(imagem romerito pontes – ccl)

.Por Rafael Martarello.

Ferreira Gullar, pouco antes do Golpe Empresarial-Militar de 1964, que o prendeu e o exilou, escreveu um poema chamado Não Há Vagas. Revisito seus versos livres, que infelizmente permanecem atuais graças à catastrófica situação social instaurada pelo governo Bolsonaro:

NÃO HÁ VAGAS

O preço do feijão

não cabe no poema.

O preço do arroz

não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás

A luz o telefone

A sonegação

Do leite

Da carne

Do açúcar

Do pão

O funcionário público

não cabe no poema

com seu salário de fome

sua vida fechada

em arquivos.

Como não cabe no poema

o operário

que esmerila

seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras

— porque o poema,

senhores,

está fechado:

“não há vagas”

Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço

O poema, senhores,

não fede

nem cheira

Neste escrito irônico, o poeta esboça uma crítica dupla. A primeira é de fácil reconhecimento, trata sobre os problemas sociais enfrentados pela classe trabalhadora e pelo lumpemproletariado: o preço de alimentos; a obstrução a bens, a alimentos e a serviços; e, a má condição trabalhista.

A segunda, e mais fundamental, é a crítica aos escritores de sua época que não tematizam as questões sociais e sobre o sofrimento da classe trabalhadora. Ao contrário, estes escritores fazem textos que tratam de aspectos frívolos, não relacionados com a concretude do drama social cotidiano enfrentado pela maior parte da população. Esse tipo de literatura, ao fim e ao cabo, alimenta uma fantasia que beneficia a perpetuação da classe dominante.

Podemos depreender essa compreensão por uma série de jogo de palavras, dou luz ao uso do verbo caber transmitindo no texto sentido de assunto a ser tratado, acompanhado do advérbio de negação não, que assim atribui a recusa da reflexão acerca desses temas sociais em poemas. Após o autor usa a conjunção porque para ofertar uma explicação da razão pela qual o poema está fechado para coisas importantes e aberto para futilidades, que não faz diferença, o que não fede e nem cheira. Não há vagas para o que importa no poema, porque a poética criticada por Gullar está ocupada com o indivíduo que não passa necessidades, a idealização em alguma donzela ou as abstrações em objetos.

Atualmente, com Bolsonaro, a situação social é deteriorante: a alta de preço de alimentos e de itens básicos; o aumento da miséria e da fome; a hecatombe sanitária e a hecatombe promovida pelo Estado nas favelas; o desemprego; a inflação e a falta de reajuste em salários; o esfarelamento de direitos trabalhistas e o refugo da força da classe trabalhadora. Enquanto isso os grandes grupos de comunicação, e parte da esquerda (a pequeno-burguesa), enfeitam a vida ao admirar fatos inócuos e empreender lutas contra moinhos de vento.

Cabe-nos, poeta ou não, expressar a realidade e a dor e admirar a beleza do movimento que estas exteriorizam, pois assim estaremos falando sobre e para a classe trabalhadora, que forja a sua luta em meio à dureza da vida. É escrever como o Facção Central canta em A guerra não vai acabar, “Se tem sangue, eu canto sangue, se tem morte, eu canto morte, relato o que leva o ladrão pro cofre”.

Ferreira Gullar foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas terminou sua vida apoiando Marina Silva, Aécio Neves e o Golpe de 2016. De origem maranhense, ele é considerado um dos grandes escritores brasileiros e pioneiro de importantes movimentos artístico-literários. Pouco antes da sua morte, ocupou uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.