Por Isabela Ferreira Loures

A exposição individual “Lamento das imagens”, de Alfredo Jaar, com curadoria de Moacir dos Anjos no Sesc Pompeia, é parte integrante da 34ª Bienal. Circundando o tema da bienal “Faz escuro, mas eu canto”, a individual de Jaar se dispõe a discutir a imagem em seu potencial de quebra da anestesia frente ao sofrimento alheio. As obras de Jaar se configuram na tentativa de quebra da anestesia que temos diante de cenas dolorosas que povoam nosso cotidiano por fotos ou vídeos, mas em relação às quais opomos uma barreira, uma espécie de anteposto emocional que nos permite olhá-las de uma distância segura. Uma fotografia de guerra, de sofrimento, tirada em lugares longevos (ou mais perto geograficamente do que pensamos) que seja apresentada emoldurada na parede ou impressa em revistas, pela presença da tinta de impressão ou da moldura, já nos coloca a uma distância segura daquelas aflições. Compadecemo-nos, mas sabemos que, dito friamente, para nós, basta desviar o olhar para que aquele terror acabe. Sem cair em um discurso unicamente denunciativo do fotojornalismo, que apenas adularia o mundo apático ao noticiário que Jaar questiona, o artista vai além e redimensiona, em suas obras a dimensão de resistência na própria imagem.

Alfredo Jaar, Um milhão de pontos de luz, 2005, fotografia

Na primeira instalação da exposição, The Sound of Silence a luz com que nos deparamos nos cega momentaneamente e faz doer os olhos, nos obriga a semicerrá-los. A instalação estabelece uma imersão essencial para o restante da exposição. A videoarte é uma narrativa que, partindo da vida do fotojornalista Kevin Carter, se dirige à relação entre o sofrimento, a imagem e o fotógrafo, ou a testemunha dessas imagens. A apresentação da dor das imagens,a da dor de Kevin Carter, e a dor do que ele presenciou, a princípio, independem da apresentação de uma única fotografia. No ápice da obra, a dor, a cegueira e o poder de uma única imagem se tornam indissociáveis. E nesse ponto a imagem se funde à impossibilidade de ver, uma “cegueira branca”, pode-se dizer. Questionando-se sobre a ética da imagem em situações limítrofes, Jaar reafirma-a, mas apenas a contrapelo da anestesia do olhar. Somos invocados, pelas palavras, a ver pelos olhos de Kevin, a sentir sua dor; a entender o flash fotográfico como evocação da sensibilidade e aproximação ao sofrimento.

Vale a pena dizer que a exposição de Jaar não é pretensiosa de se dar a missão de veicular a verdadeira dureza da vivência do sofrimento. Mesmo na procura da quebra do atordoamento passivo do visitante, Jaar não é ingênuo de propôr uma imagem total do sofrimento. Mas nos alerta que a imagem tampouco é ingênua. Ele nos diz: Você vê as imagens? Olhe de novo! Veja-as mais uma vez. Em uma das instalações,”Sombras”, a imagem de duas mulheres desesperadas, com braços estendidos para o céu, chorando a morte de um próximo – que intuímos ser seu pai – nos é apresentada. Mas logo se altera ofuscada pela luz que vem de dentro até que o índice de realidade que caracteriza as fotografias se transfigure apenas em silhuetas luminosas. Aqui, novamente retorna o brilho dilacerante.

É importante dizer dessa luz no horizonte que nos cega. Em uma obra de escritos em neon, Jaar presta homenagem à Gramsci e retoma sua citação: “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro nascem os monstros”. Quando escreveu a frase, Gramsci apontava para um fascismo em crise. Entretanto, paradoxalmente, sem seu fim inequívoco, o fascismo ascende ainda mais em meio à crise, caindo apenas após a segunda guerra mundial. Paralelamente à luz atordoante do fascismo, cuja crise Gramsci enxergava com hesitação, vemos a luz do neoliberalismo, dessa atordoante realidade, que se prova incapaz de responder pela humanidade. Essa luz que ensaia seu apagamento, e que, contudo, ainda é uma presença excruciante, parece decretar o fim de nossas esperanças.

Mas é necessário que não nos deixemos cegar pela luz penosa. A luz tematizada nas obras de Jaar é a conotação de uma ordem mundial geradora de sofrimentos, mas, como notado, se presta também à quebra do atordoamento do olhar indiferente à dor alheia. A princípio, sua presença é tão forte que ofusca nossa visão daquilo que é o índice da sobrevivência em meio ao mundo nefasto. O diretor de cinema italiano Pier Paolo Pasolini, em uma metáfora para falar da resistência ao fascisco falava de vagalumes; não de luzes ofuscantes no horizonte, mas pequenas resistências, sutis e divagando pelo espaço. Mesmo após Pasolini declarar a morte dos vagalumes, essa imagem de sobrevivência é defendida pelo filósofo francês Georges Didi-Huberman: longe de um “horizonte que nos promete uma grande e longínqua luz”, promessa não cumprida, a imagem, como modo de persistência, “nos oferece algo próximo a lampejos”. Esses pequenos pontos luminosos, de presença tão singela como os vagalumes, constituem uma verdadeira política da imagem “contra a glória do reino e seus feixes de luz crua”.

A sobrevivência é vista na imagem lacunar que se forma nos galões que refletem a fotografia de sobreviventes do lixo tóxico deixado a esmo na Nigéria. As imagens, formadas em um plano rebaixado demais para nossa visão direta, refletem no líquido preto dos galões e vemos as vítimas da catástrofe cotidiana do capitalismo como ordem mundial predatória. Essa imagem que não conseguimos olhar diretamente, ocultada (ofuscada de certa forma) nos galões, é a imagem daqueles que “restam” no sistema opressor, cuja própria vida é um ato de resistência. Para ver a imagem, temos que persegui-la; perseguir esses pequenos vagalumes de sobrevivência. Um milhão de pontos de luz, fotografia tirada por Jaar em Luanda, com a câmera apontada para o oceano atlântico, reforça esse sentido de resistência da imagem. Aqui, a luz que incide na água, como bem notado no texto de Moacir dos Anjos, não é a do sol a pino, mas incide obliquamente, criando múltiplos pontos de luz refletidos nas ondulações das águas. O visitante é convidado a levar para casa um cartão-postal com a reprodução da imagem, em cujo verso um texto elucida a referência à escravização do povo africano. Cerca de 3,5 milhões de pessoas escravizadas cruzaram o oceano em uma viagem aterrorizante rumo ao Brasil. A imagem consolida-se em sua vocação contra-hegemônica que se opõe à luz holofote dos modelos de exploração do ser humano em nome de um sistema insuportável. Os pequenos reflexos nas ondas apontam não mais para um grande horizonte de possibilidades; a manutenção da existência em sua dimensão política só nos é possível se fixarmos a visão nesses reflexos lapsos, nos vagalumes que brilham na noite.