Se essa rua, se essa lua, se essa luta: comunhão da cidade renascida

.Por Francisco Foot Hardman.

De Pequim

Pequim ensaia sua volta à normalidade, depois de mais de dois meses de semi-confinamento. A primavera chegou com tudo e a paisagem da cidade tem mudado rapidamente nesses dias: flores de tantas cores, aves de muitos cantos, crianças de vários brinquedos, um tocador solitário de flauta chinesa, uma pianista de teclas hesitantes nalguma janela, todos tentam recuperar espaços de circulação e convivência livres do covid-19. Cuidados e restrições se fazem ainda muito presentes, porém. Mas a vida volta, ainda mais viva.

(fotos: francisco foot hardman)

E como é bom ouvir novamente os sons e ruídos característicos dessa grande cidade! Até mesmo aquelas gravações sonoras de avisos nos veículos dos entregadores expressos são por ora bem-vindas. Cidades terão alma, além do corpo desenhado em cada mapa. A alma de Pequim se esboça em algum ponto inescrutável entre razão e coração.

Entre as leitoras e correspondentes mais assíduas dessas crônicas, quero mencionar, com muita alegria, a presença regular da estimada Sra. Weng Yilan. Para quem não a conhece, ela é a primeira depoente-cantora no magistral documentário Canções em Pequim (2017), da cineasta Milena de Moura Barba. Você ainda não viu o filme? Que é que continua a fazer aí paradona, paradão? Baixe logo na internet e não perca, experiência obrigatória! Filme-documentário inteiramente rodado aqui, a cena com a Sra. Weng surpreende desde o início: ao invés de canção chinesa, ela começa, muito afinada, a cantarolar: “Se essa rua, se essa rua fosse minha…”, e prossegue, incólume, até o final. Depois, a revelação: nos idos de 1960, ela foi aluna de Português da saudosa professora de São Paulo, Mara, na Universidade de Comunicação, pioneira do ensino da nossa língua aqui, com intuito de formar jornalistas e diplomatas. Ela própria fez carreira na Rádio Internacional da China. 

Sua assiduidade como nossa leitora me conforta. Sempre traz observações sagazes, para além de sua generosa empatia. E o que fazer das ruas quando voltarem a ser nossas? Estabelecer nova trilha do coração restituído ou repetir o trajeto automático da alienação de cada dia? 

E, como na língua chinesa não se estabelece distinção fonética relevante entre o “r” e o “l”, pensemos nessa rua sonhada como o lado oculto da Lua, afinal a agência espacial nacional da China celebrou, no início de janeiro passado, a passagem de um ano da missão da Chang’e 4. Que poderia ser transportada, por que não?, para uma noite de lua nova aqui no bairro. Onde apenas gatos-faróis me guiam no caminho entre quadras e folhagens. E se essa lua fosse minha? 
 

Salão Lua reaberto | fotos: FFH
Salão Lua reaberto (fotos: franscisco food hardiman)

No salão Lua, reaberto há três dias, posso aparar os cabelos depois de três meses. Máscaras e indumentárias especiais, como a de cosmonautas terrestres, formam agora a nova rotina. Marilyn Monroe me saúda do pôster: poderia haver recepção mais prazerosa? O salão é unissex, mas desta feita só um cliente por vez. Como se não bastasse, é Kristen Stewart quem me encara da tela dos tablets embutidos abaixo do espelho, num anúncio de beleza. Assim não dá, não há penteado que resista. A equipe veloz qual viajantes do espaço terminam um corte à la Beijing, agradecem e pedem um selfie. Acho que a Lua baixou na Terra, e podemos ingressar celebrantes no Ano Novo, que a tragédia havia interrompido no fim de janeiro.

Mas faltam mais pés no chão. Por isso, antes do Templo da Lua (que chequei no mapa, fica no extremo Nordeste da cidade), fui visitar, ontem, por recomendação expressa de uma amiga, o Templo da Terra, Ditán, magnífico conjunto arquitetônico num parque lindíssimo, na área central de Pequim, obra das alturas de 1530, dinastia Ming. Que ditosa tarde de sol e vento a Terra nos oferece em seu logradouro! Por aqui, a apenas R$ 1,20 de ingresso, é possível ver, como no outono passado com as folhas, nuanças na coloração das flores, que os chineses tanto adoram pintar, fotografar ou simplesmente admirar. Para nenhum blasé botar defeito. Aqui, todos os jogos com petecas, raquetes e bolinhas, em duplas ou quádruplas, nisso também os chineses são craques.
 

Templo da Terra | fotos: FFH
Templo da Terra (fotos: francisco foot hardman)

E, no centro e ao lado de tudo, esse bailado mágico das pequenas e pequenos mascarados, crianças em suas patinetes entre ruas verdes e a meia-lua que, imperiosa, despontava num céu claro de meia tarde. Criança com as varetas e o balde de fazer bolhas gigantes de sabão, espetáculo fugaz de velhos a bebês. Crianças empinando pipas ao embalo de ventos benfazejos, outra especialidade desta terra de difícil concorrência.
 
Os próprios templos e altares ainda fechados, mas ninguém parece se importar com isso. Basta por ora o passeio ao ar livre, terra acolhedora e ruas transitáveis. E essa lua insinuante e nada oculta, a nos lembrar que aqui mesmo, no Templo da Terra, parque público municipal, um dos cenários mais tradicionais das feiras populares do Ano Novo Lunar, todas canceladas no final de janeiro, pode ser ela a projeção de luar propício para a luta por um novo mundo – menos desigual e mais solidário. 

Luta por novas rotas que reponham as periferias no centro. E que refaçam os caminhos. Restituindo à Mãe Terra o coração que lhe foi roubado por nossa espécie, que só assim, nessa luta única, poderá ser digna ainda, um dia, quem sabe, de se considerar efetivamente uma humanidade de humanos. Ou apenas um sonho comum de cidade. Lua à vista! (publicada originalmente no Jornal da Unicamp)