(the dinner party – judy chicago)

.Por Gabriel San Martin.

Hoje, no dia 8 de março, é comemorado o Dia Internacional da Mulher. É de uma trivialidade das grandes reconhecer a desigualdade de gênero em relação a qual toda a história ocidental foi pautada. A sexualidade masculina veio sendo constantemente posicionada em um lugar prioritário e dominativo no sistema de diferenciação sexual. Gerando, nesse sentido, mesmo uma assimetria histórica em decorrência do modo como os espaços e atividades de cada gênero foram regulados.

Na história da arte ocidental, esse sistema de diferenciação não ocorreu de modo distinto. Com frequência, a feminilidade foi tratada como uma inaptidão ao fazer artístico. No âmbito das artes, regularmente foram designadas às mulheres atividades ligadas ao que se entendeu por “artes menores”. Diferente da pintura e da escultura, que foram sempre entendidas como “artes de capital A” ou “belas artes”, o gênero feminino foi sempre encarregado ao exercício da atividade artística na esfera do que se estipulou o nome “artesanato” (bordado, cerâmica, etc). Apesar de, com recorrência, pensar-se numa distância temporal razoável entre o período no qual estratificações e regulações dessa natureza eram estabelecidas em relação ao presente, essa distância é, na verdade, mínima.

A recente história da arte modernista, que convencionou-se ter chegado ao seu fim entre as décadas de 1960-1970, é parcialmente fundada em grandes mitos. Alguns desses mitos que se tornaram mais populares são aqueles referentes à originalidade, à “planaridade” ou ao gênio artístico (curiosamente, sempre representado por uma figura masculina). A primazia masculina na arte modernista pode ser notada, por exemplo, no fato de os grupos de vanguarda terem sido majoritariamente compostos quase que integralmente por artistas do gênero masculino. Além disso, em grandes escolas de arte existente ainda há menos de um século atrás, como a Bauhaus (1919-1933), a segregação de gênero ocorre de forma descarada. No caso da Bauhaus, ao inaugurá-la em Weimar, na Alemanha, o artista Walter Gropius limita o exercício das categorias artísticas de maior notoriedade, como pintura, arquitetura e escultura, ao dito “gênero forte” (os homens). O “gênero belo” (as mulheres), por outro lado, fica restrito a atividades menores, por ser, para o artista, um gênero geneticamente qualificado às artes que só pensassem duas dimensões e que não fossem tão “físicas”.

É evidente que, em vista de todas as limitações impostas sobre a vida das artistas, nomes femininos ficaram praticamente desaparecidos das paredes dos grandes museus. Desde a década de 1980, com grupos como as Guerrilla Girls, já se veio questionando sobre o pequeno espaço que artistas mulheres ocupavam em exposições e acervos de grandes instituições. Em 1985, as Guerrilla Girls expuseram alguns dados referentes ao espaço ocupado por mulheres nos acervos de diversos museus. Nesses dados, era explicitado que, no Metropolitan Museum, 5% dos artistas da seção de arte moderna eram mulheres enquanto que, no MoMa (Museum of Modern Art, de Nova York), esse número era de 10%. Além disso, recentemente, pesquisas apresentaram dados expondo que, das quase 88.000 obras adquiridas pelo MoMa entre 1985 e 2020, apenas 13% (15.601) eram de autoria feminina.

Claro, já era de se esperar que esse fenômeno provocaria grandes insatisfações. Em meados das décadas de 1970-1980, mulheres artistas e teóricas/historiadoras da arte passam a questionar a maneira como, até então, a história da arte foi escrita e moldada a partir de um olhar masculino. Na esfera teórica, um exemplo notório é a historiadora e crítica de arte Griselda Pollock, que, em 1988, problematiza o modo como o “olhar modernista” das artes sobre as mudanças todas que ocorriam na Europa é caracteristicamente masculino. Isto é, enquanto os espaços da feminilidade constituiriam exclusivamente os espaços doméstico e sexual, a vida boêmia de Paris, tão retratada em pinturas do período, estaria restrita ao olhar masculino. As únicas mulheres que não tinham o acesso inviabilizado a ambientes da ordem dos grandes cabarés e bares (como é o caso do Moulin Rouge) eram as que exerciam estritamente um papel sexual degradante no interior desses ambientes.

No âmbito artístico, parece-me que, dentre as artistas adeptas ao que se convencionou chamar “arte feminista”, uma das mais significantes foi a norte-americana Judy Chicago. Em sua instalação “The Dinner Party”(1974-79), tida como a primeira obra de arte feminista monumental, Judy homenageia 1037 mulheres entendidas pela artista como subestimadas ou pouco notadas na história (não só da arte). Com esse trabalho, Judy parece ter por motivação estabelecer o fechamento de um ciclo no qual as mulheres sempre foram esquecidas e deixadas de lado pela história. Ao receber mais de mil mulheres nesse luxuoso banquete, ela concebe também o interesse pela recepção de seus nomes na história.

A instalação é composta por um cômodo onde há, ao centro, um grande mosaico de azulejos brancos sobre o qual se encontra uma grande mesa de três lados. Os três lados dessa mesa formam um triângulo equilátero, no qual há 13 lugares em cada lado. Todos esses detalhes da obra são pormenorizadamente pensados pela artista. O triângulo equilátero tem por motivo constituir um ícone de uma forma geométrica de lados iguais, significando uma igualdade entre todas as mulheres lá presentes. O que motiva a composição específica de 13 lugares em cada um dos lados da mesa opera como uma releitura da Santa Ceia, um episódio bíblico composto por uma mesa de jantar onde estiveram presentes exclusivamente 13 homens. No centro da mesa triangular, há um grande espaço através do qual é possível observar o grande mosaico sobre o qual a mesa se encontra. Esse mosaico, nomeado “Heritage Floor”(“Piso da Herança”), é composto por mais de dois mil azulejos brancos, onde há 998 nomes de mulheres redigidos em letras douradas.

Se os principais objetivos de uma arte e história da arte feministas residem em fenômenos como a recuperação de artistas obscurecidas na história, a revisão dos critérios de julgamento da arte e utilização da arte como meio para transformação (através da difusão dos ideais feministas), a obra de Judy Chicago se mostra admirável. Tanto a retomada de nomes esquecidos pela grande história como a difusão das ideias de igualdade de gênero, que constituem o feminismo, são temas abordados de maneira monumental (literalmente) em “The Dinner Party”.

Todo esse trabalho ligado a um revisionismo histórico sobre a condição da mulher na história da arte que é feito por essas artistas e críticas/historiadoras da arte, mostra-se cada vez mais relevante para a modulação de uma nova forma de pensar sobre a história da arte. Enfatizo não estar afirmando aqui, em qualquer nível, uma hierarquização sobre as diferentes histórias da arte. Destaco apenas reconhecer a importância de haver cada vez mais alternativas: e acho a “história da arte feminista”, que entendo mais como uma abordagem vinculada à ênfase sobre a condição da feminilidade na história da arte, uma ótima. Dentre as tantas maneiras formuladas para pensar a arte moderna, poucas se mostraram capazes de dar a devida atenção às artistas mulheres do período.

Saliento também que, em meio a muitas outras artistas eminentes adeptas a essa categoria da arte política convencionalmente designada “arte feminista”, a seleção de Judy Chicago para esse texto foi uma casualidade. Uma casualidade, acredito, decorrente da admiração que tenho pela artista. De todo modo, friso que o fulcro deste texto esteve muito mais ligado à retomada e ao interesse por compreender em que propriamente consiste uma “história da arte feminista”. Afinal, não que os outros dias não sejam, mas hoje, em especial, parece-me um dia digno de atenção particular a esse tema.

Gabriel San Martin – Estudante do curso de Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador em estética e teoria da arte e escritor sobre artes visuais.