.Por Marcelo Mattos.

“Podem me prender / Podem me bater
Podem, até deixar-me sem comer /
Que eu não mudo de opinião”. (Zé Kéti, in Opinião)

Zé Kéti é um dos mais autênticos representantes de uma genealogia de sambistas que deram à música popular brasileira, pela sublime sofisticação poética e melódica, aliada à sua representatividade social, o mais radiante destaque no cenário mundial.

José Flores de Jesus nasceu em 16 de setembro de 1921, no suburbano bairro de Inhaúma, Rio de Janeiro, cercado pelo complexo do Alemão, Del Castilho, Cachambi, Pilares, embalado pelo encantamento dos seus versos de sambas e choros de uma família musical por excelência. Filho de Josué Vale de Jesus, cavaquinista e marinheiro que participou com o Almirante Negro, João Cândido, da histórica Revolta da Chibata e neto de João Dionísio de Santana, grande flautista e pianista, tinha a casa frequentemente aberta às rodas de choros, com as ilustríssimas presenças de músicos como Cândido das Neves e do mestre Pixinguinha.

Como se nota, desde muito cedo o Zé Kéti desperta para a dura realidade social dos subúrbios e favelas, da luta de classe, da segregação racial e violências, que formará uma consciência política e capacidade de indignação que nutrirá a sua vida repleta de composições e lutas libertárias.

Menino muito tímido, com a morte do pai em 1924, foi criado pelo avô e pela mãe, Dona Leonor, doméstica que costumava levá-lo para as festas populares e bailes de gafieira. O garoto de tão pacato, logo virou o apelido de Zé Quieto, depois modificado para Zé Quéti e no definitivo apodo artístico de Zé Kéti: um príncipe pelo refinamento, engajamento e requinte nas composições.

Em 1934 teve seu primeiro contato com a chamada música do morro quando foi levado pelo sambista e compositor da Estação Primeira de Mangueira Geraldo Cunha para assistir aos ensaios da escola de samba, agremiação a qual sempre manteve uma forte presença e relação de afinidade.

Passou a residir em Bangu, Piedade, Maria Clara e, a partir de 1939, em Bento Ribeiro, onde teve o encontro com a sua Escola de Samba Portela, integrando a Ala de Compositores, que logo se tornaria a fonte, depositária e impulsionadora de um movimento conceitual que ajudou a romper certo romantismo e ingenuidade do samba para recolocá-lo nos exatos parâmetros da realidade social e cultural brasileira.

Passa a frequentar o Café Nice, reduto de grandes músicos, onde estabeleceu uma série de contatos que seriam fundamentais para sua carreira. Gravou pela primeira vez em 1946, mas o sucesso veio somente em 1952 com “Amar é bom” e “Amor Passageiro”, na voz de Linda Batista.

No início dos anos 1950 compõe um dos seus maiores sucessos: “A voz do morro”, gravada em 1955 pelo cantor Jorge Goulart, com arranjo magnífico de Radamés Gnattali. No mesmo ano, a composição é tema do filme Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, considerado um dos marcos inaugurais do moderno cinema brasileiro e precursor do cinema novo. Além da música tema, outras canções compõem a maravilhosa trilha sonora como “Leviana”, “Rio, Zona Norte”, “Malvadeza Durão” e “Foi Ela”.

Onesio Meirelles, grande escritor e sambista, conta que conheceu Zé Kéti em 1962, durante a gravação do filme Gimba, Presidente dos Valentes, no Morro da Mangueira, filme com Milton Moraes, Milton Gonçalves, Ruth de Souza, com roteiro de Flávio Rangel e Gianfrancesco Guarnieri. Zé Kéti além de compor a música tema “Gimba chegou”, atua cantando “Feio, não é bonito” ao som do violão de Baden Powell e gaita de Omar Izar.

Também participou de outras produções cinematográficas como O Boca de Ouro (1962), de Nelson Pereira dos Santos; A Falecida (1965), de Leon Hirszman; e A Grande Cidade (1966), de Carlos Diegues.

Em 1963 surge no Rio de Janeiro o restaurante Zicartola, reduto de samba, espaço de encontro de músicos e artistas, inaugurado por Cartola e sua esposa Zica. Das conversas entre os seus ilustres frequentadores surge a ideia de realização de uma apresentação musical.

O resultado é o espetáculo musical Opinião, de autoria de Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, nomeada a partir do samba homônimo de Zé Kéti. Com direção de Augusto Boal, estreia em 1964 com estrondoso sucesso no Teatro de Arena, em Copacabana, com participação de João do Vale, Ruy Guerra, Carlos Lyra, Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri e Nara Leão (posteriormente substituída por Maria Bethânia). Nesse espetáculo, marco na história da música popular brasileira, Zé Kéti lança “Diz que fui por aí”, “Ascender as velas” e “Opinião”.

Embalado pelo sucesso da peça e valendo-se dos contatos que estabelece no restaurante do Zicartola, Zé Kéti organiza a coletânea A Voz do Morro, reunindo os melhores intérpretes e sambas do morro, com a participação Nescarzinho do Salgueiro, Jair do Cavaquinho e Oscar Bigode (da Portela), Zé Cruz e Nelson Sargento (da Mangueira), Élton Medeiros (da Aprendizes de Lucas) e Paulinho da Viola. Futuramente, gravaria também o disco Roda de Samba, lançado em 1965, acrescido da participação de Nelson Sargento.

Zé Kéti sempre teve uma importante ligação com o cinema novo, bossa nova, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE) e outros movimentos políticos ligados às lutas democráticas. Com parceria de Carlos Lyra compôs o “Samba da Legalidade”, pela posse do presidente da República, João Goulart, ameaçada de um golpe político-militar, gravado por Nara Leão somente em 1965.

Zé Keti morreu em 14 de novembro de 1999, aos 78 anos, vítima de parada cardíaca. Cerca de 150 pessoas compareceram ao velório do grande compositor na capela Santa de Cássia, no cemitério de Inhaúma. Durante o velório o seu esquife foi coberto com a bandeira azul e branca da sua querida Escola de Samba Portela. Acompanharam o enterro amigos e compositores da velha-guarda, o cineasta Nelson Pereira dos Santos, os compositores Zé Renato, Jards Macalé, Nelson Sargento, Walter Alfaiate e Noca da Portela. Foi sepultado ao som da composição “A Voz do Morro”:

“Eu sou o samba, a voz do morro sou eu mesmo sim senhor…”.