciar emoções que não fazem parte de seu cotidiano. Imersa a uma experiência de catarse, de transcendentalidade… Não havendo mais diferença, de distinção entre público e artista, todos irmanados, em sentimento de mútua pertença e acolhimento pelo cantar e pelos sons de Gil e banda. Do forró de “Chororô”, do samba de “Ela”, passando pelo sincretismo afrocatólico de “São João, Xangô Menino”, da releitura de Luiz Gonzaga em “Respeita Januário”, da batucada eletrificada no medley de “Bat Macumba/Exaltação a Mangueira”, ao xote xaxado free jazz rock funk de “Procissão/Atrás do trio elétrico/Mamãe eu quero”, ao término do show com uma jam jazz rock candomblé em “Triole” que transforma os Alpes suíços em terras de África-Brasil, temos um artista manifestando a sua negritude em plena liberdade, a cada nota emitida, em cada silaba cantada, em cada gestual e dança, com corpo e voz sincronizados em perfeita exibição de liberdade artística e existencial.

Uma exibição que se faz notar, por já apontar para os caminhos musicais e políticos – até mesmo em seu sentido mais militante a partidário – de tornar a negritude como base de sua obra, de seu legado, da construção de seu conjunto artístico afro-brasileiro. Para assim nos revelar a impossibilidade de se buscar compreender o Brasil em todas as suas características e potencialidades, nos seus pormenores característicos e por isso reveladores daquilo que temos de melhor, mas que comumente se faz esconder ou renegar por nossas pretensas elites por suas origens e pertenças afro ou indígenas, fazendo de sua arte como um não aceite vivo e dinâmico, de dedo em riste, em desafio a esta mediocridade dos que se pensam e agem como senhores de todos os destinos! Em maior ou menor grau, essa agenda política negra contemporânea se fará enquanto constante nas práxis gilbertianas desde então. Influenciando toda uma geração de novos artistas, intelectuais e políticos negros que levam adiante a busca de romper os grilhões de nosso racismo estrutural e assassino.

Poucos artistas no mundo se mantiveram relevantes ao longo dos anos, ainda mais por décadas, com uma obra viva e dinâmica, em constante diálogo, em sinergia com os ares dos tempos vindouros, ao mesmo tempo em que reverência e destaca as origens e raízes que lhe deram forma e sentido ao longo de sua trajetória. Que nesses 80 anos de Gil que agora celebramos, não esqueçamos que essa virtude revolucionária de sua obra, deve sempre ser destacada e enaltecida, até mesmo diante dos tempos de intolerância e de aberto racismo e discriminações que se fazem comuns em nossa realidade atual. Saibamos celebrar a capacidade da sua arte em nos fazer lembrar e valorizar quem de fato somos, enquanto povo e sociedade culturalmente negra mestiça em terras sul da América, de sempre nos fornecer a certeza utópica – no sentido de sua plena realização – de nos cantar as certezas de Xangô, de que não há mal que dure para sempre, nem mentira que seja eterna, e que todo mal se fará derrotar, pela honra e o poder de nossos ancestrais, daqueles a quem Gilberto Gil canta e honra, mantendo-os eternos através de seu conjunto artístico e político.

Por isso assista, ouça a esse show de Montreux e mergulhe sem medo nesse retrato sonoro de em um dos momentos mais instigantes e criativos desse gênio, desse encantado encarnado que sempre optou por dividir seus passos conosco! E (re)descubra como o mundo, apesar dos horrores que nos cercam, pode ser um lugar melhor para se viver quando cantado pelas poéticas e imagéticas sonoras de mestre Gil!

Ontem, hoje e sempre, VIVA GILBERTO GIL!

Referências audiovisuais:

GIL, Gilberto. Live at Montreux Jazz Festival (1978). In: https://www.youtube.com/watch?=vB1eZ6MiSUP4, acessado em 25/06/2022.

GIL, Gilberto. Refavela. Phonogram, 1977.

GIL, Gilberto. Refazenda. Phonogram, 1975.

Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, professor da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.

1 Referente a trinca formada pelos álbuns “Refazenda” (1975), “Refavela” (1977) e “Realce” (1979)